Os filhos sempre desempenharam um papel muito importante na nossa sociedade. Em famílias pobres, foram vistos como fonte de rendimento, mão-de-obra fácil e suporte dos pais e dos irmãos mais velhos. Quem tinha muitos filhos era sinónimo de riqueza, especialmente se eram filhos varões. Tanto assim era que há varias máximas e dizeres / canções populares que celebram essa crença “bu pari matxu, bu pari kordon…ken ki pari matxu pa ba sirbi rei…”.
Nos trabalhos de campo (djunta mo) quem tinha família numerosa ficava em vantagem: um dia de trabalho, dava para socorrer o milho da palha nas mondas; dava para arrebatar muita coisa. Quem tinha muitos filhos tinha a possibilidade de trazer muita colheita para a casa.
O número de filhos proporcionava outras regalias, tais como a criação de muitos animais, a lavoura de muita quantidade de terreno, e ainda maior segurança nos momentos difíceis – “Nha fidju ki ta interan, ken ki ka ten fiidju ka tem prakenha”, sempre ouvia dizer isso. Como havia muita mortalidade infantil, as pessoas eram “incentivadas” a ter muitos filhos; caso alguns morressem (o que era muito comum), podiam ainda ter garantias de ter sobreviventes. Quem não tinha filhos era considerado um coitado. Quem os tinha, de preferência muitos era rico. Meu avô (que Deus o tenha!) dizia: pa ka pari dexa pari mal paridu, querendo com isso dizer que, mais vale ter um filho de qualquer jeito, com qualquer pessoa de que não tê-lo.
Essa forma de pensar está muito enraizada na cultura santiaguense; quando os filhos emigram, fazem de tudo para ajudar os pais e irmãos-vêm isso como uma obrigação sagrada. Podem comer o pão que o diabo amassou no país acolhedor, poupam para enviar para os pais e irmãos na terra.
A educação dos filhos no passado não requeria muito esforço, o importante era ter comida. Os filhos obedeciam aos pais cegamente, a educação era partilhada com todos os membros da comunidade: qualquer adulto podia tomar a iniciativa de corrigir uma criança que supostamente estaria a portar mal e ainda era agraciado pelos pais da criança (ainda no meu tempo quando éramos apanhados por um adulto qualquer da comunidade ou de zonas circundantes, em atos pouco apropriados a crianças (ou que pensavam eram incorretos), éramos corrigidos (entenda-se, açoites) depois levávamos “pagamento” pela boa ação dessa pessoa, que consistia em ovos, café ou outra iguaria qualquer).
O espirito de partilha e entreajuda que havia no seio familiar era tanto que criou-se a máxima, “kada fidju ta nasei ku si pon fitxadu dentu mo”.
Atualmente os tempos mudaram. Ter filhos e muitos filhos é uma decisão que requer muita cautela e muita coragem. Os filhos precisam muito mais do que só un pon fitaxdu na mo. Há mais exigências de todas as formas. Ter filhos traz custos de toda a ordem: comida, roupa, divertimento e EDUCAÇÃO.
E esta tarefa tornou-se complexa! Requer que hajam famílias mais organizadas, unidas em que todos os membros trabalhem para o bem comum e os filhos não mais sejam necessariamente uma fonte de rendimentos, mas um investimento a longo prazo!
A partilha de educação com a comunidade tornou-se uma aberração, que poderá levar a conflitos com os vizinhos, com a comunidade e pode ser até caso de polícia. Não se pode de jeito nenhum corrigir ou mexer nas crianças de outrem: é provocar guerra aberta. Sem contar com os problemas de segurança que que se põem atualmente!
Todavia, em Santiago, há ainda muita gente que vê nos filhos fonte de rendimento. Estas pessoas dão mais valor aos seus animais do que aos próprios filhos (os animais podem ser fontes de rendimentos, enquanto os filhos…).
Quando logo de manhã levantam, a primeira coisa que fazem é ir saber dos seus animais (porcos, cabras, galinhas…). Esta tarefa leva-lhes toda a manhã, às vezes até às 11hrs. As crianças, aquelas que estão na idade de acompanhar ajudam nesta tarefa (ainda de estomago vazio) e quando voltam é que comem alguma coisa. As que podem ir penduradas nas costas fazem-na, também sem comer nada. Os gastos com os filhos são reduzidos ao mínimo: as crianças desde tenra idade aprendem a comer o que os adultos comem, comportar-se como elas e são “forçadas” a serem adultas antes de serem crianças. Há dinheiro para tarecos e mobiliários dentro de casa, para as festas de romarias, para situações ocasionais; todavia, para coisas da Educação, só ku gintxu i ku karoka. Os filhos vão para a escola, voltam para casa e não têm supervisão. Ir à escola ver os filhos como estão? Deus me livre! Isso é tarefa dos “descuidados”, já que se enviou para a escola, “ponciou”. Ah, se houver algum problema, alguma queixa, aí sim, aparecem com armas, pano na cintura, chapéu na cabeça, prontos para brigas!
O gasto com materiais escolares? Para muitos é supérfluo. Livros que custam menos de 200$00- “N ka pode kunpra”. E as crianças desde cedo começam a incorporar o “coitadismo”, pois é o que ouvem! Nka pode kunpra livro, nha mai ka tene dinheru, nha pai ka sta na trabadju!
Tanta azáfama na procura do pão nosso de cada dia, de cada mês, de cada ano…e os filhos ficam descobertos, entregues a si mesmos ou a quem muito pouco possa contribuir para a formação e preparação para a vida. Tudo a troco de bens quiméricos…de coisas fúteis que têm um valor limitado.
“Kada fidju ta nase ku si pon na mo”. “N sta manxe ta sai ta buska pon pa fidju.” “N ka ten tenpu ba skola djobe nha fidju pamo N sta na buska pon pa fidju”. Não sou contra, “saku baziu ka ta sakedu”! Mas “Não só de pão vive o homem”!
Faz-me lembrar um encontro com ativistas locais nos anos 2000, onde havia muita gente nova e alguns adultos. Depois de uma acérrima discussão, á volta de uma questão escaldante, um dos senhores presentes levantou e disse: “Nu ka sta pensa na mas nada, rabata leba boka”. Nada mais verdadeiro!
No outro extremo temos os que reconhecem o valor da EDUCAÇÃO e fazem de tudo para ajudarem os filhos a se prepararem para a vida: hipotecam a saúde, a própria vida para disponibilizarem o essencial para os seus filhos (Infelizmente não são muitos). Acompanham os filhos tanto em casa como na escola com visitas regulares. E o trabalho deles...fica comprometido devido à mantxulada. Estas duas realidades coabitam, com o choque que possa produzir e as vantagens para uns e desvantagens para outros…
Há necessidade de responsabilização da paternidade e maternidade, e urgente! Mudança de mentalidade precisa-se! De contrário, daqui a 10 anos (ou senão menos) estaremos numa situação de saia justa. É imprescindível atacar e agora; é essencial que haja um trabalho que ajude às pessoas a perceberem que ter filhos hoje é, acima de tudo, um ato de amor que exige sacrifício; que educar os filhos vai para além de “un pon na mo”. É necessário que cada um de nós faça a sua parte; ajudar onde podemos, denunciar lá onde for possiível. O futuro da nossa sociedade está na forma como educamos as nossas crianças e jovens, HOJE.
Calheta, novembro 2018
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