Engana-se quem pensa que as pessoas dentro de casas trancadas estão a salvo. Os gatunos já fazem visitas constantes às pessoas na calada da noite. Os grupos de delinquentes na Praia, os novos homens fortes de Cabo Verde, ou como alguns lhes chamam, novos donos de Terra, conseguiram uma grande proeza: extinguir um dos rituais seculares mais antigos da ilha de Santiago, o tresnoitar com os familiares dos defuntos, até altas horas da madrugada e rezar o terço ao cair da noite pelos defuntos. Quem se arrisca a ir a esses rituais, no regresso a casa, dificilmente escapa a uma emboscada. Não passou um mês, telefonei a um conterrâneo de Banana, residente em Achada Grande Frente, para irmos às 19h00 fazer uma visita no bairro de Castelão onde tinha morrido um conhecido nosso, ele colocou-me duas condições impossíveis: primeira arranjar-lhe um colete à prova de balas e outra levá-lo no fim da visita até a soleira da sua porta.
Há poucos dias, altos responsáveis pela segurança interna nacional informaram o país que a criminalidade aumentou em 2021 em 33%. Este número só peca por defeito, pois é facto de que Polícia Nacional não tem o monopólio dos registos criminais das mais de cem variedades de crimes existentes. O que mais chega à Polícia Nacional são os crimes de danos, porque há quem denuncie apenas na Polícia Judiciária, outros na Procuradoria da República e há os que preferem suportar a sua dor sem fazer denúncias por desacreditarem nas instituições que lidam com o fenómeno criminal.
Os praienses, fartos de exigirem mais e melhor segurança, hoje, estão resignados e sitiados. O próprio primeiro-ministro também já deve estar resignado depois de ter investido milhões de escudos nas câmaras de videovigilância - a fastidiosa e muito propalada cidade segura. Passados anos, sem resultados, vir agora ouvir a estapafúrdia desculpa da boca do seu ministro de administração interna que uma das causas do aumento exponencial da criminalidade é a retoma da vida social, depois de o mesmo se ter gabado de que de 2016 a 2020 o crime tinha baixado, numa altura em que não havia confinamento, quando havia festivais e bailes por todos os concelhos, cidades e vilas do país é de bradar aos céus.
Uma coisa é certa, com o esvaziamento das Esquadras em termos humanos e com a concentração do grosso dos efetivos no Piquete, uma espécie de bombeiros que aguarda a chamada das ocorrências através do 132 não está a resultar: primeiro, porque 132 tem revelado pouca celeridade no atendimento das chamadas; segundo, porque o pessoal de Piquete nas viaturas paradas ou a circular nas principais avenidas da capital, dificilmente flagra crimes a acontecer ou que acabam de acontecer nos diferentes bairros. Quando chega é para socorrer as vítimas para o hospital ou para ouvir a descrição dos assaltantes que já estarão a monte. As várias Esquadras existentes nos bairros não têm capacidade humana para acorrer os casos que surgem a 70 metros de distância.
Ainda, há um outro aspeto a salientar: na Polícia, há quadros muito bem formados nas academias europeias, com ideias claras de como combater o crime. Há também subchefes e agentes capacitados, mas por não estarem no cume da pirâmide, onde tudo é decidido, não são tidos nem achados. Há, ainda, no grupo de decisores, pessoas que não entendem patavina de matéria policial. Um dia, com a passagem à reforma desse grupo, as coisas começarão a entrar nos eixos.
O ministro da administração interna quererá dizer que para a melhoria da segurança e das estatísticas criminais o povo tem que viver permanentemente confinado?
A situação no país é tão grave que pela primeira vez na história destas ilhas, ouvimos o digno Procurador-Geral da República, Dr. José Landim, magistrado com longa carreira a sugerir operações especiais para combater o crime na cidade da Praia.
Não sabemos os contornos dessas operações especiais. Se serão feitas com estudantes, trabalhadores ou outros elementos da sociedade civil desarmados ou se serão feitas com homens armados com armas de guerra contra gangs também armados.
Se são grupos armados contra grupos de delinquentes também armados, o resultado não será igual ao que vemos na Ucrânia, com cadáveres nas ruas e destruição de edifícios, mas será algo semelhante, em miniatura, ao nosso nível. Basta recordarmos que aquilo que está a acontecer na Ucrânia, conforme definição de Vladmir Putin, não é guerra, mas sim uma operação especial.
Estou curioso para ouvir alguns deputados da nação sobre o que pensam dessa sugestão do Procurador-Geral, aqueles negacionistas de sempre, que para eles exigir mais segurança interna é atacar o primeiro-ministro, é atacar o ministro, é atacar a justiça e as forças policiais. Aqueles que consideram que os bairros da Praia são os mais seguros do mundo. Já agora, sugiro a esses deputados negacionistas uma visita ao banco de urgência do hospital Agostinho Neto, preferencialmente, nas noites de sexta-feira, sábado e domingo para verem quem mais demanda esses serviços ou para proporem uma audição parlamentar aos cirurgiões desse hospital a fim de conhecerem as suas experiências em matéria de enxerto de tecidos humanos danificados pelas perfurações de balas, pedras, cortes de garrafas, catanas, facas, x-ato, queimaduras com água fervente e fraturas causadas por tacos de beisebol… Esses mesmos senhores que passam horas e mais horas a tentar salvar vidas e que também já foram vítimas de “kasu bode”.
Engana-se quem pensa que as pessoas dentro de casas trancadas estão a salvo. Os gatunos já fazem visitas constantes às pessoas na calada da noite. Os grupos de delinquentes na Praia, os novos homens fortes de Cabo Verde, ou como alguns lhes chamam, novos donos de Terra, conseguiram uma grande proeza: extinguir um dos rituais seculares mais antigos da ilha de Santiago, o tresnoitar com os familiares dos defuntos, até altas horas da madrugada e rezar o terço ao cair da noite pelos defuntos. Quem se arrisca a ir a esses rituais, no regresso a casa, dificilmente escapa a uma emboscada. Não passou um mês, telefonei a um conterrâneo de Banana, residente em Achada Grande Frente, para irmos às 19h00 fazer uma visita no bairro de Castelão onde tinha morrido um conhecido nosso, ele colocou-me duas condições impossíveis: primeira arranjar-lhe um colete à prova de balas e outra levá-lo no fim da visita até a soleira da sua porta.
Uma outra tradição antiga dos santiaguenses de mandar crianças numa espécie de teste à sua capacidade de dar recados, contar os tostões e receber trocos corretamente, para comprar petróleo, fósforo, sal, açúcar e pão já faz parte do passado. Nenhuma família quer ter a amarga experiência do infortúnio vivido pelos familiares de Nina, Filú e outras crianças desaparecidas sem deixar rastro.
As mulheres santiaguenses e praienses já deixaram de se adornar com lindos brincos, anéis e colares de ouro. Estas são peças guardadas a sete chaves, sob pena de irem reparar os lobos das orelhas ou os dedos no banco de urgência.
Na Praia, as pessoas andam a esconjurar o mal-estar noturno que as poderá afetar diretamente ou aos familiares, porque, quem não tem viatura topo de gama e segurança pessoal, prefere ficar sentado na urgência até o raiar do dia a arriscar o regresso à casa e sofrer danos maiores do que aquele que o levou à urgência.
As Escolas Secundárias que funcionavam no horário pós-laboral até às 21h30, foram obrigadas a adotar um novo horário já que chegar a casa nessa hora sem ter que entregar tudo aos larápios é um milagre.
Que cidadão desta cidade se atreve a fazer sesta, depois do almoço, debaixo de uma árvore nos arredores da sua casa e se deixar embalar pelo sono?
Quem tinha esperança de dias melhores em termos de segurança em Cabo Verde, já sabe que de acordo com as declarações estapafúrdias do ministro da administração interna, só será possível se a covid persistir e nos mantivermos permanentemente em confinamento - o que seria muito mau para os cabo-verdianos e para o nosso ministro de saúde que espera ardentemente pelo fim da pandemia para juntos cantarmos vitória.
Praia, 05 de abril de 2022
Elias Silva
Comentários