Stribilin (56ª parte)
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Stribilin (56ª parte)

CCXXV CENA

João de Quina e Calixto ficam a jogar as cartas, bebendo alguns cálices de grogue enquanto esperam pelo regresso do Amândio. Ouve-se o relinchar da mula ao portão.

JOÃO DE QUINA – Que diabo quererá isto dizer?

CALIXTO – Este relinchar é da mula ruça!

JOÃO DE QUINA – O Sr. Doutor voltou assim tão depressa?!…

Saem ao portão e a mula está brava, toda aparelhada.

CALIXTO – A Ruça vem só… o Sr. Amândio não aparece…

JOÃO DE QUINA – Aqui houve o que quer que seja…

CALIXTO – Também julgo o mesmo. Oxalá que lhe não tenha sucedido mal algum.

JOÃO DE QUINA – O melhor é nós irmos dar parte disto ao Patrão, a ver o que ele determina.

CALIXTO – Tens razão; vamos lá. (Vão ao primeiro andar e Calixto bate à porta do quarto do Morgado) Patrão, alguma coisa já aconteceu com o Sr. Doutor!

Atordoados, Morgado levanta em pijama e Nhanha em camisa de noite.

NHANHA – Com o Amândio?! Com o meu filho?!

JOÃO DE QUINA – Ele saiu montado na mula ruça para ir curar uma mulher… a mula está no portão a relinchar, ainda com sela, brava como se visse Satanás!

NHANHA – Oh, minha Virgem Maria!

MORGADO – Que mulher é que ele foi curar?

CALIXTO – Um velho vestido com um casacão veio chamar-lhe para ir ver a sua mulher que estava doente.

MORGADO – Não sabem onde?

JOÃO DE QUINA – Ele disse-lhe para seguir este caminho de baixo e virasse à direita; que descia uma encosta e atravessava uma ribeira onde há um pequeno túnel e, que depois de passar por um pinhal, via-se um renque de casas cobertas de colmo. Que ele mora na segunda contar da esquerda.

MORGADO – Aprontem-se todas as luzes, o mais depressa que possam, e vamos procurar o meu filho.

NHANHA – Deus ajude que nada lhe tenha acontecido… que o meu filho esteja bem!

Saem precipitados.

CCXXVI CENA

Amândio está numa maca todo ensanguentado. Dr. Orlando observa-o com estetoscópios.

MORGADO – Então, Sr. Doutor, as feridas são de gravidade?

  1. ORLANDO – Uma, a do ombro, é insignificante: a bala apenas lhe resvalou pela carne; a outra, a do peito, essa é bastante séria: o projétil internou-se muito, e não posso verdadeiramente saber o sítio onde se depositou; veremos amanhã, se poderei extrair-lha; contudo, o que é necessário, por enquanto, ao doente, é sossego e repouso.

MORGADO – Ah! Sr. Doutor, que infelicidade a minha!…

  1. ORLANDO – Mas como é que isto aconteceu?

MORGADO – Olhe, Sr. Doutor, nem eu mesmo o sei… Há pouco veio aí um homem pedir para meu filho ir ver uma enferma que ele dizia ser sua mulher e estar em perigo de vida. Meu filho foi imediatamente, e, algum tempo depois de ter partido, regressou só a égua em que ele fora montado. Partimos todos a procurá-lo temendo já que lhe tivesse sucedido alguma desgraça e afinal fomos encontrá-lo nesse deplorável estado!

  1. ORLANDO – E não se sabe quem foram os autores de um tal atentado?

MORGADO – Ignoro-o completamente; contudo, o que me parece é que foram alguns salteadores que o quiseram assassinar, para lhe roubarem o pouco que levava, pois, efetivamente, roubaram-lhe relógio e cadeia, uma bolsa de preta com dinheiro, os botões da camisa que eram de ouro, e não sei que mais.

  1. ORLANDO – Que malvados! (Amândio desperta lentamente. Tosse e deita sangue pela boca. Dr. Orlando abana a cabeça) Mau sinal!… não sei se temos solução. (Amândio volta a dormir) Como ele está a dormir, vou a casa e pela manhã voltarei. Quando ele acordar, se estiver pior, vão chamar-me. O calmante e os medicamentos que lhe receitei, ajudar-lhe-ão a suportar a dor. Ministrar-lhos-ão aos copos, de pouco em pouco, e não o forcem a falar demasiadamente.

CCXXVII CENA

Todo o mundo triste, Amândio abre os olhos, esforça-se para levantar a cabeça,

MANA VAZ (acalmo-o) – Deixa-te estar, meu filho, não faças esforços… como é que estás a sentir?

AMÂNDIO – Eu?! (Sorri) Acho-me bem…

MANA VAZ – Oxalá lá assim fosse…

TERESA – Então, Amândio, como foi isso?

AMÂNDIO – Castigo de Deus, Teresa…

TERESA – E não sabes quem foram os autores desse crime?

AMÂNDIO – Parece-me que conheci um deles; no entanto, não tenho a certeza, porque a escuridão da noite não me permitiu distinguir-lhe bem as feições.

TERESA – Mas, nesse caso, seria conveniente fazeres cientes as autoridades das tuas suspeitas, e por elas verificar-se-ia se seriam ou não fundadas.

AMÂNDIO – Não sei para quê… Não pode haver provas convincentes, e, além disso, que necessidade tenho eu de fazer vexar um homem que pode estar inocente? Se na verdade ele estiver culpado, Deus o castigará… (Chega o Dr. Orlando e cumprimenta a todos) Senhor Doutor, gostaria de ficar a sós consigo. Queria ter um pouco de conversa consigo.

As pessoas saem umas atrás das outras.

  1. ORLANDO – Vejamos então agora, meu amigo, o que convirá fazer para o seu restabelecimento.

AMÂNDIO – Ah! meu bom colega, creio que serão desnecessários quaisquer esforços para o conseguir.

  1. ORLANDO – Como?!… Pois o senhor assim descrê de toda a esperança?

AMÂNDIO – Descreio, porque também sou filho da ciência, e porque ninguém melhor do que eu avalia a gravidade do ferimento que recebi.

  1. ORLANDO – Mas, meu amigo, como sabe, a medicina dispõe de milagrosos recursos, e pode muito bem ser que ambos nós possamos usar com proveito de qualquer deles.

AMÂNDIO – Neste caso nada se pode fazer, e a explicação dou-lha em poucas palavras: a extração da bala é, impossível, porque, não obstante eu ignorar verdadeiramente o lugar em que ela se depositou, tenho a certeza, contudo, que se internou demasiadamente e que foi afetar algum dos órgãos pulmonares. É isso, como sabe, o suficiente para uma morte certa.

  1. ORLANDO – Oh! Mas isso não pode ser. Tenha ânimo, tenha coragem…

AMÂNDIO – Já lhe disse, meu caro doutor estou tão convencido que morro, que até quase lhe poderei designar os dias que me restarão de vida.

  1. ORLANDO – Não; o senhor engana-se; o Sr. Amândio há-de curar-se e há-de viver ainda muitos anos.

AMÂNDIO – Oxalá assim fosse… Mas não creia que me amedronta a morte… Oh! Não. Apesar de ser custoso morrer na quadra mais bela da vida, quando se nutrem esperanças felizes, tenho coragem suficiente para arrostar desassombradamente com os imprescritíveis desígnios do destino… Seria demasiadamente fraco se assim não pensasse. Agora, meu amigo, cumpra os seus deveres: faça o curativo, não porque eu espere que ele me seja proveitoso, mas para que se não diga que o senhor me deixou morrer a falta de recursos e mesmo para não fazer desesperar essa boa gente que se interessa por mim. Agora, deixe entrar meus pais e os meus amigos. (Dr. Orlando dirige-se para ir abrir a porta) Se lhe perguntarem pelo meu estado, diga-lhes que é bastante grave, mas que há esperanças. Ser-me-ia muito custoso vê-los junto a mim, desesperados pela certeza da minha morte!…

  1. ORLANDO – Não desanimes, colega. Ajuda-me a ajudar-te. Se ficares assim desanimado, fazes-me também desanimar.

AMÂNDIO – Perdoe um pobre moribundo.

  1. ORLANDO (abre a porta) – Podem entrar, mas não façam barulho porque ele começou agora a dormir.

CCXXVIII CENA

De bruços à janela, Rosalina vê Calixto a aproximar-se, fica nervosa.

CALIXTO – Rosalina, o filho do meu patrão, o Sr. Amândio, mandou-me aqui para pedir-te que vá imediatamente falar-lhe.

ROSALINA – Como?! Pois ele ainda vive?!…

CALIXTO – Se ainda vive?!…

ROSALINA – Oh! Perdoe-me, Calixto. Mas quando o vi aproximar, foi a primeira lembrança que me ocorreu. Faz algum tempo que não o vejo!

CALIXTO – Ele pediu-me insistentemente para não deixar de te levar.

ROSALINA – Mas, meu Deus, que me quererá ele?

CALIXTO – Não sei. O que sei apenas é que ele me pediu com tal insistência e de um tal modo que te convencesse a acompanhar-me, que eu mais fácil seria não tornar a aparecer-lhe do que ir sem te levar comigo.

ROSALINA – Mas minha avó não sei se…

CALIXTO – Tive já o cuidado de lhe falar. o pedido também é para ela nos acompanhar.

ROSALINA – Para quê é que o Amândio precisa de nós as duas?! Se é para nos ir convidar o casamento… que nem tente. Eu não vou.

CALIXTO – Já reparei que não deste conta do que se passou.

ROSALINA – O que se passou?

CALIXTO – O Amândio… quase lhe mataram ontem.

ROSALINA – Ave-maria! A sério, Calixto? Quem o queria matar?

CALIXTO – Ele disse que estava escuro e que não reparou bem.

ROSALINA – E feriram-lhe gravemente? Corre risco de vida?

CALIXTO – É verdade, é, mas, por ora, graças a Deus, ainda não perdemos as esperanças.

ROSALINA – Sim?!… Oh! Então vamos, vamos. (Envolta num pano, pôs a caminho) Vamos, apanhamos a minha avó em casa da Rita onde ela foi comprar rapé.

CCXXIX CENA

Rosalina e Teresa estão sentadas uma ao pé da outra, segurando a mão direita de uma à esquerda da outra.

AMÂNDIO – Rosalina, chega mais ao pé de mim e deixa-me apertar-te no meu peito. (Estica o braço e a Rosalina faz esforço, com ajuda da Teresa, abraçam-se demorado) Já me perdoaste. Não é verdade?

ROSALINA – O que é que me fizeste, que te tenho que perdoar, meu anjo?

AMÂNDIO – O que é que eu te fiz!… Então, não foi por minha causa que tiveste muito tempo prostrada na cama?

ROSALINA – Não digas assim, magoas-me o coração.

AMÂNDIO – Ainda gostas de mim?

ROSALINA – Achas que algum dia conseguirei esquecer-me de ti? Pensas que sou daquelas que tem lume nas conversas, mas que conseguem fingir como se tivessem gelo no coração?

AMÂNDIO – Ainda está em tempo de remediarmos o mal, para recompensar-te o teu valor. Quero casar contigo.

ROSALINA – Casar comigo, Amândio?! Conheces algum homem que tenha casado com uma defunta, se a beira dele está uma pessoa que o coração dele escolheu?

AMÂNDIO – Recusas, Rosalina? Queres que morra com esse enorme peso na consciência? Se é por vingança que me fazes isso, escolheste uma vingança muito dura.

ROSALINA – O que disseste?

AMÂNDIO – Veja em que estado estou, Rosalina. Queres que remorso junte à minha dor e me atormentem?

ROSALINA – Oh, Amândio, não digas nem mais uma palavra para não me matares neste instante! Faz o que quiseres de mim; mata-me… se a minha vida te servirá para alguma coisa. Mas não me obrigues a casar contigo.

AMÂNDIO – Porquê, Rosalina? Porquê?

ROSALINA – É muito pesado! A filha da Sra. Mana Vaz morreria de desgosto. Podes casar com a Teresa, que da minha parte estás perdoado.

TERESA – Rosalina, sabes perfeitamente que não é verdade, porque já falamos: falei contigo, falei com Amândio. Eu e o Amândio, efetivamente, estávamos para casar. E já devíamos estar casados. Mas quando soube da impossibilidade, eu mesma fiz a questão de ele casar contigo.

AMÂNDIO – Rosalina, diz-me em quem, e em quê é que tu acreditas? A TERESA está aqui e ela já disse que quer que eu case contigo. Do mais a mais, casar contigo é a única felicidade que pode suavizar este último momento de vida que me resta. Só assim, sentirei o meu erro corrigido… um crime que a leviandade da mocidade obrigou-me a cometer.

ROSALINA – Já que é assim que queres, estou pronta para aceitar tudo o que me exiges.

AMÂNDIO – Não te estou a exigir, Rosalina: estou a pedir-te. Não calcules o quão contente estou. (Ele sorri) Não preciso de mais nada neste mundo. O nosso casamento será ainda hoje. Sinto o corpo a debilitar-me a cada momento… tenho medo se não puder pagar esta dívida.

ROSALINA – Não digas isso. Tens que viver para me poderes amar.

AMÂNDIO – É impossível, meu amor: sei perfeitamente o que tenho, para não alimentar vãs esperanças. Mas não penses que é porque tenho medo da morte! Estou feliz, porque sei que estou a cumprir um dever sagrado para com uma mulher que saberá respeitar a minha memória. Quando eu morrer… vai todos os dias, ajoelhar sobre a minha campa e molhe com as lágrimas de saudades, aquelas flores bravas que nascerão sobre ela.

ROSALINA – Enquanto Deus não me chamar para ir juntar-me a ti. Se morreres, não tardarei a juntar-me a ti.

Rosalina levanta e vai para perto da Teresa. Amândio olha para ela com olhos magoados.

AMÂNDIO – Pobre de ti, Rosalina!

ROSALINA – Perdoa-me, Teresa, perdoa-me.

TERESA – Perdoar-te de quê, minha amiga? Por acaso não cumpri o meu dever, ter reconhecido o teu direito? Da minha parte, não há rancor. Tudo já não está resolvido conforme queríamos?

AMÂNDIO – É verdade, Teresa. Agora quero que o casamento seja o mais breve possível.

MORGADO – Se é essa a vossa vontade… nós também estamos de acordo.

AMÂNDIO – Muito obrigado, meu pai. É uma pena, porque a fatalidade encostou-me com o seu dedo de desventura, fez-me prostrar nesta cama de amargura, numa idade mais linda de um ser humano, numa altura em que ia começar a viver a minha vida, e vocês gozassem a alegria da minha felicidade. Mas, assim, Deus que que seja. Sinto tão perto a morte… e sei que é um duro golpe para vocês. Mas… o que havemos de fazer?! Porém, antes que eu morra, papá e mamã, quero que este meu último desejo, casar-me com a Rosalina, seja aceite por todos vós. Ela é uma infeliz… tão infeliz que, mal recebe o sacramento, coisa que qualquer mulher cobiça, ela irá cair numa outra realidade que ninguém deseja: ficar viúva, vestida de preto. Que tamanha infelicidade!

Todos os presentes, com os olhos molhados de lágrimas, assentam-se com a cabeça.

MORGADO – Faça a tua vontade. Dar-te-emos o que nos pedires.

AMÂNDIO – Muito obrigado, meu pai. (Para Simoa) A si também, D. Simoa, aceita que sua neta, Rosalina, case comigo?

SIMOA (a chorar) – Achas que devo recusar um pedido desses para a minha neta… ainda por cima, para ela casar-se com um menino que criou-me nas mãos?

AMÂNDIO – Muito obrigado. Agora, Terezinha, toma conta da realização destas tristes núpcias. Tudo o que quero, é que o casamento seja já… o quanto antes. E quero que o Dr. Orlando e a senhora Mana Vaz sejam padrinhos.

TERESA – Da minha parte podes ficar descansado, Amândio. Trato de tudo, e brevemente estarás casado com este anjo que Deus te destinou.

Ela emociona, tapa a mão na cara e sai para não chorar em frente do Amândio.

CCXXX CENA

Tudo pronto para o casamento, Teresa entra com a noiva.

AMÂNDIO [V. O.] – «Até ainda estás bonita!… Pena é que, brevemente, pobre anjo, vais tirar essa roupa, e vestes de luto… indumentária das viúvas!»

Padre Gil faz o casamento e todos dão-lhes os parabéns.

AMÂNDIO – Querida mulher que Deus quis que seja minha! Pessoal, não se importam de dar-nos licença, quero ficar eu e a minha mulher por uns instantes?

O pessoal sai e eles abraçam-se ternamente.

ROSALINA – Amândio.

AMÂNDIO – Rosalina, minha querida, até que enfim já estamos casados! Era bom que Deus nos desse sorte para gozarmos um ao outro.

ROSALINA – Quando tu melhorares não arredamos, nem por um instante, longe um do outro… estava tão sozinha… tão longe de ti!

AMÂNDIO – Sim, meu amor, seremos muito felizes.

Diz isso já com uma voz débil e os olhos serenados.

ROSALINA – O que tu sentes, Amândio?

AMÂNDIO – Não é nada, não. É a minha ferida… apanhou-me uma dor… mas já passou. Deixa-me dar-te um beijo… (Rosalina inclina sobre ele) Encosta a cabeça ao meu peito… isso mesmo! És linda demais! (Namoram) Manda o pessoal entrar.

ROSALINA (em cima da porta) – SR. Morgado, Amândio disse para vocês entrarem.

As pessoas entram novamente.

AMÂNDIO – Olha, Rosa, já que estão aqui meus pais para velar por mim, vai acolá aquele canteiro que de aqui se vê e colhe-me um ramo das mais lindas flores, sim? (Rosalina sai contente) Meus queridos: afastei por um pouco deste lugar aquele pobre anjo para não ser testemunha das minhas tristes despedidas. Não queria morrer sem lhes dar o último adeus. Meus bons pais, sei quanto lhes há-de custar a morte deste filho que tanto idolatravam. Mas Deus, que é o juiz supremo dos nossos destinos, assim o quer… A consolação que me resta, é que sempre os respeitei e amei. No entanto, se alguma falta cometi involuntariamente, perdoem-me… Agora o que por último lhes peço é que tratem e respeitem esta pobre Rosalina como minha esposa, e nada mais. Adeus, meus queridos pais, adeus, e até a eternidade. (Abraçam-se com ternura) Sra. Mana Vaz, nesta hora suprema em que estou prestes a deixá-la, faltaria ao dever mais sagrado se lhe não agradecesse também a amizade de mãe que sempre me consagrou e se não lhe pedisse igualmente perdão das minhas leviandades e das faltas que cometi para com a senhora… Perdoe-me, Sra. Mana Vaz, perdoe-me porque eu não sabia o que fazia…

MANA VAZ (fica a soluçar) – Descanse, Amândio. Descanse, porque, apesar de serem insignificantíssimas as faltas que julgas cometer para comigo, eu te perdoo tudo.

AMÂNDIO – Obrigado, Senhora, obrigado. (Olha a Teresa e beija na mão) Teresa, alma nova e generosa, a ti sobretudo é que eu tenho de pedir perdão dessa grande falta que cometi. Estou certíssimo que me perdoarás, porque tu és uma santa. A ti, principalmente, é que eu devo o sossego destes últimos momentos e não tenho palavras com que te possa exprimir o meu reconhecimento. Perdoa-me, Deolinda, e adeus! Oxalá que na terra encontres um valioso prémio das tuas virtudes, porque no céu já te está reservado o lugar dos bons.

Ele cala e fica com os olhos semiabertos. Rosalina entra com um ramo de flor na mão. Todo o mundo calado, ela corre para o Amândio.

ROSALINA – Amândio?!

AMÂNDIO (abre o olho devagar e sorri) – Ainda estou vivo, minha Rosalina… Julgas que eu te deixaria sem te dar o último beijo? (Rosalina dá-lhe um beijo e ele) Chamem o Padre. Minha Rosalina, estou por momentos a deixar-te. Sinto já o estertor da morte a apertar-me a garganta como um anel de ferro. Olha, não te esqueças dos meus rogos. Respeita a minha memória, e depois, todas as manhãs, vai regar as flores da minha campa com o orvalho salutar das tuas lágrimas, sim?

Padre Gil entra preocupado, pede a todos que rezem pela alma do defunto.

CCXXXI CENA

Mana Vaz, Teresa, Simoa e Rosalina estão de joelhos a rezar em frente da cova do Amândio. Rosalina sente-se tremuras e fica com o rosto desfigurado. Teresa segura nela e ficam todas espantadas.

ROSALINA – Quero que me sepultem aqui.

Ela vomita uma golfada de sangue e cai de bruços. Todas ficam a chorar.

TERESA (põe-lhe a cabeça no regaço e emplastra-lhe água na testa) – O que é isso, Rosalina? Não nos comprometa por amor de Deus.

ROSALINA – Já não vale a pena… Deus já libertou-me… até que enfim, vou ficar junto do meu marido para eternidade. Teresa… minha avó… adeus eternamente… por favor, despeçam… – digam-lhes que fui eu que vos pedi… - do pai e da mãe do meu mari…

Rosalina olha para sua avó e para a Teresa, pende a cabeça e o coração para de bater. Teresa fecha-lhe os olhos e eleva a cara para o céu.

TERESA – Rezemos pela alma desta Santa Mártir… Rosalina não está mais entre nós.

CCXXXII CENA

Sentado numa cadeira, com uma mão no queixo, PADRE GIL toca uma campainha.

PADRE – «Pobre rapaz! Olha até onde a paixão leva criatura!»(Pega num tabaqueiro estanhado e sente passos de alguém) Benvindo que venha aqui falar-me.

BENVINDO (desconfiado) – Sou eu mesmo, senhor Padre.

PADRE – Senta-te aqui, meu rapaz, temos muito que conversar. (Benvindo senta-se, o padre inala um pouco de rapé) Como sabes, Rosalina de Simoa, essa infeliz rapariga tão querida desta aldeia, morreu. (Benvindo acena com a cabeça) A sua morte e a de Amândio foi um sucesso como de há muitíssimos anos não há memória. No entanto, a nenhum deles podemos dar remédio; o que nos resta agora é rezarmos pelas suas almas e conformarmo-nos com a vontade do Deus Poderoso. Depois disso, porém, ainda temos mais alguma coisa a fazer: é curarmos a grande ferida que uma daquelas existências deixou bem aberta… e evitarmos dessa forma talvez mais uma vítima…

BENVINDO – Não o percebo, Sr. Padre!

PADRE – Eu me explico: a vítima de que quero falar és tu; essa grande ferida é a que te rasga o coração...

BENVINDO – Qual ferida? O senhor quer dizer que…

PADRE – O quê?

BENVINDO – Acabe de falar.

PADRE – Tu também amaste Rosalina loucamente, e esse amor que ainda concentras no peito pode ser-te duplamente fatal; é portanto de ti e desse amor sem esperanças que precisamos tratar.

BENVINDO – Oh! mas eu não a amava… Não sei até se algum dia a amei!

PADRE – Não tentes iludir-te o coração, iludindo-me também, António, porque, para conhecer o teu estado moral, não é necessária grande perspicácia. Basta um leve conhecimento do coração humano. Mas vamos ao fim principal: lembras-te de eu por mais de uma vez tentar desviar de ti essa desgraçada paixão, chegando a dizer-te que, ainda mesmo que Rosalina correspondesse aos teus afetos, nunca poderias ser seu esposo?

BENVINDO – Lembro-me sim, senhor. E podia agora dizer-me porquê?

PADRE – Tinha sobejas razões para assim proceder. (O Padre olha para todos os lados) Rosalina era tua irmã!

BENVINDO – Minha irmã?! (Salta do banco e abana a cabeça) Minha irmã, a sério?! É impossível! Engana-se, por certo, senhor.

PADRE – Oxalá que assim fosse, mas, infelizmente, é verdade.

BENVINDO – Verdade?!… Mas como se concebe isso? Parece que a cabeça se me parte, meu Deus!

PADRE – Ora senta-te e ouve-me com atenção.

BENVINDO – O senhor não me tinha dito que a minha mãe morreu de parto quando eu nascia?… que o meu pai morreu na tropa, quando a minha mãe tinha-me ainda na barriga? Como então que Rosalina pode ser minha irmã, sendo eu mais velho do que ela?

PADRE – Sei que te disse isso… porque a tua mãe pediu-me. Nem a Simoa, tua avó, sabe se tu és neto dela.

BENVINDO – Então nós éramos irmão da parte da mãe?!

PADRE – Justamente.

BENVINDO – Não acredito que o Sr. Padre também falsifique a verdade.

PADRE – Por uma boa causa. Não podias crescer com traumatismo da infância. Seria perigoso e muito prejudicial para o teu desenvolvimento.

BENVINDO – Impossível… impossível!

PADRE – Quando a tua mãe ia dar à luz Rosalina, ela mandou-me chamar e pediu-me que lhe desse a extrema-unção. Perante nós os dois, ela contou-me o segredo do teu nascimento. Disse-me que conheceu um rapaz, e que mais tarde foi obrigado a cumprir o serviço militar; depois de um ano, uma bala acertou-lhe, e finou no campo de batalha. A tua mãe, sem recursos para te criar, foi confiar-te a numa casa da misericórdia. Dois anos depois, ela juntou com o pai da Rosalina. Mas antes da Rosalina tiveram um outro filho. Acabaram-se por zangar e, um certo dia, foi violada pelo próprio pai do seu filho e ficou grávida da Rosalina. A Rosalina nasceu, e foi ela quem a pôs o nome antes de partir para a casa do Pai. Ela contou-me a tua estória e pediu-me que te procurasse e te viesse criar. Poucos dias depois da morte dela, comecei a indagar e encontrei-te na Granja de São Filipe, sob o cuidado do Estado, juntamente com outros desafortunados.

BENVINDO – E como teve a certeza de que aquela criança era eu?

PADRE – Tenho, porque a tua mãe disse-me, para que te identificasse, que tinhas duas manchas negras no braço direito.

BENVINDO (repara no braço) – Não precisa dizer mais nada.

Levanta-se, vai dar um abraço apertado ao padre e sai cabisbaixo.

CCXXXIII CENA

Padre Gil encontra um bilhete em cima da mesa, apanha-a e lê baixinho.

BENVINDO [V. O.] – «Sr. Padre Gil: Quando ler esta carta, já terei deixado de existir. Suicido-me porque não tenho ânimo para arrostar com os remorsos dos meus crimes. Ocultei-lhe as minhas intenções sinistras, não lhe revelei o inferno em que ardia a minha alma depois dessa noite que matei o Amândio, marido da minha irmã. Ele foi vítima de um trama que lhe urdi, e fui eu próprio que o assassinei com o auxílio de mais dois cúmplices, por causa de ciúme. Morro pois, sem esperança de salvação, porque para criminosos como eu, Deus deve ser inexorável. Não procurem o meu corpo, porque será difícil encontrá-lo. Nem eu quero que o encontrem, para que não vá a presença dele manchar o lugar em que descansam esses dois infelizes, indo roubar-lhes a paz que ali gozam. Adeus, senhor padre Gil, e, em nome da minha pobre mãe, receba os protestos mais sinceros de gratidão que ela e eu lhe devemos pelo cumprimento da sua última vontade.

O Padre senta-se e debruça a cabeça sobre a mesa com a carta na mão.

 

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