Irmão presidente da Assembleia Geral (AG) fixa salários e outros subsídios para irmão administrador; Irmão administrador contrata irmão empreiteiro para execução de obras sem concurso; Presidente da AG decide sobre assuntos fora da sua competência; Aquisição de bens e serviços no montante acima de 50 mil contos, à margem do código de contratação pública, estão entre dezenas de irregularidades e ilegalidades detectadas por uma auditoria realizada, afinal, pela Inspecção Geral de Finanças (IGF), à empresa Águas de Santiago (AdS), e que lesaram os cofres públicos em milhares de contos.
Ponto prévio: de facto, não foi o Millenniun Challenge Account (MCA) quem encomendou auditoria à empresa Águas de Santiago (AdS), mas sim o ministro das Finanças, Olavo Correia, através da Inspecção Geral de Finanças (IGF), numa missão inspectiva integrada pelos inspectores, Gabriel Romualdo Neves e Lidiane Andrade Rodrigues, sob coordenação do inspector-geral adjunto, Renato Lopes Fernandes.
Do essencial que esta missão registou num documento cujo conteúdo este diário digital teve acesso, regista-se que a AdS vinha violando as leis e regulamentos aplicados na gestão das instituições públicas em Cabo Verde, nomeadamente o código das contratações públicas e o estatuto do gestor publico.
A AdS, que tem financiamento do MCA, foi instalada entre 2014 e 2015. O funcionamento efectivo da empresa só começa a 2016. Entretanto, a inspecção afirma que já nesse ano, “não foram elaborados os instrumentos de gestão previsional que disciplinam em termos de gestão económica e financeira a actuação da sociedade designadamente, a plano anual de actividades, o orçamento anual e plurianual e o plano de investimento anual e plurianual”.
Ademais, “no que concerne ao controlo interno, a AdS não dispõe do manual das políticas contabilísticas e das medidas de controlo interno”, lê-se no referido documento, bem como “o regulamento que estabelece o mecanismo de funcionamento do fundo fixo, a sua constituição, reposição e o limite de despesas que devem ser pagas com o fundo”.
Tudo isso, pode estar na origem das muitas irregularidades e ilegalidades praticadas pelos dirigentes da empresa, no período inspecionado, ou seja de 2014 a primeiro semestre de 2017, onde se conclui que as coisas não andaram de feição no que à gestão financeira, administrativa e patrimonial diz respeito.
No capítulo das aquisições de bens e serviços, a empresa adquiriu, por ajuste directo, ou seja sem concurso, mobiliários, serviços de decoração, viaturas e equipamentos informáticos no valor global de 50 milhões, 615 mil e 946 escudos.
Para esta aquisição “não foi elaborado o plano que concentra os bens e serviços a adquirir ou alugar no ano devidamente aprovado pela Assembleia Geral; não foi elaborado o caderno de encargos; não foram elaborados contratos de fornecimento”.
Tais procedimentos violam o código de contratação pública, pois este estipula na alínea b) do nº 2 do artigo 30 que para valores iguais ou superiores a 5 mil contos, o procedimento deve ser concurso público.
A empresa celebrou um contrato de empreitada para remodelação das lojas de Assomada, São Domingos e Cidade Velha, com o socio gerente da empresa CV – Engenharia e Construções, Élio Fernandes Tavares, irmão do administrador Vital Fernandes Tavares, por ajuste directo, isto é, sem concurso.
Este contrato acusa o valor global de 3 milhões, 488 mil, 564 escudos. O documento de inspecção “observa a violação da ética e transparência neste processo”, pelo facto de o contratado e o contratante serem irmãos, ao mesmo tempo que chama a atenção pela “inexistência do relatório de acompanhamento e fiscalização da obra”.
Por outro lado, os inspectores não deixaram passar em branco o pagamento de trabalhos a mais ao empreiteiro, Élio Fernandes Tavares, no valor de “239 mil 948 escudos, sem contrato adicional”. Quer dizer, o contrato final veio a ficar em 3 milhões, 728 mil 512 escudos, superior aos 3 mil e 500 que a lei estipula como limite para ajuste directo.
Mais: a AdS abriu um concurso para remodelação das lojas do Tarrafal, Calheta e Santa Cruz em que o prazo para apresentação das propostas era de 4 dias (de 11 a 15 de Julho de 2016). Concorreram a CV – Engenharia e Construções, Construção Barreto, EM – Ar Condicionado, Pilar e Technor.
As empresas foram contactadas por email e as propostas deviam ser enviadas também por email, para a caixa do correio do eng. Nilton Correia, director de Equipamento e Investimentos da AdS. Dessas 5 empresas concorrentes, apenas a Technor apresentou a proposta dentro do prazo estabelecido.
Entretanto, a escolha recaiu sobre Construções Barreto, com uma proposta financeira de 5 milhões, 597 mil, 273 escudos, curiosamente, a última empresa a concorrer. Em segundo lugar ficaria a Technor, com 6 milhões, 488 mil, 350 escudos.
A inspecção registou uma série de irregularidades neste processo: “convite enviado por email aos concorrentes não indica a data, hora e local do acto público de abertura das propostas; não define os critérios de adjudicação; não foi realizado o acto público de abertura das propostas; os concorrentes enviaram apenas a proposta financeira; as propostas entraram fora do prazo, exceptuando a da Technor”.
Ademais, o custo total desta empreitada acabou por aumentar mais 35%, em relação à proposta inicial pela construtora, passando para 7 milhões, 506 mil, 540 escudos, superior a todas as propostas inicialmente apresentadas. Porquê? Porque a AdS pagou à empresa Construções Barreto o montante de um milhão, 909 mil e 267 escudos de trabalhos a mais, “sem contrato adicional, nem outro documento escrito que especifique e fundamente a necessidade do trabalho realizado”.
O antigo presidente da Camara Municipal de Santa Catarina, Francisco Fernandes Tavares, que também acumulava as funções de presidente da Assembleia Geral dos accionistas da AdS decidia fora das suas competências, conforme apurou os inspectores da IGF.
“O contrato de gestão celebrados com os administradores é irregular, tendo em conta que não estava mandatado pelos accionistas para o efeito”, regista o documento da inspecção, acrescentando que “a alínea g) do artigo 16 dos estatutos da AdS estabelece de forma clara que compete à Assembleia Geral dos accionistas deliberar sobre as remunerações dos titulares dos órgãos sociais”, lê-se no relatório.
Mais grave ainda, de acordo com o documento, o ex-autarca de Santa Catarina decidiu fixar um subsídio de refeição diário para os administradores da empresa no valor de 800 escudos, sem que para tal estivesse mandatado, porquanto é uma competência da AG.
O Conselho da Administração estipulou um tecto para subsídio de renda de casa aos administradores no montante de 25 mil escudos mensais. No entanto, foram celebrados dois contratos de arrendamento com valor superior ao fixado, acusando uma diferença para mais de 30 mil escudos mensais.
Diz o relatório de auditoria que os administradores não respeitavam o tecto de 800 escudos de subsídio diário para refeição, apresentando valores de mil e 200 escudos, ou seja, 400 escudos a mais.
A empresa gasta mensalmente com os seus administradores 209 contos só em subsídio de renda de casa, alimentação e comunicação. A estes valores acrescentam-se ainda mais 100 contos mensais em subsídio de combustível.
Ora, estes gastos foram objecto da seguinte apreciação dos inspectores: “independentemente da legalidade e razoabilidade da acumulação dos diferentes benefícios concedidos pela empresa, do ponto de vista da gestão parece-nos pouco racional suportar custo mensal com habitação, subsídio de refeição e subsídio de comunicação no valor de 209 mil e 200 escudos, para se fixar os administradores no concelho de Santa Catarina e, ao mesmo tempo, suportar despesa mensal com combustíveis no valor de 101 mil e 160 escudos, sendo uma parte substancial para garantir a deslocação à cidade da Praia”.
Os inspectores consideram que o contrato de gestão celebrado entre os irmãos Francisco Fernandes Tavares, presidente da AG dos accionistas da AdS, e Vital Fernandes Tavares, administrador da AdS, “contraria o dever ético e moral, pondo em causa a transparência do processo”. Por outro lado, uma decisão tomada por uma órgão incompetente para o efeito é nulo ou anulável nos termos da lei.
De igual modo, os inspectores consideram que “a participação do administrador do pelouro de engenharia, Vital Fernandes Tavares no júri do concurso sem ter declarado ligação de parentesco com o sócio e administrador da CV – Engenharia e Construções, Lda, viola o princípio do dever de actuação ética, previsto do artigo 20 do Código de Contratação Pública e de incompatibilidades e impedimentos, previstos no artigo 21 do Estatuto do Gestor Publico”.
Posto isto, os inspectores sugerem que as contas de 2016 sejam auditadas, “tendo em conta que as contas dos fornecedores revelam diferenças substanciais, derivados de erros e omissões de lançamentos nas respectivas contas e que se estabeleça mecanismos de acompanhamento sistemático das actividades da empresa e de exame das contas, designadamente através da nomeação do conselho fiscal”.
Os inspectores pedem ainda que se promova “auditorias externas anuais das contas e das actividades de gestão da empresa por uma sociedade revisora de contas”. Ainda de acordo com os inspectores, “as remunerações dos administradores devem ser revistas”, mas também o administrador Vital Fernandes Tavares “deve ser responsabilizado pela sua participação no júri do concurso em que o seu irmão foi um dos concorrentes”.
A má gestão na AdS resultou num rombo superior a 40 mil contos, tal como este jornal havia denunciado na sexta-feira passada. Santiago Magazine reitera a informação de que o actual Conselho de Administração da AdS já não tem o apoio das câmaras municipais de Santiago desde Agosto (última Assembleia Geral), tendo os autarcas presentes aprovado a queda do CA e a nomeação de uma nova equipa gestora, o que deve acontecer agora em Dezembro ou Janeiro, o mais tardar.
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