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OE2023. A declaração do PR que promulga o documento na íntegra: Neves fala em injustiça salarial e defende pacto de regime
Política

OE2023. A declaração do PR que promulga o documento na íntegra: Neves fala em injustiça salarial e defende pacto de regime

"No OE2023, o montante previsto para o serviço da dívida pública, no valor de cerca de 26,2 mil milhões de escudos, equivale quase 60% das receitas fiscais (impostos e taxas) previstas para serem arrecadadas, o que significa que mais de metade dos impostos e taxas que os cidadãos residentes pagarão em 2023 irá para o pagamento dos juros e outros encargos (5,9 mil milhões de escudos) e amortização (20,3 mil milhões de escudos) da dívida, uma situação deveras preocupante e que deverá levar todos a uma reflexão séria e descomplexada!". A declaração do PR que promulgou, ontem, 28, o Orçamento do Estado para 2023 (OE2023). Na carta enviada ao Presidente da AN, que acompanha a promulgação, o PR deixa algumas reflexões sobre o mesmo, entre as quais a necessidade de “diálogo, entendimentos e consensos” entre os principais atores políticos, económicos e sociais. José Maria Neves clama por uma maior atenção às populações, sobretudo, as classes mais desfavorecidas, em termos de medidas de mitigação dos efeitos desta “policrise”, na qualidade de vida das pessoas, em particular no que toca às subidas dos preços de bens e produtos alimentares. "O OE2023 prevê um aumento dos salários e pensões da Administração Pública entre 690 e 1.155 escudos e apenas para aqueles que auferem estas prestações até ao valor de 69.000 escudos. É de salientar que esse aumento parcial dos salários, da forma como foi feito, sem os necessários ajustamentos a nível dos cargos e escalões, pode provocar sérias disfunções e injustiças no plano salarial das funções públicas", avisando também para "a questão de eventual inconstitucionalidade orgânica, do artigo 6.o da Lei que aprova o Orçamento de Estado para 2023, porquanto, a norma não respeita o número 3 do artigo 161.o, que impõe uma maioria na votação de matérias referentes aos titulares dos Órgãos de Soberania, onde naturalmente se inclui o disposto na alínea i) do artigo 176.o, “Eleições e estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e das autarquias locais, bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio direto e universal” (todos da Constituição da República)". Leia e avalie a carta do chefe de Estado ao presidente da AN aqui, na íntegra.

Praia, 28 de dezembro de 2022

 

Senhor Presidente da Assembleia Nacional,

Desejo, nesta oportunidade, significar-lhe o seguinte relativamente à Lei que aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2023:

 

1. Tendo em mãos o Orçamento do Estado para 2023 (OE2023), para promulgação, recebi, em audiências separadas, os partidos políticos com assento parlamentar e os parceiros sociais, com o objetivo de ouvir a leitura que dele fazem e as suas preocupações sobre a situação socio-económica do país, bem como o de agregar a pluralidade de opiniões e de propostas existentes, designadamente nas comunidades política, económica, empresarial e sindical. Na verdade, acredito que os ingentes desafios com que o mundo e o país estão confrontados impõem diálogo, entendimentos e consensos entre os principais atores e um claro e coerente sentido de mudanças mais radicais na formulação e implementação das políticas públicas.

2. Elaborado e debatido numa conjuntura de elevada incerteza, o Orçamento do Estado para 2023 (OE2023) baseia-se num quadro económico em mudança e de contornos imprevisíveis.

 

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Sua Excelência

Dr. Austelino Tavares Correia

Presidente da Assembleia Nacional

Praia

 

Vive-se uma policrise. Os tempos são difíceis, inéditos, complexos e incertos. As mudanças climáticas, e, no caso de Cabo Verde, os sucessivos anos de seca severa, a devastação socio-económica e sanitária provocada pela pandemia e os conflitos, particularmente a guerra na Ucrânia, têm tido consequências nefastas, designadamente a desaceleração do ritmo de crescimento económico e o aumento da inflação, do desemprego, da pobreza e das desigualdades.

Neste quadro, julgo que poderá haver um relativo otimismo no cenário macroeconómico apresentado pelo Governo, o que poderá justificar-se tendo em conta a evolução da economia em 2022 e que determinou uma execução orçamental claramente para além das expectativas mais otimistas, mormente no que se refere ao crescimento do PIB.

Contudo, os riscos de não concretização do cenário macroeconómico previsto são elevados e mostram tendência a aumentar ainda mais, considerando a evolução mais recente da situação internacional e os seus impactos nos mercados da energia e das commodities agrícolas.

Particularmente, no que diz respeito aos preços, deve-se ter em conta que a economia cabo-verdiana é permeável à inflação externa, principalmente dos seus principais parceiros económicos. Num contexto de crise energética na Europa e de disrupção no fornecimento de bens, em especial de produtos alimentares, o abrandamento da taxa de inflação, apontada pelo Governo, de cerca de 8% em 2022 para 3,7 % em 2023 está, assim, sujeito a um forte risco de natureza ascendente.

Situando-se num quadro de evolução imprevisível, o OE2023 deve ser elástico para permitir vários cenários de reajustamento da sua aplicação, justamente porque sã inúmeras incógnitas em relação ao futuro.

Acresce que o OE2023 mantém, praticamente, a mesma matriz que a do Orçamento do Estado em vigor, não resultando dele quaisquer alterações substanciais na política fiscal, na política de endividamento, na política de rendimentos e preços, bem assim, qualquer esforço assinalável de contenção e racionalização de despesas.

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Apresenta, todavia, alguns aspetos positivos, nomeadamente: (i) o aumento do salário mínimo nacional de 13.000 para 14.000 escudos; (ii) a atribuição da pensão social a mais 3.000 idosos; e (iii) o aumento expressivo do investimento em serviços essenciais e infraestruturas públicas, que poderão potenciar uma maior dinâmica económica.

Mas, de um modo geral, o OE2023 é tímido nas medidas de contraposição aos efeitos económicos e sociais da atual conjuntura económica, devendo o Governo adotar uma postura flexível e dinâmica na execução orçamental, de forma a responder a um eventual agravamento da crise através de um reforço de apoios às famílias e às empresas.

Infelizmente, o cenário da continuidade do empobrecimento dos trabalhadores e pensionistas cabo-verdianos pela perda de poder de compra de salários e pensões é plausível. Tal situação resulta, por um lado, da acumulação das inflações previstas para os anos de 2022 (7,9%) e 2023 (3,7%), na ordem de quase 12%, e, por outro lado, do facto de os salários e as pensões não terem sido atualizados em 2022 e só o virem a ser parcialmente em 2023 e, mesmo assim, não para todos.

Com efeito, o OE2023 prevê um aumento dos salários e pensões da Administração Pública entre 690 e 1.155 escudos e apenas para aqueles que auferem estas prestações até ao valor de 69.000 escudos. É de salientar que esse aumento parcial dos salários, da forma como foi feito, sem os necessários ajustamentos a nível dos cargos e escalões, pode provocar sérias disfunções e injustiças no plano salarial das funções públicas.

Ainda mais importante do que isso, seriam expectáveis medidas de transferência de rendimentos compensatórios mais abrangentes e significativas às famílias mais impactadas pelo aumento brutal do custo de vida, o que também não ocorreu com o OE2023. Estão em causa, por um lado, cerca de 73.000 pessoas que se estima estarem na situação de extrema pobreza, ou seja, de concidadãos que vivem em agregados familiares com rendimentos que permitem consumos mensais per capita abaixo de  6.000 escudos. E, por outro lado, cerca de 46 mil pessoas que se acredita estarem em situação de crise alimentar aguda, isto é, de concidadãos que podem passar vários dias sem suprir as suas necessidades alimentares energéticas mínimas. São dados oficiais.

Entendo que se trata de uma obrigação moral do Estado proteger particularmente essas famílias, num quadro de garantia do necessário equilíbrio social.

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3. De igual modo, o aumento contínuo e preocupante do endividamento público, cujo stock (excluindo os Títulos de Rendimento de Mobilização de Capital) deverá atingir mais de 306,5 mil milhões de escudos em 2023 face a um PIB nominal previsto de cerca de 230 mil milhões de escudos, retira, através dos respetivos encargos, recursos públicos que poderiam ser utilizados, por exemplo, na valorização dos recursos humanos e na proteção dos mais vulneráveis.

Com efeito, no OE2023, o montante previsto para o serviço da dívida pública, no valor de cerca de 26,2 mil milhões de escudos, equivale quase 60% das receitas fiscais (impostos e taxas) previstas para serem arrecadadas, o que significa que mais de metade dos impostos e taxas que os cidadãos residentes pagarão em 2023 irá para o pagamento dos juros e outros encargos (5,9 mil milhões de escudos) e amortização (20,3 mil milhões de escudos) da dívida, uma situação deveras preocupante e que deverá levar todos a uma reflexão séria e descomplexada!

Preocupante é também a dimensão dos passivos contingentes, isto é, dos avales e das garantias concedidos pelo Estado a terceiros (empresas públicas e privadas, municípios), cujo stock já tinha atingido 24,401 mil milhões de escudos em 2021, ao qual se acrescem o limite de 11 mil milhões de escudos estabelecido no Orçamento de 2022, bem assim, o limite também de 11 mil milhões de escudos previsto no OE2023.

Ainda que, em princípio, não devam ser registados como passivos nas estatísticas macroeconómicas, os passivos contingentes podem, mesmo assim, constituir um risco orçamental com alguma relevância, quando certas condições prevalecem, por exemplo, caso a garantia do empréstimo seja executada, obrigando o registo.

Em todo esse contexto, é incontornável a necessidade urgente de reformar o Estado e a Administração Pública. Necessitamos de um Estado redimensionado e adequado às dimensões e às necessidades estratégicas do país e uma Administração Pública menos custosa, mais flexível, mais eficiente e mais eficaz, verdadeiramente capaz de dar respostas adequadas, oportunas e efetivas à multiplicidade de demandas provenientes de um ambiente contextual complexo e incerto. Precisamos subir a fasquia das exigências e desenvolver, na verdade induzir, de alto a baixo, uma cultura da qualidade e do rigor em tudo o que fazemos enquanto servidores do Estado e realizadores do Bem Comum.

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Ao mesmo tempo, é necessária uma forte capacidade de gestão da dívida e dos passivos contingentes para aumentar a transparência, minimizar os perigos contingentes, mitigar os riscos de uma rápida acumulação de dívida e fortalecer a estabilidade macroeconómica global.

Para Cabo Verde importa, também, aproveitar a atual crise como uma oportunidade para a realização de reformas estruturais na sua economia que induzam a um movimento de modernização, inovação e de crescente competitividade, com efeitos multiplicadores que se farão sentir a prazo. Se, como se impõe, pensamos no futuro da Nação, o sentido reformista não é mais uma mera opção; é uma necessidade premente.

Urge na verdade não perder de vista que a reforma da Administração Pública, acompanhada das reformas estruturais que se impõem, pode, a prazo, induzir à redução das despesas de funcionamento do Estado e apoiar ainda mais a luta contra a pobreza e a inflação, melhorando a qualidade de vida dos cidadãos e aliviando as restrições de oferta.

Para o efeito, deverá, porém, existir uma visão e estratégias claras, mobilizadoras e propiciadoras de um amplo consenso, consubstanciado num pacto de regime, particularmente entre os principais partidos políticos nacionais.

 

4. Da análise do OE2023, perfila-se, ainda, a questão de eventual inconstitucionalidade orgânica, do artigo 6.o da Lei que aprova o Orçamento de Estado para 2023, porquanto, a norma não respeita o número 3 do artigo 161.o, que impõe uma maioria na votação de matérias referentes aos titulares dos Órgãos de Soberania, onde naturalmente se inclui o disposto na alínea i) do artigo 176.o, “Eleições e estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e das autarquias locais, bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio direto e universal” (todos da Constituição da República).

Com efeito, estas disposições conjugadas, reservam em absoluto à competência legislativa da Assembleia Nacional, a matéria do estatuto dos titulares dos órgãos de soberania, impondo uma maioria qualificada, i. é, uma maioria de dois terços dos Deputados presentes desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, à atividade legiferante que incida sobre essas matérias.

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Não sendo adequado aqui e agora estender sobre a fundamentação jurídico-constitucional, em sede da fiscalização abstrata e sucessiva, prevista no artigo 280 da Constituição, será requerida a apreciação e declaração de inconstitucionalidade da norma acima referida.

Estas são, Senhor Presidente da Assembleia Nacional, as observações que tive por bem trazer à vossa atenção e, por vosso intermédio, à dos digníssimos membros do Parlamento nacional.

Quero, outrossim, referir-vos que, com elas em mente, mas movido pela mais elevada preocupação com o interesse nacional e, igualmente nesta linha, de permitir que a Maioria parlamentar concretize as suas opções, num quadro de normalidade e estabilidade institucionais, decidi promulgar a Lei que aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2023.

Com a expressão da minha mais elevada consideração.

José Maria Pereira Neves

*(n.d.r. Texto integral)

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