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O Ausente Como Presente
Ponto de Vista

O Ausente Como Presente

viver numa diáspora eterna,

numa travessia que nunca cessa.

Reflexões a partir de Terra Djenti - Zézé di Nha Reinalda

As letras da música de Zézé di Nha Reinalda suscitam-nos múltiplas imagens e ideias. De imediato, saltam-nos as similaridades com outros fenómenos sociais do êxodo populacional. Um fenómeno presente em todas as épocas e lugares. Mas, após ouvir várias vezes e atentamente a música, especialmente quando a conhecemos desde os anos 80, mesmo estando na diáspora, é com o passar do tempo que prestamos mais atenção nos seus detalhes, e conseguimos desdobrar os seus múltiplos pensamentos.

À primeira vista, o conteúdo que nos merece uma leitura atenta é aquele que se desenvolveu no entorno da fenomenologia existencial, isto é, experiência vivida. A letra desta obra artística reconstrói uma cena; um estado de alma; e o Zézé que conhecemos, fá-lo de forma muito profunda e intricada, dando a ver nuances do existir humano de modo magistral. O existir em perpétuo exílio. Essa cena sobressai, quando acompanhamos a letra da música e o seu profundo sentido.

Ainda nesse aparecer, e aparecer de modo forte, que ela se enquadra de modo especial no contexto da fenomenologia, como campo de pesquisa filosófica, e que estabelece uma profícua relação com as reflexões estéticas. Pois esse mostrar-se na sua singularidade (epoché) nos faz, por assim dizer, ver uma originalidade no fenómeno. Nesse caso, a métrica expressa no conteúdo deste lúcido trabalho, faz com que Zézé di Nha Reinalda, com maestria, consiga mostrar as entranhas do que é o ser cabo-verdiano na diáspora. É claro que ele não esgota essas possibilidades, mas vai ao âmago do que deseja representar – a vivência do cabo-verdiano na “décima primeira ilha”.

Passando à letra em análise, "Terra Djenti”, vamos fazer uma abordagem por versos. E nesse primeiro, vem-nos aquela reflexão existencialista na qual o existir não é algo que tem um lugar definido, mas somos nós a fazer tal definição. O que nos produz o desconforto radical no qual, em última instância, nunca estamos bem no próprio existir.

“Na tera Djenti, N ta vive ta spera kualquer ora pés kore ku mi,

Na tera Djenti, N ta vive ta spera kualquer ora pés kore ku mi”

Como não compreender a primeira estrofe e mesmo o verso naquele sentido do “ser-aí” de Heidegger? O detalhe estético de repetir o verso não passa despercebido. Com isso, o efeito desejado é justamente produzir o desconforto, que é o persistente. O medo de ser “pés kore ku mi” (correr comigo) é em última análise, no contexto da fenomenologia existencialista, esse “estar-aí”, jogado num sem sentido que é a vida.

Nada mais didático será os versos seguintes:

Ora ki N skese ta parsém sábi

Ma N ta vive ta kore di morna pa ka dan sodadi

Heidegger dedicou-se, em várias de suas obras filosóficas, a tratar do “esquecimento” do Ser. Ou seja, é como se nossa cultura se tivesse feito sobre o encobrimento do que seja o mais fundamental para a vida de todos nós. É considerar que há um núcleo da existência e ele é que nos importa, mas, que por vários motivos, encobrimos e esquecemos o que é essencial para nós. Nesse caso, aqui o esquecimento é um exercício de fingimento. “Esquecer” algo que nos toca forte e no íntimo, que mexe com as nossas emoções, uma empreitada fadada ao fracasso, pois, apesar de lutarmos para deixar de lado essas lembranças, elas não são esquecidas. Lembranças que são uma ausência da terra de onde partimos, nosso torrão natal.

E nessa parte do jogo poético de esquecer, como forma de pôr de lado a saudade, que é o sentir a falta de algo dentro de si, parece-nos que ter de recorrer a expedientes externos, escolher não ouvir a Morna (hoje Património Imaterial da Humanidade), só faz reforçar o ausente. E, certamente, podemos pensar noutros gatilhos que nos remetem ao amado e distante, de que sempre nos tentaremos esquivar, mas que vai sempre estar presente, o facto de estarmos na “terra djenti”.

Esse processo do ausente, sem dúvidas, marcará a memória de vários povos emigrados pelo mundo. E, de certo modo, arriscaríamos pensar num processo entre o viver ausente no presente e vinculado ora no passado e ora no futuro, que são tempos ausentes do presente.

Em todos os movimentos, seja na tentativa de esquecer, forçando e evitando certas coisas ou se entregando a outros momentos de distração, o que notamos é que a memória não se desfaz, pelo contrário, a “cabo-verdianidade prevalece e carrega em si, como traço, essa ausência, essa saudade profunda e o desejo íntimo de um dia regressar.

As imagens no próximo verso não deixam dúvidas de que a memória não é só imagética, “Tera pobri, ma terra más sabi”. A memória é num sentido estético amplo, falamos de sabor, e do desejo de não se morrer fora dela. Uma esperança radical de um dia poder voltar, mesmo que seja para morrer nela, evidenciado a particularidade do elemento trágico, no tema da morte, da letra desta magnífica obra artística em análise.

Tera pobri, ma terra más sabi

Ka ta da kustu minhoto kumém pa nbostan

N ka di kés ki ta fla tera é undi kai más pan para

Os viventes na diáspora, podem ser assimilados, mas não se iludem pela “terra djenti”. Para eles é evidente que os ganhos lá nessas “terra[s] djenti” sempre são carentes do sentido fundamental do seu existir, pois só a terra “que tem sabor” é capaz de prover tal sentido fundamental das suas vidas.

E, a sua alegria ou mesmo a sua força para ir levando uma vida perpassada pelo ausente, surge numa narrativa completa do seu retorno, que consiste na solução dos problemas que o fez partir um dia. Esse retorno pode acontecer concretamente. Contudo, a história nos diz que alguém que foi perpassado por esse vazio por muito tempo, jamais conseguirá se livrar dele de um dia para o outro.

Essa ideia é traduzida no desfecho:

Oji djan N tem kaza

Oji djan N tem karu

Oji djan N tem pa N da nha mai

Sta conxé nha fidju, brasa nha mudjer

Sem izibi pan N ka mágua nhas irmons

O verso final mostra-nos a dureza das letras desta música, pois é um sair em busca de coisas fundamentais para o viver. O desejo é casa, transporte, familiares, a amada e a sua prole. Esse drama não é só cabo-verdiano, mas é aqui expresso de modo brilhante e profundo nesta letra pelo autor, Zézé di Nha Reinalda, um dos renomados compositores deste mágico arquipélago do atlântico, Cabo Verde.

A passagem desse notável da cultura cabo-verdiana pela diáspora, o permitiu entender o que é estar em “Terra di Djenti”, o que o levou a mobilizar as suas capacidades estéticas para exprimir a profundidade das culturas do arquipélago. Obrigado Zézé pelo teu entendimento e expressão daquilo que muitos reconhecem como sendo o hino da “décima primeira ilha” – a diáspora cabo-verdiana.

Para apreciação da obra artística sobre a qual construímos a nossa reflexão, segue o link: https://youtu.be/g9en8hZQiG4

* Prof. Me. Cídio Lopes de Almeida, Académico e docente no Brasil. Prof. Dr. Júlio C de Carvalho, Académico e docente nos EUA

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Redação