E se o infrator pudesse falar sobre a justiça: Entre a punição e a humanização
Ponto de Vista

E se o infrator pudesse falar sobre a justiça: Entre a punição e a humanização

Cabo Verde tem a oportunidade de reinventar sua justiça, transformando-a de instrumento de exclusão em ferramenta de construção de dignidade. O caminho é longo, mas começa com um passo simples: enxergar o infrator não como um problema a ser eliminado, mas como um cidadão a ser resgatado. Como muito bem lembrado por Dostoiévski: "O grau de civilização de uma sociedade pode ser julgado por suas prisões". Se quisermos um mundo mais justo, é tempo de trazer os excluídos para o centro do debate não como monstros a serem temidos, mas como espelhos de nossas próprias falhas coletivas.

A história de resistência e construção identitária de Cabo Verde, consolidou-se como um Estado democrático comprometido com os direitos humanos e o Estado de Direito. Contudo, como em toda sociedade em evolução, o sistema de justiça enfrenta desafios estruturais e culturais, choques entre a punição como mecanismo de controle social e a necessidade de humanização das penas, em busca de um equilíbrio que promova não apenas a ordem, mas também a reintegração e a transformação. Enquanto o país avança em indicadores de desenvolvimento humano, a realidade do sistema judicial e prisional revela tensões profundas entre o legado colonial, as desigualdades sociais e a busca por uma justiça que não apenas castigue, mas também reintegre e transforme.

A justiça, em sua essência, busca equilibrar a ordem social com a reparação de danos. No entanto, quando analisada sob a ótica de quem a enfrenta do lado oposto, o infrator, ela revela contradições profundas que desafiam sua pretensa neutralidade. O sistema jurídico, muitas vezes retratado como um mecanismo impessoal e racional, é percebido por aqueles que o desafiam como uma estrutura que oscila entre a justiça e a opressão, a redenção e a exclusão. Esse paradoxo exige uma reflexão crítica: como o infrator enxerga a justiça, e o que essa visão revela sobre as falhas estruturais do sistema?

A justiça em um contexto pós-colonial

A herança colonial portuguesa ainda ecoa no sistema jurídico cabo-verdiano, muitas vezes reproduzindo estruturas hierárquicas e punitivas que pouco dialogam com as particularidades locais. Durante séculos, a justiça serviu como instrumento de controle sobre corpos marginalizados, primeiro sob o regime escravocrata, depois sob um sistema que priorizava a manutenção da ordem pública em detrimento da inclusão social. Hoje, embora Cabo Verde seja reconhecido por sua estabilidade democrática, o sistema judicial carrega o peso dessa história. Para muitos infratores, especialmente jovens das periferias urbanas, a justiça é percebida como uma extensão da exclusão que já vivem, mas a justiça responde com prisões superlotadas, onde a reinserção social é uma utopia.

A punição como resposta social: entre a retribuição e o esquecimento

No imaginário coletivo, a punição costuma ser vista como um instrumento de justiça e dissuasão. No entanto, o sistema penal, herdeiro de estruturas coloniais e adaptado a contextos pós-independência, prioriza a privação de liberdade como principal forma de sanção. Contudo, a realidade carcerária do país, como em muitos outros lugares, reflete condições precárias e limitações na oferta de programas educativos, psicológico ou terapêuticos. Para o infrator, à pena de prisão muitas vezes se traduz não em redenção, mas em marginalização ampliada.

A perspetiva do condenado revela um ciclo vicioso: a exclusão social prévia frequentemente o leva ao crime. A prisão, por sua vez, aprofunda essa exclusão, dificultando sua reinserção após o cumprimento da pena. Nesse sentido, a punição puramente retributiva falha em romper com as causas estruturais da criminalidade, perpetuando um sistema que castiga indivíduos sem confrontar as raízes do problema.

A justiça como espelho das desigualdades

Para muitos infratores, especialmente os marginalizados socioeconomicamente, a justiça não é um conceito abstrato, mas uma experiência marcada por desigualdades concretas. Em nosso sistema, a justiça não é apenas um mecanismo de aplicação da lei, mas um reflexo profundo das assimetrias sociais que moldam o arquipélago. Enquanto o país é celebrado internacionalmente por sua estabilidade democrática e crescimento econômico moderado, o sistema judicial revela, como um espelho nítido, as fissuras de uma sociedade ainda marcada por exclusão, disparidades regionais e acesso desigual a direitos fundamentais. A relação entre pobreza e encarceramento em Cabo Verde é direta. Dados do Instituto Nacional de Estatística (2022) indicam que 34% da população vive em situação de pobreza multidimensional, com maior concentração em zonas rurais e bairros periféricos urbanos. São nessas áreas que o Estado enfrenta desafios crónicos: escolas precárias, falta de infraestruturas básicas e desemprego juvenil acima de 25%. Não por acaso, é também nessas comunidades que a criminalidade, especialmente pequenos furtos, tráfico de drogas e conflitos interpessoais e de grupos, torna-se uma resposta à ausência de oportunidades.

O sistema de justiça, ao priorizar a repressão penal sobre a prevenção social, acaba criminalizando a pobreza. Jovens de bairros como Monte Sossego (Praia) ou Ribeira Bote (Mindelo), ou ainda São Bento em Assomada (Santa Catarina), muitas vezes sem antecedentes violentos, são levados a prisões por crimes ligados à sobrevivência, enquanto delitos de colarinho branco como corrupção ou lavagem de dinheiro seguem subnotificados e impunes. Essa seletividade judicial reforça a ideia de que a justiça é "cega apenas para alguns".  Ter direitos não significa ter acesso a eles, a defesa pública é insuficiente para atender à demanda, e muitos réus sequer compreendem os processos judiciais devido ao analfabetismo funcional (que atinge 18% da população adulta). Enquanto isso, elites económicos e políticos mobilizam redes de influência para evitar responsabilização. Um exemplo emblemático é a lentidão na investigação de casos de corrupção de alto escalão, contrastando com a rapidez em processos contra jovens da periferia. Essa dualidade corroi a confiança popular: para muitos cabo-verdianos, a justiça é percebida como um instrumento de manutenção do status quo, não de transformação.

Os jovens são as principais vítimas e protagonistas dessa justiça desigual. Sem acesso a emprego digno (o desemprego juvenil chega a 30%), muitos veem no crime a única via de afirmação. Quando aprisionados, enfrentam um sistema prisional que os estigmatiza e exclui, sem oferecer educação ou formação profissional significativa. O resultado é uma geração perdida, cujo potencial é desperdiçado pela combinação de negligência social e repressão penal.

A falácia da neutralidade e o estigma do "criminoso"

A linguagem jurídica, repleta de formalismos, tende a desumanizar o infrator, reduzindo-o a um "caso" ou a um "réu". Essa objetificação ignora trajetórias marcadas por violência estrutural, falta de oportunidades e ciclos de vulnerabilidade. Quando um jovem de periferia é condenado por tráfico de drogas, por exemplo, raramente se discute como a ausência do Estado em áreas como educação, saúde e emprego o levou a essa escolha. A justiça, ao focar apenas no ato ilícito, reforça um estigma que dificulta a reinserção social. O resultado é um sentimento de injustiça cíclica: o sistema pune, mas não oferece caminhos para romper com a criminalidade. Nas palavras de um ex-recluso "Sair da cadeia é como voltar ao mesmo lugar, sem perspetiva. A sociedade me vê como bandido, e a justiça só me deu mais motivos para acreditar nisso."

Entre a punição e a restauração: um caminho possível?

Há, no entanto, alternativas emergentes que desafiam a lógica punitiva. A justiça restaurativa, por exemplo, propõe um diálogo entre vítima e infrator, buscando reparação e responsabilização sem desumanizar. Países como Nova Zelândia e Canadá adotaram práticas similares com resultados promissores: taxas de reincidência menores e maior satisfação das vítimas. No Brasil, projetos como os Centros de Integração da Cidadania (CICs) tentam humanizar o processo, oferecendo mediação de conflitos e apoio psicossocial. Essas iniciativas ainda são incipientes, mas apontam para um modelo em que a justiça não apenas pune, mas também reconstrói.

Por uma justiça que enxergue além do crime

O olhar do infrator sobre a justiça expõe uma verdade incômoda: o sistema atual, embora necessário, frequentemente falha em cumprir seu papel de promotor de equidade. Para que a justiça seja verdadeiramente justa, é preciso reconhecer que por trás de todo ato ilícito há uma história muitas vezes de abandono, violência ou desespero que não pode ser ignorada.

Isso não significa absolver crimes, mas repensar a justiça como um mecanismo que combina responsabilização com empatia. Como escreveu o jurista Alessandro Baratta, a criminologia crítica nos ensina que "a segurança não se constrói com mais prisões, mas com mais direitos". Só quando a justiça enxergar o infrator como um sujeito de transformação, e não como um inimigo a ser eliminado, ela poderá cumprir sua promessa de dignidade para todos.

Prisões: espelhos de uma sociedade dividida

As cadeias, como a de São Martinho, refletem um sistema em crise. Os dados apontam superlotação, condições sanitárias precárias e acesso limitado a programas educacionais ou de trabalho. Para os detentos, a experiência prisional não é de redenção, mas de abandono. Um ex-recluso, em entrevista ao jornal A Nação, descreveu: "Na cadeia, você vira um número. Ninguém pergunta porquê você chegou aqui, só querem que você cumpra a pena e desapareça." Esse cenário reforça um ciclo vicioso: a prisão, longe de ressocializar, marginaliza ainda mais. O estigma do "ex-presidiário" fecha portas para empregos formais, empurrando muitos de volta à criminalidade. A justiça, nessa perspetiva, parece cumprir um papel mais de contenção do que de transformação.

Um dos maiores paradoxos do sistema cabo-verdiano é a invisibilidade da perspetiva do infrator nos debates sobre justiça. Enquanto a sociedade clama por segurança, poucos se perguntam como jovens condenados por furto, enxergam o sistema. Em depoimento a uma ONG local, um jovem afirmou: "Roubei para comer. Na audiência no tribunal, o juiz me olhou como se eu não fosse gente. Mas quem me deu escolha?" Casos como este expõem a desconexão entre a justiça formal e as raízes socioeconômicas do crime.

Justiça como projeto de futuro

A justiça não deve ser um fim em si mesma, mas um meio para construir uma sociedade mais equânime. Em Cabo Verde, olhar para o infrator não como um "inimigo a ser eliminado", mas como um sujeito de direitos e responsabilidades, é um passo necessário para romper ciclos de violência e exclusão. Humanizar as penas não significa absolver crimes, mas reconhecer que a verdadeira justiça se mede pela capacidade de transformar vidas, restaurar laços e prevenir que novos danos ocorram.

Ouvir os infratores não é sobre defender criminosos, mas sobre entender que um sistema que só pune fracassa em proteger a sociedade. A humanização não é um gesto de bondade, mas um imperativo ético e pragmático: pessoas tratadas com dignidade têm mais chances de se tornarem cidadãos responsáveis. Enquanto a justiça for sinônimo de sofrimento, e não de transformação, estaremos todos dentro e fora das celas, presos em um ciclo de violência sem fim. 

O olhar do infrator sobre a justiça não é um mero detalhe, mas um alerta: um sistema que só pune, sem escutar, reproduz as mesmas violências que deveria combater. A humanização da justiça não é um gesto de fraqueza, mas um reconhecimento de que até quem erra é parte do tecido social.

Encarar o infrator como vítima do sistema é um exercício de humildade para a sociedade. Significa admitir que o crime é, muitas vezes, um grito de socorro de quem foi invisibilizado pelo Estado e pela comunidade. A justiça penal não pode continuar sendo um depósito de pessoas marginalizadas, enquanto as falhas estruturais seguem intocadas.

Afinal, como disse Mandela, "ninguém nasce odiando outra pessoa". Temos a  oportunidade de provar que, mesmo na escuridão do crime, a luz da redenção é possível. Como escreveu o poeta Oswaldo Osório, "um povo que não sabe olhar para suas feridas jamais será livre". Cabo Verde tem a oportunidade de reinventar sua justiça, transformando-a de instrumento de exclusão em ferramenta de construção de dignidade. O caminho é longo, mas começa com um passo simples: enxergar o infrator não como um problema a ser eliminado, mas como um cidadão a ser resgatado. Como muito bem lembrado por Dostoiévski: "O grau de civilização de uma sociedade pode ser julgado por suas prisões". Se quisermos um mundo mais justo, é tempo de trazer os excluídos para o centro do debate não como monstros a serem temidos, mas como espelhos de nossas próprias falhas coletivas.

 

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