O Tribunal de Contas detectou novas ilegalidades cometidas nos gastos da Presidência da República entre 2021 e 2023 e que não constam do relatório da Inspeção de Finanças. Além do salário da primeira-dama, que, sabe-se agora, o ex-Chefe da Casa Militar se opôs na altura, os auditores do TdC descobriram, por exemplo, que a PR vinha pagando de forma ilegal serviços de massagens a funcionários e colaboradores, consultas de psicologia, etc., no valor de 1.292.900 escudos; contratou assessores especiais a mais do estipulado pela lei; atribuiu mais de 5 mil contos de subsídios de compensação pela utilização de viatura própria. O Tribunal de Contas encontrou também 26 contratos ilegais celebrados com pessoal (sem concurso), mas nota que esta é uma prática que vem desde Jorge Carlos Fonseca. O TdC já notificou o Ministério Público junto deste Tribunal por isso não há ainda condenações. Caso houver, nunca será o presidente da República, e sim o chefe da Casa civil e a directora-geral de Administração da PR os condenados.
O relatório do Tribunal de Contas sobre as despesas feitas pela Presidência da República entre 2021 e 2023 faz manchete do jornal A Nação desta quinta-feira, que detalha ao pormenor todos os aspectos abordados no documento. O semanário da Cidadela, citando o relatório do TdC, revela que além do salário de 310 contos pagos de forma ilegal à Debora Katiza Carvalho, na qualidade de Primeira-dama, “a Presidência da República assumiu e pagou «ilegalmente», através serviços contratualizados, despesas relacionadas com sessões de massagem, compra de óculos, consultas de psicologia aos seus funcionários e colaboradores, no montante de 1.291.900 CVE, entre 2021 e Janeiro de 2024, numa clara violação da lei”.
O relatório refere também que no Palácio do Plateau “existe a prática de adiantamento de salário, que «não é permitida por lei», e que, entre 2021 e 2023, a Presidência investiu 4.284.297 CVE em compra de férias dos funcionários, outra violação das leis da República. Foram ainda celebrados sete contratos de consultoria que excederam o limite do valor estipulado no Código da Contratação Pública.
De acordo com a mesma fonte, a Presidência da República pagou subsídio de compensação pela utilização de viatura própria a vários colaboradores, no montante global de 5.508.493 CVE, “ilegalmente, configurando em pagamentos indevidos por não existir lei permissiva para realizar as referidas despesas” e contratou seis assessores especiais, quando a Lei Orgânica da PR permite a contratação de apenas cinco.
Sobre o subsídio de 10 mil escudos mensais pela utilização de viatura própria dos funcionários vale referir que se trata de uma prática que vem de administrações anteriores. Aliás, os antigos responsáveis da administração da Presidência da República justificam a atribuição desse subsídio com o facto de se tratar de uma “prática antiga herdada das Presidências anteriores a 2011, cuja informação/proposta sobre a matéria fora apreciada e decidida positivamente em sede do Conselho de Administração e autorizada pelo Chefe da Casa Civil, Dr. Manuel Faustino, com anuência de S.E. o Presidente da República, e justifica-se pela não disponibilidade de viaturas de serviço para garantir o transporte de pessoal com direito ao mesmo”.
Já os actuais responsáveis admitiram que a atribuição do subsídio de compensação pela utilização de viatura própria ao pessoal “é uma
prática que foi encontrada na Presidência da República, com atribuição de montantes diferenciados em função de cada cargo. Essa prática foi
mantida pela atual gestão - com a diferença de se passar a atribuir o mesmo montante a todos, no valor 10.000 ECV, cada - na medida em que a Presidência da República não dispõe de meios de transporte para assegurar o direito do pessoal do quadro especial ao transporte nas deslocações de e para o local de trabalho”.
Salários ilegais
A directora-geral de Administração da PR, Carla Soares, foi contratada em Fevereiro de 2022, mas, diz o TdC, um ano e três meses depois, em Maio de 2023, “foi celebrada uma adenda ao contrato de gestão, tendo a mesma beneficiado de acréscimos remuneratórios passando de 200.000 CVE para 250.000 CVE”. Assim, conforme o TdC, houve pagamentos indevidos, no montante de 917.000 CVE.
Em sua defesa, a administração da PR, explicou que a actualização da remuneração da directora-geral de Administração, “teve como motivação, por um lado, equiparar a remuneração do cargo, com o geralmente praticado com os demais DGPOG da Administração Pública, nomeados por contrato de gestão, e por outro lado, aproximar ainda que por baixo, o montante da remuneração ao que ela receberia no seu quadro de origem, a DNRE, caso estivesse a desempenhar as suas funções como técnica de receitas”. Mas o TdC fez saber que o salário base de Carla Soares como técnica da DNRE é 145.500 CVE e que, mesmo com custas e coimais a sua remuneração mensal era de 218.389 CVE. “O salário fixado é superior ao salário que ela teria direito caso estivesse na DNRE, ao contrário do que disse em sede do contraditório”.
No caso da Débora Katiza Carvalho, na qualidade de Primeira-dama, a remuneração mensal e ilíquida foi de 310.606 CVE, atingindo um montante de 7.454.544 CVE, cheganmdo entretanto a 1.118.182 CVE de encargos patronal, assumidos e pagos, respetivamente, entre Janeiro de 2022 e Dezembro de 2023, “indevidamente”, por não existir um quadro legal (Estatuto próprio), “violando assim as normas constantes no art.º 240.º da Constituição da República de Cabo Verde, conjugado com os números 1 e 2 do art.º 27.º do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 19 de novembro, que define os princípios e as normas relativos ao regime financeiro da Contabilidade Pública”.
Este assunto, de resto, já fora escrutinado pela Inspecção Geral de Finanças, mas a grande novidade trazida pelo relatório do Tribunal de Contas é que no exercício do contraditório, o ex-Chefe da Casa Militar, Rui Armando Gonçalves, se opôs ao pagamento do salário à Primeira-dama. Gonçalves disse ao TdC que no início do exercício das funções assinava os cheques, inclusive o destinado ao pagamento à Primeira-dama, mas que, tendo duvidado que pudesse existir alguma irregularidade, contactou a directora-geral da Administração “para melhor esclarecer a base legal para se fazer tal pagamento”, tendo a directora Carla Soares dito que não dispunha.
Ao TdC, Gonçalves garantiu que deixou de assinar os cheques relativos ao pagamento da Primeira- -dama, informando inclusive ao própro Chefe da Casa Civil a propósito da sua decisão.
Mesmo com as justificações da PR de que “apresentou ao Governo um anteprojecto de nova Lei Orgânica, o qual contêm dispositivos jurídico-administrativos visando regular questões ainda não reguladas ou deficientemente reguladas relativamente à Primeira Dama” (“Tal anteprojeto foi remetido ao Governo através do ofício Refª 05/G-CCC-PR 2022, de 5 de Maio, do Chefe da Casa Civil à Sua Excelência a Ministra da Presidência do Conselho de Ministros”), o TdC não ficou convencido, considerando que “por não existir um quadro legal, o pagamento da remuneração à Primeira Dama, constitui uma ilegalidade”. E o A Nação acrescenta que, por ter sido uma decisão unilateral o Chefe da Casa Civil, Jorge Tolentino, é considerado responsável, enquanto agente da acção.
Pagamento de quadro
E o Chefe da Casa Civil também está envolvido em outra situação de alegada ilegalidade, por causa da aquisição pela Presidência da República de um quadro que pertencia precisamente a ele, Jorge Tolentino, da autoria da artista plástica Bela Duarte, no valor de 300 mil escudos. A proposta, de acordo com o TdC, partiu da directora de administração da Presidência, Carla Soares, ao Chefe da Casa Civil, que despachou o documento com um simples “de acordo”, consumando o negócio de pronto.
“Afigura-se ilegal, um titular de alto cargo público autorizar a aquisição de obra de arte de que ele mesmo é o dono”, escreveu o TdC, sublinhando que “trata-se de um ato que não deve fazer prática na Presidência da República, por não ser legal um dirigente praticar um ato de comércio com a sua entidade patronal, sob pena de ser punido nos termos da Lei”.
No contraditório, a administração do Palácio do Plateau diz que “importa referir que se trata de uma obra já relativamente antiga (de 2002), de uma das mais prestigiadas Pioneiras das Artes Plásticas cabo-verdianas, valorizada com o passar do tempo (…). Uma obra única, por conseguinte, dentre as poucas que a Artista produziu, sobretudo se se comparar com o seu legado no domínio da Tapeçaria”.
“O empréstimo ocorreu no contexto da preparação de uma visita de Estado e a urgência de ter minimamente arrumado e acolhedor um espaço privativo até então inexistente, precisamente a Sala de Audiências privativa. (…) Na sequência, interessou à Presidência ter tal obra no seu acervo, em definitivo, não ficando, por outro lado, dependente da situação de empréstimos”.
Contratações fora da lei
O TdC constatou no seu relatório que os procedimentos utilizados para contratação de pessoal pela Presidência da República “não têm vindo a obedecer as leis da República de Cabo Verde”. Mas o TdC ressalva que este é um mal que vem de longa data, pelo menos desde a presidência de Jorge Carlos Fonseca.
Como prova, o Tribunal de Contas apontou para a existência de 26 contratos celebrados com o pessoal “ilegalmente”. O TdC notou que a Presidência da República recruta pessoal à margem da lei, sem concurso público. E, sublinha o A Nação sempre citando o relatório do tribunal de Contas, levando em consideração que a investogação do TdC incluiu a parte final da presidência de Jorge Carlos Fonseca (2021), os membros da antiga administração da Presidência da República, Manuel Faustino, Casimiro Tavares, Bárbara Leite e Gabriel Gonçalves justificaram essa prática afirmando que “não procedeu a nenhum procedimento concursal por se tratar de pessoal contratado para desempenhar funções meramente administrativas e de apoio nas novas instalações da Presidência da República e nas Residências Civis, a partir de 2015, “por urgência e imperiosa necessidade dos serviços, designadamente jardineiros, condutores, rececionistas, guardas, etc.”.
Por sua vez, a ctual administração da Presidência da República composta por Jorge Tolentino (Chefe da Casa Civil), Rui Armando Gonçalves (Chefe da Casa Militar, substituído por Renaldo Rodrigues, em Janeiro de 2023), Mário Sanches (director de Gabinete) e Carla Soares (directora-geral da Administração) justificou as contratações sem concurso com a necessidade de se fazer substituições. “No âmbito da gestão de 2022/2023 e até à presente data, a Presidência da República recorreu exclusivamente a substituições, justificadas pela urgente necessidade da função, nomeadamente de um zelador, dois condutores para o Palácio no Plateau, um ajudante administrativo para São Vicente e um guarda para a residência oficial do Tarrafal, na decorrência da ausência de colaboradores das referidas funções por motivos de desvinculação, evacuação, doença e reforma”.
O TdC considera que as alegações apresentadas pelos responsáveis da Presidência, “não trouxeram nada de novo” que pudesse mudar a qualificação jurídica do facto formulado em sede do relato, pelo que “se mantém a posição”.
Segundo refere o jornal A Nação, face às ilegalidades constatadas na gestão da Presidência da República entre 2021 e 2023, o Tribunal de Contas decidiu aprovar o relatório de auditoria financeira e notificar o Ministério Público junto deste Tribunal.
“Não há condenações, nomeadamente ao Presidente da República, como circulou nas redes sociais. O relatório do TdC só será julgado em função das acusações do Ministério Público: se houver indícios de crime o caso será julgado pelos tribunais comuns e se houver matéria passível de responsabilização financeira o processo será julgado pela terceira secção do Tribunal de Contas. Mas, na eventualidade de haver condenações, o PR nunca será condenado. A administração da Presidência da República e o Chefe da Casa Civil poderão, estes sim, poderão ser condenados”, informa o semanário da Cidadela.
Comentários