Surreal a pergunta em título. Mas ganha legitimidade e fundamento quando as declarações de uma governante, no caso Eunice Silva, ministra das Infraestruturas e da Habitação, e da oposição, no caso presidente do PAICV, Janira Hopffer Almada, se convergem no sentido de que o governo pretende esconder cerca de 400 mil contos destinados ao financiamento do Programa de Requalificação, Reabilitação e Acessibilidades (PRRA) ao controle do Tribunal de Contas. Sim, ganha legitimidade e fundamento, quando são os próprios órgãos do poder do Estado - que criam as leis - a inventar “expedientes” para fintar essas mesmas leis, sem qualquer remorso ou sentido de dever institucional e público.
O PAICV procurou a imprensa para manifestar o seu desconforto perante aquilo que denomina de “confissão pública” da ministra das Infraestruturas e da Habitação, Eunice Silva, em como “irá driblar a lei, de modo a que os recursos do Programa de Requalificação, Reabilitação e Acessibilidades (PRRA), convencionados com as Câmaras Municipais para a reabilitação urbana, escapem ao visto prévio do Tribunal de Contas”.
Segundo o maior partido da oposição, o governo e a maioria que o suporta, fez aprovar uma lei que exige que “qualquer contrato público, no valor de 20 mil contos, seja submetido ao visto prévio do Tribunal de Contas”, revogando assim a lei anterior que fixava 7 mil e 500 contos como valor máximo a partir do qual os contratos teriam de ser submetidos ao visto prévio do Tribunal de Contas.
Ora, para o PAICV, que cita a ministra Eunice Silva, ao assinar contratos-programa no valor de 19 mil e 800 contos, no quadro do PRRA, para fugir à fiscalização do Tribunal de Contas, o governo estará a utilizar um expediente que o permite utilizar 400 mil contos sem qualquer controlo de uma instituição pública criada para controlar a legalidade, a eficiência e a eficácia na utilização do dinheiro público e demais bens e recursos do Estado, escrutinando os atos dos detentores de cargos públicos.
Com efeito, ao assinar contratos-programa com 22 municípios, em valores de 19 mil e 800 contos – portanto próximos dos 20 mil contos que exigiam o controle prévio do Tribunal de Contas – o governo estará a “fugir” com 400 mil contos para longe da fiscalização financeira que as regras de uma administração transparente exigem e defendem e estão previstas na Constituição da República e nas demais leis subsidiárias que regulam o funcionamento da máquina pública cabo-verdiana.
E porque estará o governo a agir desta forma? Com efeito, a atitude do governo suscita leituras e questionamentos diversos, conforme se lê na nota do PAICV. Uma delas é a de que “a partir de agora, se a moda pega, nenhuma entidade pública precisa submeter os contratos públicos ao visto prévio do Tribunal de Contas. Basta copiar o governo, e utilizar este expediente. Fazer vários contratos, cada um no valor máximo de 19 mil e 999 contos”.
Outra leitura é a de que o país certamente terá chegado “ao ponto de ser o próprio governo a driblar a lei, mostrando e ensinando a todos que expediente podem utilizar para se driblar a lei, o que consubstancia, claramente, indícios de corrupção de forma clara, inequívoca e intencional”.
Ora, o PRRA é um programa com assento no orçamento do Estado e consome milhares de contos dos cabo-verdianos, sendo, na opinião do maior partido da oposição “o único programa que tem permitido ao governo visitar as ilhas”.
Por este motivo, os tambarinas questionam e dizem esperar “que o primeiro-ministro e o seu governo não caiam na tentação de tentar utilizar essas verbas para preparar as eleições autárquicas, no próximo ano”.
Pelo sim, pelo não, o PAICV pede ao Ulisses Correia e Silva, na nota que Santiago Magazine faz referência, “que todos esses contrato-programa sejam imediatamente enviados para o Ministério Publico, à semelhança daquilo que o governo e o vice-primeiro-ministro fez com os contratos assinados para a reabilitação do edifício do Ministério das Finanças, na anterior governação; que mande anular todos os contratos-programa assinados, nos moldes em que o forma, por indiciarem claramente corrução, com a confissão de que se estar a querer driblar a lei; que só depois disso promova a sua celebração em moldes que permitam o controlo prévio do Tribunal de Contas – ou seja, sem expedientes e sem que se tente driblar a Lei”.
Aqui chegado, este diário digital achou por bem relembrar aos seus leitores que não há democracia sem uma fiscalização política e social forte e atuante, sobretudo quando as instituições do Estado dão sinais de fraqueza e de debilidade funcionais, abrindo brechas para a entrada e a prevalência de atos de corrupção, laxismos e violações de deveres e obrigações diversas.
É básico, e é consensual, que as instituições democráticas, os órgãos do poder do Estado, devem ser credíveis e confiáveis. Estes atributos são, em última instância, uma obrigação constitucional, mas também organizacional e funcional.
Nenhuma sociedade que se diz democrática consegue se afirmar, ou sequer sobreviver, sem a credibilidade e a confiança institucionais.
A credibilidade e a confiança são, pois, em justa dimensão, a alma das sociedades democráticas, onde o primado da legalidade, da responsabilidade e da prestação de contas se vinculam aos princípios da eficiência e eficácia na gestão dos recursos públicos.
É inadmissível, e não deve ser tolerado em caso algum, que os órgãos do poder do Estado inventem expedientes para fintar ao controle institucional e legal a que estão sujeitos, no exercício das suas funções públicas.
A direção,
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