Trigo & Joio. Anotações Sobre Uma Pedra Contra o Firmamento, de José Luiz Tavares
Cultura

Trigo & Joio. Anotações Sobre Uma Pedra Contra o Firmamento, de José Luiz Tavares

Se procurássemos uma ordem temática para este volume, talvez a primeira pergunta da entrevista conduzida por Abraão Vicente pudesse figurar na sua abertura: “Considera-se um enfant terrible?”. O epíteto, usado neste contexto, convoca esse sentido figurado, comum no campo literário, do insurreto que zurze a feira das vaidades comerciadas pelos seus pares. José Luiz Tavares cinde habilmente a locução francesa para recuperar, por um lado, a figura do infante guiado pela inocência necessária à criação poética, e recriar, por outro lado, essa “personalidade poética áspera” que, no subtítulo deste livro, aponta o dedo do meio às nossas fuças. O facto de o entrevistador ser um dos alvos do enfant terrible, assumindo assim duas personae distintas na coletânea, enfatiza a natureza ficcional – trata-se ainda e sempre da arte da literatura – que o seu nome assume nestes textos polémicos.

1. Com dezena e meia de livros de poesia publicados desde 2003, ano de Paraíso Apagado por Um Trovão, José Luiz Tavares reuniu agora, em Uma Pedra Contra o Firmamento, um maciço conjunto de outros textos, alguns inéditos, outros divulgados em periódicos e afins, em papel ou em suporte digital. Os capítulos mais importantes são “1. Pátria soletrada à vista do harmatão”, reinvenção de viagens pelo Cabo Verde de hoje; “2. Raio sobre o mundo”, elocuções sobre o ofício do poeta e comentários de circunstância; e “4. O rosto da autenticidade”, entrevistas escritas abordando matéria literária com importantes incursões pelas políticas culturais do país. Entretanto, na parte “3. Apertar o gatilho e soltar o pum”, juntam-se intervenções polémicas e outras farpas dispersas. Esta edição da Livraria Pedro Cardoso, com 556 páginas, oferece ainda, na parte “5. Sob lâmpadas e bisturis”, 35 textos sobre a sua obra poética, assinados por académicos, jornalistas ou pares, identificados numa “Tábua de contribuintes” (parte 9.), além de esclarecer as “Origens e circunstâncias dalguns textos” (parte 8.).

2. Como epígrafe geral, lemos um conselho dos Pensamentos de Giacomo Leopardi que termina assim: “Quem quer elevar-se, ainda que por virtude verdadeira, deve abolir a modéstia”. Não por acaso, mas por certa afinidade temperamental, esta citação acha-se também num texto recente de Diogo Vaz Pinto, o mais empenhado polemista da atual cena poética portuguesa. Ruy Knopfli ou Eugénio Lisboa em Moçambique, David Mestre ou José Eduardo Agualusa em Angola, como sobretudo João Vário em Cabo Verde, foram ou são bons vizinhos deste campo da intervenção literária de José Luiz Tavares. A citação que fecha este volume foi aliás colhida na “Proposição” das Sturiadas, de G. T. Didial (divulgada na antologia de Francisco Fontes): “E era também célebre por detestar/ as contendas moles como caudas/ e os narradores obsequiosos”.

3. Mas é a figura tutelar de Jorge de Sena, inimigo das “vestais do puro” e irmão dos que “conhecem o sal”, que se convoca no “Aviso às almas pudicas à entrada deste livro”, uma glosa ao “Aviso de porta de livraria” dirigido pelo português ao leitor de Exorcismos (1972). Sena e Tavares servem-se retoricamente de Camões (“segundo o amor tiverdes,/ tereis o entendimento de meus versos”), reformulando, cada um a seu modo, as condições de entendimento do amor, da poesia ou da pátria. Alguns poemas fesceninos fecham Arder a Vida Inteira num discreto in quarto; mas aqui, em Uma Pedra Contra o Firmamento, trata-se sobretudo de Cabo Verde e das suas paisagens naturais, humanas e literárias. Circunstanciando o exorcismo de Jorge de Sena, José Luiz Tavares apenas expulsa do templo esses “menoríssimos escribas” quer se alcandoram nas instituições políticas ou literárias cabo-verdianas. As respetivas sinédoques serão Abraão Vicente, o das “ministeriáveis vestes”, e Vera Duarte, a das “patuscas academias”. As reles reses somos todos nós a caminho do azougue, como no Schopenhauer lido por Arménio Vieira; mas podemos presumir que alguns se redimem banhando-se na poesia vertical?

4. Uma nota anteposta a “1. Pátria soletrada à vista do harmatão [Andanças por Cabo Verde e outras paragens]” esclarece-nos que este capítulo antecipa um livro futuro, que abordará “aspetos paisagístico-patrimoniais, socio-históricos, culturais, antropológicos e políticos” do seu país. O projeto lembra a ambição do Timóteo Tio Tiofe, que no prefácio ao Segundo Livro de Notcha anunciava a trilogia que havia de cobrir as nove ilhas habitadas de Cabo Verde. E como no caso do sósia de João Vário, estes textos de José Luiz Tavares convocam questões genológicas importantes, sugeridas desde a nota introdutória. A forma deste projeto pode invocar obras como Corsário das Ilhas, de Vitorino Nemésio, ou Açores - O Segredo das Ilhas, de João de Melo. Mas logo no “Prelúdio” irrompem certas preocupações e formulações que lembram João Vário, como esta: “lavar e preservar a alma é tarefa da candura e da cordialidade”. A linguagem adequada à reflexão ética e ontológica, mais do que ao registo antropossociológico, garante ainda essa substância literária que a imaginação artística acrescenta ao exercício da observação.

5. Curiosamente, o ensaio de uma fenomenologia do “peregrino sobre a terra” que António de Castro Caeiro oferece a este livro, no capítulo de autoria coletiva, parece mais próximo deste “Prelúdio” ao país a soletrar do que das Instruções para Uso Posterior ao Naufrágio que pretende comentar. “A viagem que faz o artista”, diz o filósofo português, “implica a abertura de uma dimensão que se encontra fechada não só para os outros, mas para ele até dada altura”; assim a viagem desvela “horizontes de sentido até então mudos”, que “requerem linguagens muitas vezes inventadas para existirem”. Ora José Luiz Tavares repete justamente que parte “para a invenção e conhecimento” do que há de ser o seu Cabo Verde.

6. Pelos últimos parágrafos do mesmo “Prelúdio”, o autor convoca os poemas autógrafos que falam das pedras atiradas “em amorosa contenda” aos corvos da infância. A este propósito, registem-se os fecundos regressos, nestas “Andanças por Cabo Verde & outras paragens”, ao Chão Bom de Paraíso Apagado por um Trovão, à Chã das Caldeiras de Coração de Lava, às tabernas, às ruas e aos arredores de Lisbon Blues. Uma parte importante das obras de T. Tio Tiofe e de Filinto Elísio tira proveito da capacidade de transmutação daquilo que seria narrativa e crónica (respetivamente) em depurado discurso poético. José Luiz Tavares inverte esse processo para acrescentar novas camadas ao corpus lírico que lhe conhecemos. Vejam-se, em “Txonbon”, as irrupções de “nomes familiares” e de topónimos registados na língua cabo-verdiana, num exercício que lembra as rememorações exemplares de Nzé de Sant´y Ago. Ou o reencontro com Antónia em “Chã das Caldeiras”, sugerindo a génese ou o prelúdio do poema em que “Falam as silenciosas soberanas da terra”. Ou como em “Lisboa, Rua da Horta Seca” se invoca o sangue de Alcindo Monteiro, assassinado por skinheads a 10 de Junho de 1995, visitação íntima de um trauma geracional que se acrescenta ao “ensanguentado/ chão” de Lisbon Blues.

7. A releitura e reescrita da obra poética compreende ainda, agora nas várias partes do volume, as amplas geografias literárias (como bem assinala António Cabrita) percorridas em Agreste Matéria Mundo ou em Instruções para Uso Posterior ao Naufrágio, quer enquanto formulação da arte poética do autor, quer enquanto avaliação crítica dos escritores seus contemporâneos. Uma analogia heterodoxa do “Aviso às almas pudicas…” apresenta a poesia como arte rasteira e de boa polpa, i.e., como a haste e o fruto das cucurbitáceas. Quando a “língua invetivante” quer expulsar as “obras de má fatura e nula consistência”, afirma-se, por contraste, que a brônzea beleza do poema se faz de “falas ásperas”, “arrastando o fedor e a lama do mundo”; ofício nutrido com “leituras”, “competência linguística”, “domínio dos mecanismos tropológicos”, o seu mais alto produto “desorbita a razão” e “faz fervilhar a imaginação”, buscando as ínvias regras “da divergência e do atrito”, pressentindo rugosidades e semeando “o assombro sobre a cabeça dos homens”. (E sejam suficiente ilustração estas citações postas entre paráfrases).

8. Alguns versos de “A deserção das musas” desprezavam os poetas luso-anglo-saxões, opondo-lhes uma “ética da escrita” que não receava “o desconhecimento das suas incertas leis”. Outros versos, incluídos neste livro, são titulados como “Epístola(s) aos poetas do meu país”, e propõem idêntica aprendizagem poética: “É a descer, poeta,/ que te dás conta como estreitas/ são as veredas e enganosos os sinais”. Já uma leitura atenta da “Epístola aos meus amigos e inimigos a propósito das últimas condecorações” teria sido particularmente útil a esse desavisado Blimundo do folclore cabo-verdiano.

9. A mais veemente diatribe da secção “3. Apertar o gatilho e soltar o pum” intitula-se “De erupções capilares a cuspidelas duma certa dentadura literária [ou singelo contributo para a desratização da literatura pátria e suas instituições]”. A partir deste subtítulo parentético, que lembra Swift e Cesariny, pretende-se alertar a “nova geração” para as “armadilhas” e “perigos da institucionalização” da literatura cabo-verdiana. Vera Duarte, ex-presidente da Academia Caboverdiana de Letras, é a protagonista desse intrincado “comércio de promoções mútuas” invetivado por José Luiz Tavares. Entretanto, o “Aviso às almas pudicas à entrada deste livro” diz-nos que “contar a mágoa imensa/ em forma de poesia” é afinal “quanto importa” – “e não estas viris farpas”.

10. Então Mallarmé respondeu a Degas que não é com ideias que se faz um poema, mas com palavras. Também José Luiz Tavares nos diz que “a literatura é menos uma questão de ideias do que de palavras”; é necessário, portanto, “pensar o poema como fala incomum antes de edifício de ideias”. Este preceito da arte poética do autor pode servir de mote para a discussão da poesia cabo-verdiana de hoje escrita por mulheres (aliás recentemente ensaiada também em versos de José Luís Hopffer C. Almada). A este propósito, deixo apenas “meia palavra a bom entendedor”: a utilidade da leitura de Sharon Olds e de Luiza Neto Jorge, que José Luiz Tavares confia às moças cabo-verdianas, está muito bem patente na sua obra poética.

11. Se procurássemos uma ordem temática para este volume, talvez a primeira pergunta da entrevista conduzida por Abraão Vicente pudesse figurar na sua abertura: “Considera-se um enfant terrible?”. O epíteto, usado neste contexto, convoca esse sentido figurado, comum no campo literário, do insurreto que zurze a feira das vaidades comerciadas pelos seus pares. José Luiz Tavares cinde habilmente a locução francesa para recuperar, por um lado, a figura do infante guiado pela inocência necessária à criação poética, e recriar, por outro lado, essa “personalidade poética áspera” que, no subtítulo deste livro, aponta o dedo do meio às nossas fuças. O facto de o entrevistador ser um dos alvos do enfant terrible, assumindo assim duas personae distintas na coletânea, enfatiza a natureza ficcional – trata-se ainda e sempre da arte da literatura – que o seu nome assume nestes textos polémicos.

12. A minha hipótese de leitura da polémica literária em José Luiz Tavares afirma, portanto, que o modificador desta locução – “polémica literária” – designa menos o seu conteúdo do que a sua forma. E se a primeira objeção embarga a distinção proposta entre forma e conteúdo, ela confirma justamente a literariedade essencial destas polémicas. Os casos agora revisitados são pretexto para cultivar o estilo adequado ao exercício em causa, do qual o autor se mostra aliás exímio praticante (e amiúde mais camiliano do que queirosiano). Neste sentido, as figuras públicas invetivadas são personagens homólogas daquelas que protagonizam a fábula É Ka Lobu Ki Fase. O facto de a mesma fotografia ilustrar os dois livros corrobora a coincidência das suas personae autorais e o cariz artístico das intervenções polémicas de José Luiz Tavares.

13. A tradição polémica cabo-verdiana partia de motivações sobretudo geracionais e, portanto, estéticas e ideológicas. Assim a querela dos antigos e modernos, cristalizada por Manuel Ferreira no cinquentenário de Claridade, não impediu Onésimo Silveira de oferecer a Consciencialização… de 1963 à memória de Pedro Cardoso, como aliás este ensaio pensado com Manuel Duarte em nada diminuiu Baltasar Lopes, Manuel Lopes ou Jorge Barbosa. Mas aquilo que mais importa neste livro de José Luiz Tavares responde ainda às exigências que T. Tio Tiofe fazia à sua geração: ler, discutir, exigir “o melhor do escritor cabo-verdiano”, exigir “críticos literários lúcidos, cultos, profissionais”, exigir “leitores interessados, exigentes”, como reitera a “Primeira epístola ao meu irmão António”.

14. Termino com uma variação sobre um apontamento de Gil de Carvalho a propósito do livro Do Corvo a Santa Maria, de Joaquim Manuel Magalhães. Ainda que a densidade de Uma Pedra Contra o Firmamento o afaste do prático vade-mécum, como atesta aliás o malogro desta recensão; e mesmo que o autor não se queira hermeneuta da própria obra, como assegura a diferentes interlocutores – apesar disso, temos boas razões para supor que estes diários de viagens, estas intervenções polémicas e estas entrevistas escritas nos dizem mais sobre a poesia de José Luiz Tavares do que todos os textos reunidos em “Sob lâminas e bisturis”.

 

 

 

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