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Rabidanti, complexos de inferioridade e força de vulcão
Colunista

Rabidanti, complexos de inferioridade e força de vulcão

1. Há cerca de 20 anos, a Professora Margarida Marques da Universidade Nova de Lisboa, escreve um artigo que se torna famoso: “O fio de Ariadne: mulheres cabo-verdianas em redes transnacionais”(Ariadne's thread: Cape Verdean women in transnational webs). É uma análise original que se insere no âmbito da sociologia económica das migrações. Aborda as mulheres rabidantis no seu vai e vem de compra e revenda de mercadorias entre Cabo Verde, a Costa Ocidental de África, Portugal e outros pontos da Europa, Brasil e Estados Unidos de América. O artigo, escrito em parceria com Rui Santos e Fernanda Araújo, passa a ser de citação obrigatória entre os especialistas a nível mundial que, a seguir à sua publicação, vieram a refletir sobre esta temática de movimentações económicas feitas no feminino e que ultrapassam fronteiras entre países de continentes diferentes;

2. A especialista Margarida Marques continuou a aprofundar e a alargar a sua reflexão sobre as migrações, onde a cabo-verdiana continuou a ser um dos focos centrais dos seus trabalhos – claro que ao lado de outras comunidades que também marcam a realidade portuguesa contemporânea. Cabo Verde, por sua vez, no que se refere ao estudo das migrações, continuou a marcar passo, entre avanços, recuos, tombos e cambalhotas;

3. Se é lamentável a situação de as autoridades cabo-verdianas – governamentais, autárquicas, académicas e da sociedade civil – não terem despoletado qualquer iniciativa de estudo e reconhecimento da rabidanti, pior ainda é o facto de essa figura incontornável da história de construção do país passar a ser alvo de um processo de desvalorização progressiva e, quanto a nós, deveras preocupante. Muito pelo contrário, assistimos à introdução de medidas extremas como a criação de uma guarda municipal, em vias de ser polícia, criada com um dos objetivos centrais de combater a rabidanti – esta que num processo de extraordinária dinamização da economia – circula também pelas ruas da cidade em busca de um rendimento que lhe permite sustentar a casa e garantir a educação dos seus filhos. Em paralelo, nos aeroportos e nas alfândegas é crescente o grau de hostilidade com que são recebidas essas outras mulheres feitas de fibra vulcânica que têm na travessia do mundo uma forma de vida!

4. Paralelamente, há todo um discurso anti atividades do sector informal que ganha corpo e adeptos de forma gradual, num posicionamento acrítico de importação de modelos de organização social que não têm nada a ver com as condições e características próprias da sociedade cabo-verdiana, em geral, e da ilha de Santiago, em particular, onde se inclui o centro urbano de maior concentração de rabidantis que é a cidade da Praia, capital do país; que, aliás, é de onde saem para as ilhas do Sal, Boa Vista e até mesmo São Vicente, para mencionar os fluxos mais expressivos;

5. Todo este ataque e desvalorização revela, para já, uma enorme desatenção em relação aos processos sociais de construção da sociedade cabo-verdiana, santiaguense, em particular e, por outro, leva-nos a indagar seriamente sobre as razões profundas de tal tomada de atitude. Algum complexo de inferioridade por se ter tido na atividade de rabidanti – protagonizada pela mãe – os recursos para a formação académica e daí toda a pressa em apagar todos os vestígios disso? Numa sociedade onde imperam grandes atividades à volta do empreendedorismo, empoderamento de mulheres, igualdades e paridades, o que se deveria também estar a assistir era a valorização da rabidanti, com a criação de medidas de políticas públicas específicas tendo em conta a sua proteção, acompanhamento e desenvolvimento. E, não o contrário! Mais uma profunda contradição deste tempo e desta sociedade.

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine