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“Para o Estado, doente morto é mais barato. Os políticos em Cabo Verde não percebem que andam a matar doentes renais por falta de lei sobre transplante de órgãos”
Entrevista

“Para o Estado, doente morto é mais barato. Os políticos em Cabo Verde não percebem que andam a matar doentes renais por falta de lei sobre transplante de órgãos”

Defensor acérrimo do transplante de rins como forma de melhorar a qualidade de vida dos doentes renais e reduzir com os custos do seu tratamento para o doente e para o Estado, o português Norton de Matos, cirurgião vascular e Transplante e um dos maiores especialistas mundiais no assunto, culpa a classe política cabo-verdiana “por estarem a morrer doentes em Cabo Verde” sem se dar conta. Neste exclusivo ao Santiago Magazine, o especialista, com mais de 40 anos de experiência no ramo – vem ao arquipélago há oito anos de seis em seis meses tratar fistulas nos doentes em diálise – diz estar cansado de bater na porta do governo a tentar explicar-lhes que a melhor terapia para o doente renal é o transplante. “Não tem custo. Só os chineses é que fazem candonga de órgãos. Ninguém vende rins. O rim ou vem de um cadáver ou de um familiar ou de um amigo”, assinala.

Santiago Magazine – Há anos que vem a Cabo Verde cuidar dos doentes renais. Como caracteriza a situação dos dialíticos?

Norton de Matos – É assim, há oito anos que venho a Cabo Verde a cada seis meses, mandado pela Cooperação Portuguesa através do Ministério da Saúde, para tratar dos acessos vasculares para a hemodiálise. Os doentes que fazem diálise têm sessões três vezes por semana com dois agulhões enfiados no braço e aquelas veias vão se danificando, rebentando, daí a necessidade de se lhes alterar as veias e depois manter isso. Quando isso acontecer – danificação das veias – a máquina não dá diálise, então tem-se que meter um carácter ao coração que manda mais depressa.

O problema é que em Cabo Verde não há muitos cirurgiões vasculares. Havia um cirurgião vascular que depois emigrou e só há quatro anos que anda cá a dra. Denise, mas é só um.

- Apenas um cirurgião vascular para todo o país?

- Sim, só um e agora temos duas ilhas com tratamento de hemodiálise, Santiago e São Vicente. A diálise começou em 2014 na Praia, com financiamento de Portugal, precisamente para que esses doentes renais deixassem de ser evacuados. Vejamos uma coisa: a incidência dessa doença na população europeia é igual à de Cabo Verde – 1 por 1000. Em Portugal há 11 mil doentes renais para uma população de 11 milhões de habitantes. Em Cabo Verde, deveria haver 700 doentes renais, portanto, ou estão a morrer ou estão a chegar à diálise que só existe na Praia e no Mindelo.

Em Cabo Verde estão no tratamento cerca de 300 doentes, 190 aqui na Praia e 90 e tal no Mindelo.

- Proporcionalmente, o país tem doentes renais em tratamento a menos é isso?

- Pois, há gente a morrer.

- Então é pior.

- É pior. Há gente sem diagnóstico que morre e ninguém dá por ela. Ou estão nas outras ilhas onde não há hemodiálise ou são doentes que não conseguem chegar à Praia ou Mindelo. E vai aumentando. Da última vista que fiz a Cabo Verde havia 250 dentes agora encontro 300, ou seja, há quatro novos doentes renais por semana. Pelo menos mostra que os serviços hospitalares estão a funcionar e chegam a estes especialistas, a nefrologista dra. Suzete, no Mindelo, e o dr. Hélder, na Praia.

- Por que não se trabalha na prevenção de modo a evitar que a pessoa chegue a este nível crónico de insuficiência renal em vez de pagar depois para um tratamento mais caro?

- A melhor terapêutica é o transplante. Simples, barato e prático.

«O transplante não tem valor, só os chineses é que fazem candonga de órgãos. Ninguém vende rins. O rim ou vem de um cadáver ou de um familiar ou de um amigo. Em Cabo Verde não é possível o rim vir de um cadáver, porque não há estrutura médica capacitada. Para recolher rins de um cadáver é preciso ter apenas morte cerebral e ter o coração ainda a funcionar e isso não é possível em Cabo Verde. A única chance aqui é o transplante de dador vivo e para isso Cabo Verde tem todas as condições.» 

- Mas aí se coloca o problema da legislação, custo e acesso aos órgãos?

- Custo? Não. O transplante não tem valor, só os chineses é que fazem candonga de órgãos. Ninguém vende rins. O rim ou vem de um cadáver ou de um familiar ou de um amigo. Em Cabo Verde não é possível o rim vir de um cadáver, porque não há estrutura médica capacitada. Para recolher rins de um cadáver é preciso ter morte cerebral, e ter o coração ainda a funcionar e isso não é possível em Cabo Verde. A única chance aqui é o transplante de dador vivo e para isso Cabo Verde tem todas as condições.

- Que condições são essas?

- Para já, Cabo Verde tem uma população em diálise muito mais nova que a da Europa, por exemplo. Tem apenas quatro doentes renais crónicos com 90 ou 100 anos de idade. Nós temos uma taxa de diabetes de 55% e vocês em Cabo Verde 15%. Também a hipertensão é muito mais baixa aqui.

- Então por que não se investe no transplante se é assim tão fácil e prático como diz?

- Eu venho a Cabo Verde fazer cirurgia vascular desde 2015 e o que trouxe desde então esta ideia do transplante e como o país deverão se preparar para isso. No ano seguinte trouxe a legislação toda sobre o transplante que foi aprovada em Portugal, mas até hoje nada.

- Falta vontade política?...

- Ninguém me conseguiu explicar.

- Ou os políticos não perceberam…

- …que estão a matar doentes? Que estão a gastar mais dinheiro? Eu não sei, porque não consigo chegar ao Parlamento, aos políticos para lhes perguntar isso. Manter um doente ligado à máquina durante quatro horas, três vezes por semana, custa muito. Um transplantado não. Veja, o ex-presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui moreira, está transplantado há 40 anos e você nem sabe disso porque faz uma vida normal.

O transplante, a partir do primeiro ano, é mais barato que a diálise. As dificuldades todas que Cabo Verde tiver resolve-se com cooperação. Não precisa de grandes equipamentos, é uma cirurgia muito simples. Se isto estiver tudo preparado e organizado tenho colegas que virão e farão. Portanto, existe a técnica, existem os materiais pelo que não há problema nenhum. Se o país não avançar nesta matéria, a situação a nível de doentes renais será dramática.

«Tecnicamente, portanto, está tudo pronto. É muito mais barato para o povo e para o Orçamento, muito melhor para a qualidade de vida dos doentes e é ideal para a população cabo-verdiana. A volta a dar é o Parlamento perceber isso como uma solução barata e eficaz.»

- Os encargos para o transplante seriam cobertos por quem? Pelo doente?

- O Estado, claro. O doente não tem dinheiro. O transplante não é privado nunca, em parte nenhuma do mundo. A única dificuldade, como já disse, é que não há lei.

- E não há quem pressione os fazedores de leis...

- Eu estou farto de dar entrevistas a reclamar precisamente disso. Há coisa de dois anos dei uma entrevista para a televisão na qual dizia que tinha falado com (então) ministro da Saúde e que o que lhe tinha dito entrou por um lado e saiu pelo outro. Não puseram isso na televisão. Só dou entrevistas para TV em directo e vocês em Cabo Verde censuram demais, o rádio omitiu minhas palavras , a Televisão também.

- Mas agora o país tem uma nova ministra da Saúde. Já lhe expôs essa ideia?

- Sim, já falei com ela, mas me disse que não sabe, que não tem ideia do porquê daquilo (proposta de lei sobre transplante de ´órgãos) não ter id à Plenária para discussão e aprovação. De facto não depende dela, depende do Parlamento.

- O governo tem prerrogativa para propor leis, tem iniciativa legislativa…

- Não sei como isto funciona aqui, sei é que não funciona. E isto me incomoda muito, porque vocês têm uma população em diálise muito jovem, morrem em média com 62 anos, em Portugal com 81. Vocês têm doentes em diálise com 15, 16, 18 anos, com muto para viver. Outra vantagem, é que em Cabo Verde as famílias são grandes, muitos irmãos…

- Não há problema para encontrar um dador, percebi bem?

- Pois, no mínimo tens um irmão ou irmã.

- Mas há a questão da compatibilidade.

- Nada disso. Nós já ultrapassamos isso há muito tempo. O doador mais frequente sequer é o irmão, é o cônjuge, o marido e a mulher, que são incompatíveis sempre. O que é que fazemos? Cruzámo-los.

- Explica melhor.

- Você tem cinco ou seis maridos e mulheres todos incompatíveis, mas o dador deste dá naquela, o dador daquela dá naqueloutro e transplanta-se no mesmo dia. Às vezes até um estrangeiro. Tá a ver? Falta o país se organizar, e aprovar a lei do transplante e parar de torturar os doentes com horas e horas durantes três dias por semana ligados à máquina.

Tecnicamente, portanto, está tudo pronto. É muito mais barato para o povo e para o Orçamento, muito melhor para a qualidade de vida dos doentes e é ideal para a população cabo-verdiana. A volta a dar é o Parlamento perceber isso como uma solução barata e eficaz.  Sei que houve uma proposta de lei mas não chegou a entrar a Parlamento para discussão, porque os deputados não entenderam a sua importância e nem do que tratava. Isso porque não falam com os técnicos para procurarem compreender os processos e não ficarem espantados quando ouvirem falar de tirar rim de alguém vivo para dar a outro.

- Outra coisa é apostar em campanhas para doação de rins…

- Cá não adianta nada porque não se pode fazer nada. Perguntei aos doentes no Mindelo e todos me disseram que querem ser transplantados, mas onde está a lei?

No fundo é assim: para o Estado ou para uma companhia de seguros, o doente morto é mais barato. É o que vai acontecer a estes doentes. A capacidade de os dialisar não é eterna. Até arranjarem 700 lugares para os 700 doentes a precisar de diálise em Cabo Verde que andam perdidos mas estão a chegar, esgotam os gastos. Se os transplantássemos criávamos vagas na diálise.

- Quanto custa um transplante?

- Menos do que a diálise. É só a droga, mais nada. Em Portugal, no primeiro ano pode ficar mais caro porque é rim de cadáver, que é muito complicado recolher. No dador vivo não há custos. Cabo Verde não tem que investir nada, basta fazer a lei e parar de matar doentes.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine