Globalmente, os discursos da abertura do ano judicial foram centrados na morosidade processual, nas pendências e em problemas de natureza administrativa. De algum modo, as intervenções dos oradores quase pareciam ter transitado dos anos anteriores. A única exceção foi o presidente da República que, provavelmente por não ter formatação jurídica (o que, neste caso, será uma bênção), interpretou, de algum modo, as demandas da cidadania.
Intervindo na cerimónia de abertura do ano judicial de 2025/2026, que aconteceu ontem no Palácio da Justiça, na cidade da Praia, o presidente da República, não descolando completamente das narrativas de circunstância do ato (afinal, não deixa de ser o supremo magistrado da Nação), trouxe à pauta oficial algumas preocupações que, num contexto de descrédito do sistema judicial, abrem um certo caminho de esperança em que não há mal que sempre dure.
José Maria Neves não podia fugir à estrutura central de um ato de formalidade e, naturalmente, falou da morosidade da Justiça, mas também sublinhou a necessidade de que o novo ano judicial possa ser próximo e inspirador, que garanta respostas decentes (ele disse oportunas, mas o significado é o mesmo), e defendeu que os tribunais devem ser transformados em “casas de confiança”, cujas decisões suscitem, de facto, confiança na democracia.
Decisões judiciais devem ser atos de cidadania e confiança na democracia
“Que este ano judicial (…) seja mais célere, mais próximo, mais inspirador e que entregue respostas oportunas e efetivas às pessoas e à sociedade, que cada tribunal se imponha como casa de confiança, que cada processo se converta em esperança, que cada decisão judicial seja vivida como ato de cidadania, de confiança renovada na democracia e de fé no futuro”, disse o presidente da República, naquele que foi o trecho mais significativo do seu discurso.
Na parte final da sua alocução de abertura, José Maria Neves chamou a atenção para a conclusão do Campus da Justiça, bem como à afirmação do país enquanto referência africana em matéria de Justiça digital, “célere, transparente e centrada no cidadão”, num reiterado piscar de olhos à cidadania.
Um discurso burocrático e aritmético
Por sua vez, o Procurador-Geral da República, José Landim, optou por aquilo a que se poderá chamar um discurso burocrático e aritmético, centrado nos problemas administrativos da PGR e na exibição de números. Nem uma referência ao papel da Procuradoria Geral da República defensora do interesse público e da legalidade.
A redução das pendências, a insuficiência do número de magistrados, mas também de oficiais de justiça, a aritmética de processos entrados e transitados, bem como o rácio processo/procurador e algumas referências ao combate à criminalidade,
“A Procuradora Geral da República dispensou, ainda, atenção especial à luta contra a criminalidade urbana na Praia e em São Vicente, criando, por efeito, equipas especiais integradas por magistrados, oficiais de justiça e elementos da Polícia Judiciária”, disse José Landim, aproveitando o ensejo para exigir reforço de recursos humanos.
O PGR exibiu, ainda, a estatística dos números: garantiu que a Violência Baseada no Género (VBG) diminuiu 25,4 porcento (%); os homicídios 9% e os crimes sexuais registando uma diminuição de 3,1%.
Diminuição, ainda, segundo avançou Landim, para crimes contra a propriedade, 11,7%; bem como para os crimes de corrupção, 4,9%, registando uma tímida melhoria.
Judicialização da Justiça
Bernardino Delgado, o presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSMJ) estabeleceu a mesma linha virada para dentro, assumida por todos os oradores, exceção feita (como já se disse) ao presidente da República. Embora, a páginas tantas tenha feito referência aos riscos de judicialização da política (um debate que é recorrente), mas passando por cima a um outro risco, a politização da justiça. De resto, mais do mesmo: o combate à morosidade processual, algumas referências históricas.
O presidente do CSMJ aludiu a práticas que enfraquecem a credibilidade dos tribunais, como o adiamento das sentenças, a morosidade processual e a judicialização da política, que considerou contribuir para “desgastar a imagem do poder judicial, circunstância que deve “ser pura e simplesmente erradicada”, sublinhou.
Referência breve à revisão do Código de Processo Penal, com a redução de fatores instigadores de litígios, defendendo a massificação de mecanismos alternativos.
E, naturalmente, não faltou também a estatística, enfatizando a curva descendente das pendências, mas reconhecendo que poderia ter sido melhor.
Uma “confiança no sistema judicial” que não se sente
O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Benvindo Mosso Ramos, centrou, também, o seu discurso nas pendências processuais, afirmando uma estratégia: julgar, pelo menos, todos os processos do contencioso administrativo com cinco ou mais anos de pendência.
E disse que a Justiça evoluiu “forma significativa”, nos últimos 50 anos, desde a independência, alinhada com a consciência dos direitos da parte dos cidadãos e confiança no sistema judicial. Uma confiança que, contudo, parece desmentida pelos números, já que 27,1% dos cidadãos não acreditam de todo na Justiça.
“Temos já definido como principal objectivo estratégico do Supremo Tribunal de Justiça, para o ano de 2025/2026, o julgamento de, pelo menos. todos os processos do contencioso administrativo com cinco ou mais anos de pendência, se conseguindo esse objetivo, que está ao nosso perfeito alcance, será possível antever a normalização, também na jurisdição administrativa, num horizonte temporal de dois, três anos”, disse o presidente do STJ, fundamentando a sua tese, mais coisa menos coisa, no que já havia referido no ano anterior.
E, apesar do otimismo na definição de um objetivo estratégico no “perfeito alcance”, Benvindo Mosso Ramos lá foi dizendo que os problemas da Justiça não se resolvem “de noite para o dia”.
Mas disse mais, que é preciso libertar o STJ do passivo acumulado: “ser um tribunal de revista, um tribunal que se ocupa essencialmente das mais complexas questões de direito que lhe são colocadas através de recursos interpostos, decisões dos tribunais da segunda instância, contribuindo assim para o aprimoramento e o progresso da jurisprudência nacional”, defendeu.
Alusão, ainda, ao recente pacote legislativo para a Justiça, com reformas estruturais e a revisão da orgânica e funcionamento dos tribunais, dos conselhos superiores das magistraturas, mas também da inspeção e do estatuto dos magistrados. Um esforço que considerou significativo e que irá introduzir melhorias no setor.
“Estamos convictos de que essa melhoria não tardará a dar seus frutos, o nosso mais ardente desejo é que, inspirado nesse espírito de consenso direcionado à melhoria da Justiça, se aproveite para também se resolver os pendentes relacionados com os oficiais de Justiça, em particular no que toca ao respetivo estatuto remuneratório”, sublinhou Benvindo Mosso Ramos.
Tribunais: “onde a voz do cidadão encontra amparo”?
Por último, uma referência breve ao discurso do bastonário da Ordem doa advogados, Júlio Martins, que recorreu a figuras de estilo, considerando a Justiça “um pilar silencioso” que sustenta a democracia, mas alegando haver necessidade de maior transparência, eficiência e proximidade do sistema judicial junto dos cidadãos.
Continuando nas suas referências à Justiça, Júlio Martins considerou que “ela é silenciosa porque não governa, não legisla, não se confunde com o ruído da política, age nos bastidores da vida pública, nas salas de audiência, nos tribunais, nos processos onde a voz do cidadão encontra amparo”, o que não parece ser propriamente a opinião de quem recorre à Justiça ou nela é envolvido de algum modo, com recorrentes queixas de que esta não é um elemento de auxílio às pessoas comuns.
Na mesma linha, o bastonário considerou que os cidadãos sabem que podem recorrer à Justiça – e precisou: sem receio de favoritismos nem arbitrariedades -, o que também parece não ser a opinião da generalidade dos cidadãos, incluindo os advogados.
Procurando fazer um esforço para se alinhar com o sentimento público, Júlio Martins aludiu à necessidade de transparência. “Por isso, a transparência impõe-se como um imperativo deste pilar silencioso”, salientando que a confiança pública é o maior ativo.
A abertura do ano judicial, à imagem dos anos anteriores parece não ter trazido nada de novo, com os operadores da Justiça a falarem para dentro, para a reduzida bolha dos seus interesses, não criando qualquer conexão com a sociedade.
C/Inforpress
Foto: PR
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