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“Folada”: Uma ameaça à desestruturação do Terminal de Hiaces de Sucupira na cidade da Praia
Ponto de Vista

“Folada”: Uma ameaça à desestruturação do Terminal de Hiaces de Sucupira na cidade da Praia

...o terminal de Hiaces na Praia tem contribuído, e de forma evidente, para o descongestionamento e a redução do caos rodoviário e acidentes na cidade, sobretudo ao longo do percurso Sucupira-São Filipe. O barulho resultante de buzinas, dos gritos infindáveis de “bu sta bai?”; “Somada?”, “Calheta?”, ect., formando uma perfeita cacofonia, enquanto os condutores faziam a “torada” (voltas), deixaram de se ouvir, resultando assim num ambiente mais apaziguado naquela parte da cidade.

Eram por volta das 3 horas da tarde em frente ao shopping de Sucupira, debaixo de um sol escaldante, e o Zé não se cansava de perguntar a um qualquer transeunte estranho, “Somada?”, numa infinita tentativa de encher o mais depressa possível o primeiro Hiace da fila. Zé em tempos foi um conhecido e hábil “ajudanti”, com uma perícia cobiçada em dar “enchimento” (daí o epíteto de “enchedor”), uma prática que consistia em angariar e disputar “clientes” ao longo da via da Avenida Cidade de Lisboa (Fazenda) até São Filipe. A instalação do terminal fez-lhe mudar de tática, passando simplesmente a orientar os passageiros e ajudar os condutores na arrumação de cargas mediante o pagamento de “algun cuza”, referindo-se à compensação que recebe pelo seu serviço. A pergunta insistente do Zé, “Somada?” seria dispensável, se simplesmente vigorasse a ordem no terminal.

Instalação do Terminal de Haices na Cidade da Praia

Em 2018, a Câmara Municipal da Praia instalou o terminal de Hiaces da Praia, no largo de Sucupira, estribando-se na necessidade de uma melhor organização do transporte interurbano, reduzir o caos rodoviário que se reinava ao longo da Avenida Cidade de Lisboa até São Felipe, e consequentemente reduzir o número de acidentes que ocorriam nesse percurso. A principal novidade da medida, que já havia sido algumas vezes tentada, mas falhada, prendia-se com a instituição do sistema de filas e a cobrança coerciva de uma senha cujo valor variava consoante o destino dos Hiaces. Por exemplo, para o percurso Praia-Assomda, para cada partida, cobrava-se 150$00.

Apesar de alguma ansiedade inicial no seio dos condutores, e reclamações de passageiros que teriam que se deslocar obrigatoriamente ao Sucupira para apanharem os Hiaces, a medida foi geralmente bem recebida e acatada, fruto de uma cooperação forte entre as instituições envolvidas: a Câmara Municipal, a Polícia Nacional, a Guarda Municipal, a SEPAMP e a Associação dos condutores de Hiaces. Criou-se assim um sistema institucional de gestão de transportes interurbanos na cidade que se presumia ser um ganho para todos os que dele se dependessem.

Ganhos e perdas

Estima-se que o terminal de Hiaces na Praia tem contribuído, e de forma evidente, para o descongestionamento e a redução do caos rodoviário e acidentes na cidade, sobretudo ao longo do percurso Sucupira-São Filipe. O barulho resultante de buzinas, dos gritos infindáveis de “bu sta bai?”; “Somada?”, “Calheta?”, ect., formando uma perfeita cacofonia, enquanto os condutores faziam a “torada” (voltas), deixaram de se ouvir, resultando assim num ambiente mais apaziguado naquela parte da cidade. Ademais, o terminal contribuiu sobretudo para a geração de uma micro-sociedade composta no seu âmago pelos condutores, ajudantes, controladores, forças de segurança, vendedoras ambulantes, transeuntes, passageiros, etc., todos conectados por normas institucionais vinculativas, mas sobretudo pela confiança generalizada que se formou entre eles. Por um lado, a colaboração e a confiança entre as instituições envolvidas, e por outro lado, a confiança entre os usuários do terminal, e entre estes e aquelas instituições, contribuíram para a geração de um capital social abrangente, garante do funcionamento ordeiro do terminal, e uma gestão razoavelmente eficiente do transporte interurbano, ligando Praia a outros municípios do interior da ilha de Santiago.

Para os condutores, um dos principais visados da política, o terminal passou a poupar-lhes do stress e da humilhação por que tinham que passar muitas vezes, fruto das incontáveis voltas e de insistências com os passageiros para que estes pudessem viajar nos seus carros. Se para os Hacistas que tinham a sua clientela fixa, e que com bons enchedores conseguiam dar mais voltas do que os seus concorrentes, para a grande maioria dos condutores a medida passou a igualar a oportunidade de voltas e de rendimentos entre eles, uma vez que todos tinham a possibilidade de dar pelo menos uma volta num dia. Nenhum condutor se sentia encorajado em dar a “folada” (sair, ou não colocar-se na fila, optando-se por “torar” e pegar os passageiros “na cabeça de fila”, e ao logo da avenida como antes acontecia) porque sabia de antemão que seria severamente multado pelo agente da Polícia Nacional presente no local, ou nos postos de controlo à saída da cidade para o interior da ilha de Santiago. Contudo, mais do que evitar as multas, havia um incentivo no seio dos condutores em cumprir as regras e as normas institucional e socialmente estabelecidas, evitando assim de serem mal-vistos pelos colegas e conotados como “confuzentus”.

Já para os viajantes, apesar da maçada de se deslocarem ao Sucupira, viam-se livres dos gritos, dos puxões e empurrões a que eram muitas vezes sujeitos devido à concorrência renhida entre os enchedores, e das voltas infindáveis (torada) entre Sucupira e a Rotunda de Ponta D’Água, uma prática necessária para que os Hiaces completassem os lugares, ou seja, da ti pó.

Os enchedores são os que se calhar tiveram a maior perda com a instalação do terminal. Um bom número deles caiu no “desemprego”, já que os seus serviços deixaram de ser tão prestativos como antes o foram. Contudo, alguns deles, como o Zé, tiveram a sorte de ali ficar para “orientar” os passageiros e, assim, ganhar alguma coisa com a benevolência dos condutores. Poucos deles foram contratados pela Câmara Municipal para ocuparem alguns “novos postos” que surgiram com a instalação do terminal, como é o caso dos controladores. E alguns deles ainda reclamam, “a Câmara, se fosse inteligente cobrava a senha, e com isso podia perfeitamente empregar-nos todos, nem que for para varrermos e limparmos o espaço aqui no terminal”.

Mudança institucional, fim da cooperação institucional e o fenómeno de “folada”

Durante a campanha para a eleição autárquica de 2020, Francisco Carvalho, então candidato do PAICV a presidente da Câmara Municipal da Praia, prometera que caso fosse eleito, suspenderia o pagamento da senha, mas mantendo o terminal, como forma de aumentar o rendimento dos condutores, proprietários de Hiaces e das suas famílias. O Francisco venceu a eleição e cumpriu a sua promessa, mostrando que não há diferença entre “compromissos de campanha e compromissos de governação”. Todos o aplaudiram, dizendo “o homem de facto cumpriu a sua palavra”. Contudo, o que todos inicialmente pensaram ser uma boa “boa decisão”, incluindo o próprio Francisco, talvez por desconhecimento dos “detalhes” da medida, logo começou a mostrar-se contraproducente, perigando os “ganhos colectivos” alcançados até então. Porquê?

1. Mais do que uma receita adicional para os cofres da Câmara Municipal (e que com isso garantia o compromisso acordado com as outras instituições envolvidas, nomeadamente a Polícia Nacional, os controladores e outros serviços), o pagamento da senha representava uma parte do compromisso assumido pelos condutores para com o sistema institucional e social que garantia a gestão do terminal. Nota-se que o pagamento da senha em si, representava uma poupança, por isso, um ganho para os condutores. Por exemplo, se antes um condutor de Hiace na linha Praia-Assomada pagava a um ajudante 250 Escudos por cada enchimento, já no terminal passa a pagar 150 Escudos (o valor da senha), sem contar com a queima de combustível, desgaste do veículo, risco de acidente, e sobretudo do stress das toradas. A suspensão da cobrança desse valor, que hipoteticamente garantir-lhes-ia mais rendimentos, está a provar-se o contrário, na medida em que há um número crescente de folada, reduzindo de forma considerável a frequência de partidas do terminal. Segundo um responsável da Associação dos condutores de Hiaces, “com o cumprimento rigoroso de filas, era normal um condutor fazer duas voltas Praia-Assomada num mesmo dia. Agora, com a prática de “folada”, o mais normal é que ele passe dois dias sem sair de fila”. E reafirma que com a impunidade que está a generalizar-se, “os não cumpridores estão a ser compensados pela sua prática, razão pela qual a lista dos que dão folada aumenta todos os dias. E nós os cumpridores estamos a sofrer”. Dando menos voltas, resulta obviamente num menor rendimento. Os condutores sentem-se isso, e estão dispostos a pagar, se disso depender a retoma da ordem. Afirma o mesmo responsável, “nós queremos pagar para que se reponha a fiscalização policial. Já falamos com a Polícia, mas disseram-nos que só a Câmara pode fazer isso”. 

2. Segundo as informações recolhidas, a Polícia Nacional, mediante um acordo com a Câmara Municipal, garantia os serviços de fiscalização permanente no terminal e nos pontos de controlo. Deve-se realçar que a fiscalização era garantida pelos agentes da polícia que se disponibilizaram para trabalhar nas suas horas de folga, e que por isso deviam ser devidamente compensados. A Câmara Municipal assumia os custos dessa compensação, e deixando de o fazer, a outra parte, a Polícia Nacional, deixou também de destacar os agentes nos terminais nos mesmos moldes que antes fazia. Ou seja, hoje não há agentes destacados exclusivamente para colaborar com os guardas municipais no terminal, e nem nos pontos de controlo. Esta decisão, pelo que parece, provocou a perda de confiança e de colaboração institucional, criando assim um vazio institucional, dissipando por sua vez um clima de desconfiança generalizada no seio dos condutores e outros usuários do terminal. É essa desconfiança que está na origem do fenómeno folada, e ameaça a qualquer altura, caso não forem introduzidas correções, desestruturar o terminal e toda a organização do transporte interurbano na cidade da Praia. Como afirma o supracitado responsável da Associação dos condutores, “nós que ainda cumprimos a fila, já decidimos que se nada for feito, a breve trecho vamos também voltar à moda antiga- todo o mundo na torada. Ou tudu homi na fila, ou tudu homi ta tora”.

Que soluções?

A “cobrança acordada” da senha foi uma amarra institucional em torno da qual toda a organização, gestão e o funcionamento do terminal e dos transportes interurbanos na cidade da Praia passaram a depender-se. Qualquer outra medida a posteriori fora do âmbito dessa amarra, como está a acontecer neste momento, seria condicionada pelos efeitos da dependência da trajetória. Prova disso, é que a sua suspensão, sem ser acompanhada de nenhuma outra medida compensatória ou outra de natureza incrementalista, está a ter os efeitos acima descritos. Diante disso, parece-nos plausível que se considere os seguintes pontos:

1. Reposição dos serviços de fiscalização policial: não se vislumbra que o Sr. Presidente venha de imediato, e de ânimo leve decidir pela retoma da cobrança da senha, sob pena de ele tiver que pagar algum “preço político” (mesmo que seja um valor menor, mas que poderá até compensar). Contudo, o que se espera, e é a solução aventada por muitos, é que o Sr. Presidente encontre e aloque as verbas necessárias no sentido de repor a colaboração da Polícia nacional, garantindo a fiscalização permanente no terminal e nos postos de controlo.

2. Uma outra via defendida também por muitos, é a possibilidade da Associação dos condutores fazer a cobrança da senha e ela mesma encarregar-se de custear os serviços de fiscalização policial, e outros serviços necessários para o normal funcionamento do terminal. Aliás, se a Associação estiver minimamente bem organizada, e num acordo tripartido com a Câmara Municipal e a Polícia Nacional, seria a instituição ideal para fazer a gestão do terminal de Hiaces. A verdade verdadeira é que, desabafa um condutor, “Si ka tomadu medidas, nos tudu ta sai di fila y cada omi ta bai kata si pasajerus”, e quiçá o Zé e os colegas enchedores, voltando à estrada e colectando de Hiace em Hiace consoante o número de enchimentos, viverão dias melhores. Quer a cidade da Praia reviver esse cenário de novo? 

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