O PRÉMIO CAMÕES é a mais importante distinção que é feita a um escritor de língua portuguesa pelo conjunto da sua obra. Instituído pelos governos de Portugal e do Brasil no ano de 1988, é destinado aos autores que se considera que tenham contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua portuguesa.
O valor pecuniário é de 100.000 euros, cerca de onze milhões de escudos.
O primeiro pensamento que me veio à mente quando recebi hoje a feliz notícia foi “Não sei se o Camões não ganhou mais do que o Chico”. Mas risquei logo a ideia. E adiantei fechar a gaveta de cima de uma memória descolada. Suplico que ignorem este pensar que a maré levou. Vamos lá subir de registo. E falar que nem gente grande. Pegar nova onda.
Então sim. Procurei uma pose de profissional: “Diga-nos lá qualquer coisa que nós não saibamos sobre o Autor” – é a questão fatal que sempre coloco aos meus alunos de Letras, quando apresentam seminários de Literatura Brasileira sobre autores contemporâneos. Assim começa a brincadeira do “Você sabia?”; e assim levo comigo o leitor de hoje a uma das salas da Universidade de Cabo Verde, onde fizemos infinitas vezes esta pergunta, já que a disciplina é obrigatória. Vejo assim como é difícil responder a esta questão num dia como hoje.
Um dia de júbilo. Chico Buarque é um génio! Qualquer um de nós, simples mortais, teria que viver vinte vezes para produzir o tanto que ele produziu: doze grandes livros, quase oitenta discos, infinitas outras autorias e interpretações na música, na literatura, no teatro e no cinema.
Árvore boa e frutos também
Francisco Buarque de Hollanda, Chico Buarque, nasceu, viveu e dá continuidade a uma família de intelectuais e artistas muito conhecidos no Brasil. É um carioca de gema, que completará os 75 anos no próximo dia 19 de junho. Há todo um simbolismo que gira à volta do seu nascimento: o Largo do Machado, a Maternidade São Sebastião, a cidade do Rio de Janeiro… É o quarto de sete filhos. Família tradicional, cujo pai é o conhecido historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e a mãe, uma pianista, a senhora Maria Amélia Cesário Alvim. Foi casado por 33 anos com Marieta Severo, com quem teve suas três filhas. Marieta Severo é uma conceituada atriz brasileira, que interpreta a personagem Sophia - da novela da Rede Globo “O Outro Lado do Paraíso”, escrita por Walcyr Carrasco, em exibição na Televisão de Cabo Verde.
Os momentos bons e as horas más que a memória coa
É o meu verso preferido do Autor, emprestado ao “Romance” de 1993. Génios como Chico Buarque têm versos que, sobretudo quando musicados, são, por si só, uma obra-prima. Mas esta escrita vem de longe.
Você sabia?
Antes dos dez anos, ele já compunha as “Marchinhas do Carnaval” e falava três línguas. Quando em 1953 seu pai Sérgio Buarque foi convidado a exercer docência na Universidade de Roma, a família muda-se para a Itália. Na “Ora di bai” o pequeno Chico, com apenas nove anos, foi se despedir da avó. E escreveu-lhe um delicioso bilhete:
Vovó, você está muito velha e quando eu voltar eu não vou ver você mais, mas eu vou ser cantor de rádio e você poderá ligar o rádio do Céu, se sentir saudades.
Assim se entende que ele tenha merecido todo o respeito e deferência, no mundo da cultura, todas as homenagens que lhe foram feitas e tenha ganho os prémios que ganhou, entre os quais o Prémio Jabuti com o livro Budapeste do qual cito alguns excertos:
Artistas, políticos e escroques famosos batiam à minha porta, mas eu me dava ao luxo de atender somente personagens tão obscuros quanto eu mesmo. Clientes que me lembravam aqueles da sala três por quatro do centro da cidade, exceto por serem ricos o suficiente para pagar o cachê extorsivo que o Álvaro estipulava, além de custearem a tiragem do livro para distribuição entre parentes e amigos. Tipos como o velho criador de zebu dos cafundós do país, cujas memórias reescrevi (…) Minha produção era então copiosa, e já às vésperas de partir para a Turquia tinha me comprometido a pôr em livro as aventuras cariocas de um executivo alemão, que agora me aguardava na agência. Mas eu estava com preguiça, vim pela praia devagar, vim olhando as meninas de bicicleta, parei para tomar um coco, quase dormi em cima do balcão, e quando cheguei o alemão tinha acabado de ir embora. Fiquei um tempo plantado na recepção, sem saber o que fazer, e a voz aguda do Álvaro atravessava as paredes: mas a idéia de distribuir laranjas foi do governador. . . aí teria que numerar todos os cavalos. . . claro, ninguém pega herpes pelo telefone. . . o.k., cara, se você quiser, eu providencio uma tréplica. . . então vamos deixar para lá, tchau tchau. . . alô!. . . A recepcionista queria me anunciar ao Álvaro, mas não precisava, era muita a preguiça, era o fuso horário, era o jet lag, era vontade de ir para casa.
Em jeito de despedida, fica o testemunho de Ruy Guerra, cineasta e escritor, registado em outubro de 1998, a “Chico de Hollanda, de aqui e de alhures”.
Parceiro de euforias e desventuras, amigo de todos os segundos, generosidade sistemática, silêncios eloquentes, palavras cirúrgicas, humor afiado, serenas firmezas, traquinas, as notas na polpa dos dedos, o verbo vadiando na ponta da língua - tudo à flor do coração, em carne viva... Cavalo de sambistas, alquimistas, menestréis, mundanas, olhos roucos, suspiros nômades, a alma à deriva, Chico Buarque não existe, é uma ficção - saibam. Inventado porque necessário, vital, sem o qual o Brasil seria mais pobre, estaria mais vazio, sem semana, sem tijolo, sem desenho, sem construção.
Cidade da Praia, Ilha de Santiago, 21 de maio de 2019 – Dia do Profissional de Letras
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