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Longo Post-Scriptum abordando levianas, gravíssimas e ignaras considerações do ministro Abrãao Vicente a um site português
Ponto de Vista

Longo Post-Scriptum abordando levianas, gravíssimas e ignaras considerações do ministro Abrãao Vicente a um site português

 

Custa-me, sinceramente me custa, o que vou escrever a seguir. É doloroso para mim dirigir-me nos termos em que o vou fazer a alguém que é jovem, por quem tive pessoal estima, mas sobretudo porque faz parte do governo do meu querido país, desta soberana república de todos nós. Mas a isso fui obrigado; não me deixaram outra via ou outra saída.

Tudo teria ficado pela paciente e cordata resposta acima se, após a sua escrita, não tivesse sido confrontado com gravíssimas e difamatórias considerações do criativo ministro, num caso entrando em reservados domínios de decisão pessoal, noutros de ignaras e manipulatórias afirmações no que tange a certos aspectos passados da literatura caboverdeana, tentando trazê-los para o lodaçal do combate e afirmação  político-partidários, não estando, como é óbvio, o senhor ministro ou o candidato a escritor e historiador da literatura caboverdeana, Abraão Vicente, impedido de tecer as considerações que entender, devendo, porém, manter o assunto no campo que lhe é próprio.

 Para um claro entendimento, no que tange à intromissão nos domínios ou aspectos ligados à liberdade de decisão pessoal, transcrevo as palavras do senhor ministro ao site português Comunidade cultura e arte, mas vale a pena ler toda a entrevista, pois o feito é antológico:

http://www.comunidadeculturaearte.com/

«O José Luiz Tavares não aceitou participar no festival por achar que nós convidámos primeiro o Mia Couto, o Agualusa, outras pessoas de fora, e não fizemos o tratamento protocolar que ele achava que nós deveríamos fazer. Eu acho que é uma “não-questão”. Os escritores têm o direito de recusar em participar em qualquer evento.

Nenhum país ou nenhuma organização deve aceitar discursos com até alguma tonalidade… não diria racista, mas falar de empresas estrangeiras… Estamos a falar de gente que trabalha num outro país durante décadas, trabalha numa instituição estrangeira, depois o seu país – onde ele não vive – organiza um evento  e contrata uma empresa do país onde ele vive, do país onde ele trabalha. E ele começa com estes discursos. Nenhuma organização se deve submeter a vontades de uma pessoa que quer boicotar um evento porque ela acha que o nome do evento não é bom…»

Senhor Abraão Vicente, vou começar por uma banalidade de base, pois temo que se for rebuscado talvez V. Excia não me entenda: eu vivo e trabalho lá onde me der na real gana, ou onde as circunstâncias da vida me levarem, e nem por isso serei menos caboverdeano, jurídica e afectivamente, do que aqueles que dia sobre dia pisam as pedras e a poeira do torrão. Mas, sejam quais forem os circunstancialismos da minha vida, os caboverdeanos sabem que podem sempre contar com o desassombro da minha pena livre, o conforto das minhas reflectidas convicções, o sustentáculo da minha obra. Isso me basta. Por isso rechaçarei com baterias de fogo quaisquer tentativas de intromissão nos domínios da vida pessoal, da liberdade de viver e trabalhar lá onde bem entender, mas erguendo sempre bem alto nos meus versos as territoriais angústias, veio de tantos celebrados poemas, de «Paraíso Apagado por um Trovão» a «Coração de Lava».

Não lhe admito, não lhe permito, Abraão, ministro ou não, sobretudo se ministro, e nem quem está acima de si deve permiti-lo. Você, Abraão, conspurca a nobre arte de governar. Embaraça o seu partido, o governo de que faz parte e o primeiro-ministro, um homem recto, probo e sensato. Haja quem ponha termo a esta contínua degradação. Digo-lhe mais, Abraão, ministro ou não: um homem não é o seu bolso nem a sua vaidade. Aliás, não existem bolsos grandes o suficiente onde caiba o pobre poeta José Luiz Tavares. Para si, Abraão, eu sou uma galáxia; onde colocar a vista haverá sempre um enigma a desvendar, como a matéria negra de que é feito o universo.

 O governo da República não é o poleiro para a manifestação de pessoais vaidades ou para a satisfação do ego de ninguém, por mais rebelde que se julgue. Eu tenho, como acima disse, o desassombro da minha pena, o conforto das minhas reflectidas convicções, o sustentáculo da minha obra. Isso me basta. Por isso, venha para a arena da arte, mas custa muito, como o senhor bem sabe, pois já tentou, ou como sabem aqueles que tentaram enfiá-lo como escritor na Revista do jornal Expresso, de Portugal, mas, estando a coordená-la um avisado escritor caboverdeano, o senhor foi corrido com um valente e salutar chuto nas anatómicas partes traseiras.

Alguém acha que é por acaso que estas afirmações covardes são feitas a um site português? (Olhó racismo, poeta). Intuo que tenha que ver com a tentativa de criar um ambiente hostil lá onde vivo e trabalho, e a necessidade de manter quentes as costas de quem pensa que o pode transformar em transnacional escritor sem suar, penar ou teimar. O senhor, Abraão, ministro ou não, é uma vacuidade andante; é só garganta sem substância; não tem nada atrás de si que o sustente. Vós sois uma pura virtualidade, e só existis enquanto houver brilho nas pantalhas ou se ouve a vossa voz a troar no éter. Rodado o botão que comanda o mundo, esfuma-se a vossa esforçada existência.

O senhor, senhor ministro, sabe que teve o meu apoio desde o primeiro dia da sua tomada de posse (assim também aconteceu com o seu antecessor) quando me convidou para o seu gabinete e eu dei-lhe a minha opinião acerca do que achava que devia ser feito no domínio do livro e da leitura, e que devia ter como suporte um documento de base, qualquer coisa como uma Estratégia Nacional para o Livro e a Leitura, de que um efectivo Plano Nacional de Leitura seria a âncora base, tendo como modos de operacionalização o reforço das capacidades das bibliotecas municipais, a criação de pequenas bibliotecas comunitárias, bibliotecas móveis (de bairro e de praia), a criação duma grande revista de literatura pela Biblioteca Nacional, uma bienal de artes integradas onde o livro e a literatura fossem o elemento central, um forte investimento na literatura infantil e juvenil, e ainda para neo-leitores de todas as faixas etárias, com o foco na qualidade, a criação de um Prémio Nacional de Literatura, por géneros, a atribuir anualmente. Mas o instrumento essencial seria o Plano Nacional de Leitura, para o qual seria necessário mobilizar todos os sectores da sociedade e que, em conjunto com o ministério da educação, deveria ser pensado para um horizonte de quinze a vinte anos, e pus-me à disposição para, lá onde eu pudesse, ajudar na concretização desses objectivos, mesmo se, por pessoais e familiares razões, não tinha, ao tempo, disponibilidade para as funções para as quais me sondara.

Por isso me espanta o senhor, ministro Abraão Vicente, fazer-me graves acusações, pois o senhor não foi convidado para o governo e investido nas suas actuais funções para tomar as dores de nenhuns alfaiates deste mundo, mesmo se são os novos costuradores da caduca morabeza. O senhor foi convidado para executar os objectivos programáticos deste governo, na lisura dos procedimentos, no respeito pelos criadores do seu país (vivam dentro ou fora das suas fronteiras físicas), respeito também pela soberania nacional e sua concomitante dignidade.

Por isso inquieta-me, senhor ministro, ver um representante do governo do meu país (sim, senhor ministro, embora vivendo há trinta anos no estrangeiro, possuo apenas uma nacionalidade, a caboverdeana), dizia, inquieta-me profundamente ver um representante do governo do meu país ir a um encontro com um dignitário estrangeiro (no caso o ministro da cultura de portugal, o poeta Luís Filipe Castro Mendes), rodeado apenas de consultores, não estrangeiros, estrangeiros não, que o ministro não gosta, mas simplesmente transnacionais. Acredito que o senhor terá mil boas e atendíveis razões. Eu tenho apenas uma, como referi atrás: soberania nacional e dignidade na representação do estado.

Desde Jean Boudin, às modernas teorias, que sob o conceito de soberania subjaz um núcleo essencial, não compaginável com aquilo que me foi dado a ver. E não se veja nisto qualquer desafeição ou inimizade, mas uma forte exigência cidadã, e por isso crítica, que não abdica de exigir mudança de postura ou de protagonista lá onde acharmos que faltam ou falham aqueles que escolhemos para nos representar e serem nossos rostos no torrão e no mundo.

O senhor, ministro Abraão Vicente, se já não bastasse o triste strip-tease duma alma vazia, resolveu descer às estrebarias donde nunca devia ter saído, bolçando o estrume que são as suas considerações e acusações, movido por feroz despeito e patético desespero. Juristas e advogados amigos aconselharam-me a responsabilizá-lo criminalmente, porquanto as suas indecorosas flatulências consubstanciariam um crime de difamação agravada. Não irei fazê-lo porque não consinto ver um ministro dessa República que eu amo, e que tanto nos custou a todos conquistar e consolidar, por mais leviano e destravado que seja, sentado no banco dos réus de um país estrangeiro, arrastado do aeroporto para responder pela sua língua pesporrente que só espalha o mau mosto da ignorância e retumbante inanidade intelectual que mancham a dignidade da república. Mas porque é um dever cívico, vou desfazê-lo aqui na arena da tapadinha, para que os caboverdeanos, ou as transnacionais parcerias, saibam, se não soubessem já, quem é quem e quem pode o quê.

Acusar-me a mim, José Luiz Tavares, caboverdeano e poeta, de expatriado e estrangeirado, se não mesmo desertor, é porque o seu curto vocabulário não lhe permite ir além da doxa ideológica e da vulgata cultural. O senhor enche hoje a boca de maus verbos porque acha que pode. Mas não pode. Está. E para servir. Breve, breve, encontrar-nos-emos noutras arenas, não que lhe queira mal, nem por estar chateado consigo (pois isso equivaleria a uma reacção emocional, e este texto é uma posição intelectual, um vincar de valores e princípios), mas porque desse modo terá tempo e liberdade para tentar ser o que sempre ambicionou ser: um verdadeiro criador, fazedor de mundos, e não acrobata desses pinotes mediáticos que os bons ventos levarão para bem longe.

 Senhor ministro, essa entrevista poderia ter sido apenas um triste desastre comunicacional, que eu relevaria, mas que não relevo, porque o que lhe subjaz é não só um violento despeito para com um criador cimeiro da república que o senhor representa, e uma denegação dos seus mais altos valores, mas também a necessidade de mostrar serviço a quem tenta fazer de si escritor, transnacional ou não, mesmo que para isso tenha que tentar amesquinhar e constranger, com nulo efeito, diga-se sem complexos servis, a figura e as posições livres de um cidadão do país que o senhor devia servir em primeiro lugar, se não por um esclarecido e exigente entendimento de cidadania, pelo menos, e já não era coisa pouca, para honrar o juramento que o senhor prestou.

 Senhor Abraão, eu não temo nem a si e às suas fanfarronices, nem as suas transnacionais parcerias, pois eu sou apenas um pobre poeta, e, por consequência, livre como ninguém.

Eu li a reacção do MCIC à notícia da inforpress que, embora mentindo em relação àquilo que estaria na base da recusa do poeta José Luiz Tavares em participar no evento, aqueceu-me só um pouco, porque é da minha natureza ontologicamente inquieta, mas logo arrefeci, entregando-me à decapagem de um livro que sairá no início do próximo ano. (Por aí se vê que, para além de outras tantas virtualidades, o cultivo da poesia também é um bálsamo para a alma apoquentada).

Mas o tom triunfalista e o despudor cacarejante —«quando dei conta fiz os contactos…»— dão logo a medida da lustrosa personagem. Não teve nenhum gesto protocolar, nenhuma consideração para com estes representativos escritores do seu país, nem para com quem se lhe dirigiu de forma reservada por email a expor inquietações, mas logo que viu o desmoronar da festa fez os contactos, pois tudo o que interessa ao Abraão é o show. Edificante.

Vi a sua entrevista à rtp-áfrica onde embora ora tentasse desvalorizar a minha figura, dizendo que não era um festival de nomes mas, contraditoriamente, citando os nomes daqueles que aceitaram ir à festa, ora tentando jogar, soezmente, a figura do Arménio Vieira contra mim, tido como alguém que estaria a estragar a festa, fazendo por esquecer que a poesia não é uma romaria por festas e festanças, tudo relevei, porque era visível o estado de incomodidade em que se encontrava o ministro.

Mas o senhor está de tanta má-fé, ou está tão perturbado e obcecado com a sua festa, que devia ser dos escritores, que finge não saber que, apesar de tudo o que se estava a passar, fui eu que forneci aos serviços do seu ministério os contactos do Arménio Vieira, horas depois do meu email à senhora curadora da biblioteca nacional, com conhecimento ao senhor ministro, que não obteve qualquer resposta (esse foi o primeiro erro fatal), mas uma hora depois a booktailors pôs-se em campo enviando-me um convite sem nada de concreto, a prova de que, se calhar, não estavam a contar com este pobre e pouco transnacional poeta, quando não mesmo xenófobo, e em vez de jogarem pelo lado da reclamada dignidade, tentaram as fraquezas do ego e do interesse, segundo erro fatal. Mais: informei os serviços do seu ministério que, provavelmente, não conseguiriam contactar o Arménio, dado eu próprio ter tentado várias vezes nos últimos tempos, sempre sem sucesso, sugerindo como alternativa a sua editora, a rosa de porcelana, que o senhor também tentou achincalhar e ridicularizar na nefanda entrevista.

Mesmo assim o senhor tem o supino topete, o aleivoso desplante de vir acusar-me de tentativa de boicote ao evento, uma iniciativa que acho louvável e quero que se consolide, mesmo se colocando reticências à sua forma actual e aos modos da sua efectivação? Não bastava aquele comunicado manhento, e o senhor tinha que inventar um sabotador, racista e fugido da pátria, para justificar aquilo que é da sua exclusiva responsabilidade, pois, se, como é hábito, em eventos do tipo o normal é haver sempre um curador, o senhor pôs-se sempre à frente das câmaras e dos microfones, em bicos de pés para colher os louros mediáticos. Fique o senhor com as coisas boas que daí advierem, mas tenha também um pouco de maturidade e de humildade para acolher as críticas de quem tem outra perspectiva. Não virá daí nenhuma tragédia ao mundo, pelo contrário, tornará mais forte e mais sadia a nossa democracia.

O senhor Abraão, que passa parte substancial do seu tempo fazendo momices diante das câmaras e dos microfones, acha um crime de lesa-pátria (mais concretamente, de lesa-festa) que o poeta José Luiz Tavares, entendendo que algo está podre no reino da dinamarca, não tem o direito de chamar quem bem entender para tornar pública a sua opinião sobre assuntos desse torrão, que não é reino, mas república, por conseguinte, obrigada a prestar contas aos seus cidadãos, que súbditos não são.

Quanto à denominação do evento, o senhor ministro, ou as suas transnacionais parcerias, insistirão nas suas razões políticas ou marketeiras, e eu insistirei nas minhas, literárias e sociológicas, e para lhe mostrar que a morabeza sempre foi vituperada pela literatura (até um personagem do seu livro o trampolim o faz, embora saiba também que um autor não é responsável por aquilo que pensam ou dizem os seus personagens) buscarei apoio num poema, mesmo se datado, do saudoso Oliveira Barros, Trilogia do Tempo Proibido, sequência III, Desmontagem de Morabeza. Não tenho que comungar as visões do poema, mas queria apenas dar um exemplo de como alguma literatura vê ou viu a morabeza:

 

(…)

 

Num paraíso de BAPOR DI SUL NA MAR

esperando contratados.

De cadáveres entulhados pelos caminhos.

De isolamento, fome e enterros colectivos

nasceu a mitologia

do sentido da festa, da arte de receber,

do nosso abraço envolvente, afável e cativante.

«Morabeza» é essa estranha florescência

do tempo da fartura ilusória

da farinha de mandioca.

 

«Morabeza» chocolate, please

«Morabeza» cigarrette, please,

Money, please, please, please,

«Morabeza» é mendicidade de cicerone em pele e osso,

«Morabeza» é sexo comerciado em todas as línguas

com marinheiros de todos os mares

«Morabeza» hoje

que negreiros em versão moderna

deixam Cabo Verde rumo ao crescimento de lisboa

é a arte de receber o invasor

em todas as suas formas de chegar,

em todas as suas formas de querer ficar…

 

Portugal foi-nos sempre

um Longe e um Dentro.

O Longe da nossa fome.

O Dentro da nossa renúncia.

«Morabeza» é ode ao conformismo.

Morabeza é DESARMAMENTO.

Portugal inventou em nós a morabeza.

Os literatos cabo-verdianos

criaram ou caíram na glosa deste mote

tão velho como as velhas caravelas.

 

Poetas exilados ou silenciados

de gavetas grávidas e cabeças em febre!

Não é apenas um desejo impotente:

Cabo seco, arquipélago da fome

sala de danças predilecta da Lestada

vai ser CABO VERDE

— os ecos chegaram do sul no sentido da Monção

e não param.

 

Quem tiver olhos, leia. Quem tiver ouvidos, oiça.

Eu sei que não é apenas a minha recusa em ir ao festival que encanita o intrépido ministro, embora ache que ele até devesse agradecer-me, pois a minha recusa em participar nesse festival fez mais pela sua visibilidade do que todas as acções de propaganda encetadas ao longo de meses. Bastou o poeta José Luiz Tavares dizer que não ia, não vestia aquele fato e não dançava aquela música para que o nosso pequeno mundo soubesse que havia tal evento.

O que encanita o ventoso e pantomimeiro ministro, desconfio apenas, é eu ter dito em junho que a comunicação social devia sair do MCIC e ir para mãos mais consistentes e experimentadas. Bastará alguém com meia dúzia de neurónios ter lido «A Sociedade Aberta e Seus Inimigos» e «Televisão um Perigo para a Democracia», ambos de Karl Popper, e «A Democracia na América», de Alexis de Tocqueville, para perceber o alcance do que quis dizer.

Se Umberto Eco escreveu que vivemos o tempo dos idiotas, eu entendo que sempre houve e haverá idiotice. A diferença é que agora a idiotice tem vasto palco e pode reproduzir-se sem chuva, sementeira ou monda através dos meios de comunicação ou das redes ditas sociais.

Senhor ministro, a sua ventosa e merceeira fúria seria legítima se o senhor fosse apenas um mero agenciado em busca aqui no estrangeiro das luzes da ribalta ou até da glória que todo o humano ambiciona. Mas não. Acontece que o senhor é ministro da cultura de um estado soberano e cabe-lhe velar pelos seus interesses, neste caso particular, pela dignificação do que de mais nobre possui: os seus criadores. Daí que o seu patrioteirismo táctico (pois quem dá de mamar o custoso e sacrificado leite da pátria às parcerias transnacionais, como eufemisticamente prefere chamar-lhe, é V. Excia, sobrando para os de cá as habituais tetas secas e esmifradas) faz-me lembrar de um dito espirituoso de certo escritor que escreveu que sempre que ouvia a palavra patriotismo na boca dalguns políticos labregos levava instintivamente a mão ao bolso para ver se a carteira continuava no lugar onde o tinha colocado.

 Tem o Abraão Vicente a alma tão inquinada pela torpeza, a desonestidade intelectual como instrumento, a ignorância pesporrente por cartilha, ou só a impúdica má-fé de acusar-me de racismo (disse, fingindo não dizer, como é timbre dos pusilânimes), eu que vivo há trinta anos em portuguesa terra, e sei o que é o racismo, de vivê-lo na minha escura pele, e conhecer-lhe a longa história e sequelas, mas ergui à sua capital um monumento de palavras intitulado «Lisbon Blues»? Acusa-me o flatulento imberbe, mesmo se carregado já das cãs da trampolinice, de furtar-me à pátria quando, mesmo vivendo longe, nem para o meu conforto e segurança, adquiri qualquer outra nacionalidade, qualquer outro passaporte, pois como escreveu João Vário, outro grande expatriado, «optar por outra nacionalidade não é a menor das decisões»? Poderá o Abraão dizer o mesmo?

Achará acaso que está investido no papel de sumo zelador da pureza identitária para atribuir certificados de qualificação a dizer quem é digno ou não de se achar caboverdeano? Achará o estulto ministro que é o dono disto tudo para, dando pinotes e fazendo cabriolices diante das câmaras, o que não traz mal nenhum ao mundo, desde que assumamos o papel de momos, dizer que não devo criticar aquilo que acho criticável, defendendo, quando deveria ser ele o primeiro a fazê-lo, a dignidade dos escritores caboverdeanos e os interesses da pátria global?

Não devia o senhor, como ministro das indústrias criativas, mesmo alocando alguns aspectos à sua parceria transnacional, investir na criação de competências nacionais na área da organização e realização de eventos ligados ao livro e à literatura, pois eu sei que houve organizações e empresas caboverdeanas que se candidataram à realização do evento?

Outras graves afirmações são de índole cultural, pondo a nu lacunas que nenhum ministro da cultura deve patentear, pelo desconhecimento de informações básicas acerca de Eugénio Tavares, o patrono da nossa cultura, de que encheu fartamente a boca nesses últimos dias. Ou, outrossim, misturar-me a mim e ao Germano na mesma geração de novos, não é isto um requentado disparate? Aliás, apesar de sermos hoje, eu e ele, os dois escritores com maior visibilidade dentro e fora do país, quanto à substância, as nossas obras não caminharão em direcções diferentes, se não mesmo contrárias? Dizer que nos últimos vinte anos não apareceu nenhum autor novo não é querer elidir o meu estrondoso aparecimento em 2004, portanto, há treze anos? (Sim, pareço estar aqui há muitos anos, mas só cheguei anteontem). A outra verdadeira revelação depois do JLT é Novissíl de Fassejo, isto é, João Baptista Efígie, i.e, Domingos Landim de Barros, e apareceu ontem.

Em relação à língua caboverdeana a ignorância é de bradar aos céus, tal que até o Napoleão Fernandes, digníssimo avô do nosso Vicente, e autor de um magnífico dicionário de crioulo, deverá ter querido morrer uma segunda vez, se para deixar tão frágil descendência intelectual. O senhor Abraão folheou sequer a pasta que a extinta comissão nacional de línguas, de que fiz parte, deixou no final da sua vigência? Aconselhou-se sequer com pessoas capazes — que o seu ministério as tem — antes de dizer tamanhas e perturbantes baboseiras? Também estou ansioso por ler esse segundo romance em crioulo, publicado por Manuel Veiga, ou, na mesma língua, os romances do Danny Spínola e Tomé Varela.

 Cavalgando a onda revisionista, o estulto ministro, novo historiador-mor das letras pátrias, propõe nova categorização periodológica — a dos pré-nativistas. Portanto, vós, senhores, que haveis ignorado ou descurado as Navigazionne de Alvise Cadamosto,  as cartas de Diogo Gomes e Pero de Cintra, podendo até haver um lugarzinho para as lúbricas memórias de alcova da Preta Fernanda e, quem sabe, certas passagens d'Os Lusíadas, pois como atrás escrevi, Luis de Camões não passou para o oriente, mas desembarcou aqui na cidade velha onde viveu pobre e incógnito (porquanto isso foi em idos tempos, ainda não de transnacionais e polpudas parcerias), tendo aí concluído a grande epopeia lusitana. Dizem alguns que, não raro, se vê o seu fantasma curvado à beira-mar recitando «ah, maminha gentil, que és só para as novas bocas lusitanas.» Não esquecer ainda Bode Xubengo, que rabiscou no seu refúgio de Lapa Adentro quadras de passadas tormentas para sublimação da dor sua e edificação do presente nosso.

Senhor Abraão, se a ambição nunca foi forca para a alma, por vezes pode ser o mar de naufrágio para aquele que não se cultivou bastante, ou não lavou a alma com a água do rigor, mas vive apenas da sofreguidão ou da impertinência. Porém, nada na vida é irrevogável (irrevogável só a morte), por isso tenho a secreta esperança que, apesar da necessária dureza e contundência deste texto (mas a salubridade da república o exige), amanhã, quando aliviado do pesado fardo de governar com decência, justiça e dignidade, encontrará nele um sentido pedagógico, diminuto que seja, e aí então, sentar-nos-emos aqui na tapadinha, reconciliados por podermos ser aquilo que somos ou ambicionamos ser. Mas até lá...

Eu não quero mal ao indivíduo Abraão Vicente, como nunca quero mal a qualquer outro ser humano, mas hoje é tempo de justiça e de reparação, de reposição duma certa verdade, da desmontagem das suas falácias e fanfarronadas e da tentativa de enlameamento e coacção sobre um livre e reconhecido criador do seu soberano país.

 Não devia apoquentar-me por tais coisas, pois como escreveu o poeta brasileiro Mário Faustino «eles passarão/eu passarinho», mas o abranesco flato exalado na minha direcção atinge também a dignidade da república que ele devia servir. Não me lembro, desde que me interesso pelas coisas da cultura, de um ministro tão vácuo, tão impreparado para desempenhar as funções que lhe foram confiadas. Todos os meus amigos colocaram reservas desde a hora primeira da sua nomeação, mas eu não, pois não julgo as pessoas, mas os seus actos e acções.

 Depois do espectáculo grotesco e insano que é um ministro da minha república soberana vir ao estrangeiro país onde vivo atacar-me e difamar-me da forma mais soez e covarde, o senhor, ministro Abraão, deixou de ter condições morais para o exercício, com autoridade, das suas funções no governo da república e no trato com os criadores. Por isso peço-lhe um assomo de dignidade suficiente para abandonar o cargo que ocupa no governo da república. Seria um gesto de nobre desprendimento, uma pequena reparação pelo mal que lhe fez, pelo embaraço e vergonha que lhe causou.

O Senhor ministro Abraão Vicente, descobridor da nova excelência lusa (pois, há pouco mais de quinze anos, ouvi-o dizer em plena universidade nova à Prof. Margarida Fernandes que não queríamos portugueses em Cabo Verde), o novo Saulo de Tarso da política caboverdeana, deveria tomar como exemplo o gesto de João Soares, caído ministro da cultura do governo ainda em funções em Portugal. Por muito menos (ter prometido um par de estalos a um crítico de um jornal), demitiu-se pelo embaraço que tinha causado ao governo de que fazia parte. Siga-lhe o exemplo, convertido Abraão, e faremos por esquecer esse mau passo, que todos nós podemos dar nas nossas vidas. Tão convertido se tornou o ministro Abraão, que parece que o lema agora é arrearmos as calças e deixar irem-nos àquele sítio, isto é, aos bolsos e bolsas que os anatemizados expatriados, como este vosso pobre poeta, ajudam a estar um pouco menos «fobados».

Senhor ministro, caro Abraão Vicente, pela estima que tive por si, pela boa energia que lhe reconheço, e por isso sei que vai dar a volta por cima a este momento infeliz, por tudo quanto tem por sagrado, não responda, rogo-lhe, a este texto. Basta o que basta. O senhor disse, bastamente, o que tinha a dizer, ou lhe mandaram dizer, e eu respondo aqui profusamente ao que achei que tinha que responder. Porém, se as transnacionais parcerias a que está amarrado e devotado o obrigarem a retrucar, se o texto não vier acometido de erros gramaticais e dislexia intelectual, saberei logo que mão o pariu, pois de sua lavra sopra apenas muito vento e pouca polpa.

Tenho ainda mais uma derradeira coisa a dizer-lhe: no seu ministério trabalham pessoas que me são próximas e afectas. Se forem molestadas, assediadas moralmente ou perseguidas (pois de quem mandou retirar da programação a peça do grupo raiz di polon, por mor da minha recusa em ir ao festival, tenho que esperar tudo), as dantescas descrições do inferno parecer-lhe-ão natalícias luzes diante do que posso fazer com a pena, nesta língua ou noutra. Não estou a ameaçá-lo, porque fazê-lo, ainda que a um indigno ministro da república, é crime. Mas asseguro-lhe que esta pena não se verga nem mesmo diante dos seus novos patrões, que sei gente com imenso poder, aqui onde vivo e vou construindo a minha obra, para que se saiba, e saibam eles e os seus serventuários, que destes penhascos do meio do mar brotou uma estirpe de excelsos criadores e de gente que dá o corpo às balas quando necessário.

E porque a poesia é o que mais importa, fecho este longo post-scriptum com o poema que encerra o livro Rua Antes do Céu, e para o qual todos estão convidados para a sua apresentação no dia 31 de outubro, às 19 horas, no auditório do BCA/Garantia em Chã de Areia.

Que vivi. Armado do luxo

das pedras, nos nevoeiros de poeira,

cerrações de março,

oiro dos meses baixos.

Arrebatado, no regaço da mãe

inclemente, onde tarda o socorro

líquido, e cactos e plumas

frutificam em aberto atrito.

Peão duma funesta caminhada,

fui seguindo os brilhos tresmalhados,

velas duma arcaica liturgia onde eu era

o figurante sem adornos na voz, aquele

que nada prega, prediz ou profetiza,

embora um eu me interrogasse,

duro espadachim. Outro de mim, porém,

obsta à confissão — não sigo bandeiras,

por isso não há traição.

Que me busquem onde tudo é tangível.

Aí estarei, num desolado deserto,

sem brilhos falsos, entre picos e pedras.

Ou, se o tempo inclemente mo consentir:

renascer no chão de ontem, na voz líquida

das ribeiras, mesmo que um vento garoa

me arremesse aos pélagos onde nem

ulisses às mãos dos deuses desalmados.

Escrito aos 15 dias do mês de outubro de 2017, na ilha de S. Miguel, sob o olhar aprovador de Natália Correia, passionária da poesia portugesa, durante o I encontro internacional de poesia de Ponta Delgada, sendo que qualquer demasia deva ser tomada por resquícios do furacão ofélia que por aqueles dias passou pela região dos Açores.

                                  José Luiz Tavares, Poeta sempre.


 José Luiz Tavares nasceu a 10 de Junho de 1967, no Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde. Estudou literatura e filosofia em Portugal, onde reside.

Publicou: Paraíso Apagado por um Trovão (2003); Agreste Matéria Mundo (2004); Lisbon Blues seguido de Desarmonia (2008); Cabotagem&Ressaca (2008); Cidade do Mais antigo Nome (2009);Coração de lava (2014); Contrabando de Cinzas (2016); Polaróides de Distintos Naufrágios (2017); Rua Antes do Céu (2017).

Recebeu os seguintes prémios: Prémio Revelação Cesário Verde, CMO 1999; Prémio Mário António de Poesia, Fundação Calouste Gulbenkian (2004);Prémio Jorge Barbosa, da Associação de Escritores Caboverdeanos (2006); Prémio Pedro Cardoso, Ministério da Cultura de Cabo Verde (2009); Prémio de Poesia Cidade de Ourense (Espanha, 2010); Prémio BCA/Academia Caboverdeana de Letras (2016). Por três vezes consecutivas - 2008, 2009, 2010 - recebeu o Prémio Literatura para Todos do Ministério da Educação do Brasil, por livros destinados a neo-leitores jovens e adultos. Foi ainda finalista do Prémio ibero-americano Correntes d’escritas/Casino da Póvoa (2005), e semi-finalista do Prémio Portugal Telecom de Literatura (Brasil, 2009).

Trabalhos seus estão traduzidos para inglês, espanhol, francês, italiano, catalão, letão, finlandês, russo, mandarim e galês.

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