Revolta é o mínimo dos sentimentos que invade os corações dos cabo-verdianos desde sábado, 23. A morte da jovem parturiente Eloisa Correia na ilha do Sal, depois de uma flagelada e indigna viagem de barco desde a Boa Vista, que a Binter se demite dessa responsabilidade, alarma qualquer um.
E nem tem tanto a ver com o facto de a Binter “lavar as suas mãos” desta indecência humana – porque, como a empresa privada se escusa de só ter autorização para transportar passageiros e cargas, e não doentes a necessitar de evacuação – mas porque, de repente, nos vemos, nós todos cabo-verdianos, iminentemente vulneráveis, frágeis e impotentes.
Cada um de nós tem parente, amigo ou familiar próximo a viver nas nove ilhas habitadas deste país. Cada um de nós sofre só de pensar “que o próximo pode ser você”. Porque por mais que tentemos ilibar o sistema e as leis que o regem é impossível ficar indiferente a tamanha barbárie institucional. A partir do momento em que o dinheiro sobrepor as pessoas deixamos de ser gente e passamos a funcionar como animais com um padrão de conduta.
O mais grave é que esta não é primeira vez que tal descaso em relação a cidadãos nacionais acontece. O que demonstra como a classe governante vem lidando com os problemas sociais de base que nos afligem desde a independência.
O PAICV, nos 15 anos que governou o país em democracia, não conseguiu criar condições nas ilhas para reduzir a dependência dos hospitais centrais no que toca aos cuidados mais prementes. O MpD está com puco tempo na administração do país, mas isso também não o iliba, porque disse ter solução, mas misturou alhos com bugalhos. A começar por esse estranho acordo com a Binter, sem negociar de antemão a possibilidade de a empresa de capital canariense poder assegurar o transporte de passageiros em situações de emergência, serviço, que, bem ou mal, a TACV, retirada do mercado inter-ilhas, fazia.
Neste momento, todos os cabo-verdianos estão a absorver a dor de Eloisa e de seus familiares. Porque é deveras lamentável um país que se arroga de ser exemplo em África, a nível da boa governação, e permitir que parturientes sucumbam por falta de condições clínicas na ilha onde residem ou por falta de transporte aéreo (e estamos a falar de um arquipélago) para as socorrer.
Neste quesito, até faz sentido adicionar onde estes descasos têm estado a ocorrer: Boa Vista e Maio, ilhas turísticas. É bom que se perceba que no dia em que um turista sentir mal e necessitar de ser transportado para um hospital central e não houver avião, toda a política do turismo irá por água abaixo.
A Binter, da sua parte, já fez saber que não é da sua conta prestar esse tipo de serviço, debitando a culpa ao Governo e ao INPS. Tem razão, a sua insensibilidade brota de outra insensibilidade primordial: o mau contrato que o Governo assinou, fazendo que com que opere em regime de monopólio com a incompreensível saída da companhia de bandeira nacional dos voos inter-ilhas.
O Governo, por sua vez, anuncia a abertura de um inquérito para apurar o caso de Eloisa, no que parece ser mais uma tentativa de gerir expectativas. Numa recente entrevista concedida à TCV, o primeiro-ministro anunciou a compra de um novo avião para a Guarda Costeira já equipado com meios clínicos para os primeiros socorros. A informação surgiu depois de outro caso similar – uma mulher perdeu o filho no trajecto maio-Praia de bote – e foi aplaudida pelos mais ferrenhos mpdistas, como se já fosse um ganho adquirido. O PAICV fizera a promessa mesmo com os helicópteros, lembram-se?
O país está numa fragilidade sanitária e mobilitária preocupante. A indignação é do tamanho deste nosso Cabo Verde. A mágoa tem a extensão do nosso mar.
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