CCXV CENA
Cada uma em sua cama, Rosalina levanta e espreita se Donita, sua avó, está a dormir. Agasalha num lençol e sai. Dá uma dúzia de passos, surge-lhe o Benvindo.
BENVINDO (com o braço cruzado ao peito) – Onde vais a estas horas, Rosalina? (Rosalina assusta-se e encosta a uma parede) Insensata! Diz: que ias fazer a estas horas, só, por esses caminhos desertos? (Ela não responde) Ora vamos: fala com franqueza e nada receies; em mim não tens presentemente senão um amigo, um homem que não tem deixado um só momento de velar pelo teu futuro e pela tua felicidade. Responde: saías com intenção de ir procurar Amândio na Praia, não é verdade?
ROSALINA – Benvindo!
BENVINDO – Não tentes negar coisa alguma, porque eu sei tudo.
ROSALINA – Sabes tudo!
BENVINDO – Sim. Sei que, apesar das indiferenças que mostravam publicamente um pelo outro, nunca deixaram de corresponder-se secretamente; sei que as vossas entrevistas tinham lugar todas as noites no quintal da tua casa; sei que depois da partida do Amândio vos tendes correspondido; e sei finalmente que há perto de dois meses não tens recebido carta dele, apesar de lhe teres escrito sempre.
ROSALINA – E não sabes mais nada?
BENVINDO – Infelizmente sei mais alguma coisa! (Aproxima-se dela e segreda-lhe ao ouvido. Ela solta um grito, recua e ampara a parede) Não te assustes. (Como se arrependesse) É um segredo só meu e que morrerá comigo na sepultura; juro-te pelo que há de mais sagrado nesta vida.
ROSALINA – Ah! Benvindo, quanto sou desditosa! Mais como pudeste saber tudo isso?
BENVINDO – Muito facilmente. Ouve: depois que tu e Amândio tentaram fazer persuadir que as relações que existiam entre ambos tinham terminado, toda a gente se convenceu disso, menos eu, porque sabia que esses afetos não podiam assim acabar tão rapidamente; segui-vos passo a passo, e, a noite, quando o Amândio vinha falar-te ao quintal, eu, ocultando-me por detrás do muro, ouvia tudo o que dizíeis.
ROSALINA – Mas, meu Deus! Que fins tinhas tu com essa constante espionagem?
BENVINDO – Velar pela tua segurança.
ROSALINA – A minha segurança!… E velaste por ela, mesmo naquela terrível noite, Benvindo?
BENVINDO – Não exprobra o meu procedimento naquela ocasião. Tudo foi para o bem da tua felicidade. Não imaginas quantas vezes pensei penetrar naquele recinto e arrancar-te às garras daquele abutre.
ROSALINA – Ah! Benvindo, tem compaixão de mim! … já que és senhor desse segredo, guarda-o e não me faças morrer de vergonha.
BENVINDO – Já to jurei, e por isso nada temas.
ROSALINA – Obrigada, Benvindo, obrigada… és uma alma generosa, e Deus há-de recompensar-te.
Lança-se aos pés dele e tenta abraçar-lhe os joelhos.
BENVINDO (comovido) – Levanta-te, Rosalina. Afastemos de nós as tristezas do passado e pensemos no futuro. Queres aceitar a minha amizade, franca e desinteressada? Queres que te ajude a reconquistar o amor do Amândio?
ROSALINA (incrédula) – Benvindo!
BENVINDO – Admiras-te decerto do oferecimento, não é verdade? Mas eu me explico. Depois de conhecer que te era completamente indiferente e que nunca me poderias amar, a minha única ambição foi ver-te ao menos feliz e unida a esse outro a quem queres tão cegamente.
ROSALINA – Julguei-te sempre bom e generoso, mas nunca como acabas de mostrar-te. Oxalá que os teus esforços sejam coroados de bom êxito. Mas, duvido. A esperança, único sentimento que nunca me abandonou, principia agora a afastar-se do meu coração e a ventura que entrevia neste mundo só poderei tê-la quando a minha alma voar à mansão dos infelizes que sofreram na terra; para mim só resta o sossego que se goza por além do túmulo.
BENVINDO – Não desesperes:
ROSALINA – Ah, Benvindo! Segundo ouço dizer, quase todos os homens assim são. Antes de conseguirem os seus fins e de satisfazerem os seus caprichos, fazem mil protestos e mil juras de amor; depois, porém, esquecem-se de tudo e abandonam nas mãos do acaso a pobre vítima que imolaram aos seus desejos. Além disso fui eu própria que me deixei arrastar para a minha ruína…
BENVINDO – Descansa, Rosalina; Amândio há-de desposar-te!
ROSALINA – Deus te ouça, Benvindo.
BENVINDO – Rosalina, como já está quase a amanhecer, é preferível que ninguém desse conta de nós dois aqui.
ROSALINA – Que desejas pois que faça?
BENVINDO – O seguinte: primeiro, voltarás para tua casa, a fim de que tua avó não saiba da tua saída. Depois, continuarás a escrever a Amândio; se ao fim da terceira carta não obtiveres resposta, participar-mo-ás, para se combinar o que convém fazer. Recomendo-te, que nestas últimas cartas, empregues todas as frases, todas as súplicas para comoveres o seu coração.
ROSALINA – Obedecer-te-ei cegamente.
BENVINDO – E podes fazê-lo, porque o meu único desejo é a tua felicidade. Agora temos de nos ir embora. Adeus.
ROSALINA – Adeus, Benvindo, e que a Providência recompense as bondades do teu coração generoso, já que eu não posso dar-te outro prémio senão a minha eterna gratidão.
Saem e cada qual vai por um lado.
CCXVI CENA
Dias depois Benvindo vai ter com a Rosalina lá em casa.
BENVINDO – Como é?
ROSALINA – Nem um pio.
BENVINDO – Escreveste-lhe já as três cartas que te designei?
ROSALINA – Escrevi.
BENVINDO – Muito bem. Agora escreve-lhe ainda mais uma em que lhe exprobrarás o seu procedimento. Pergunta-lhe os motivos por que não te tem respondido, acrescentando que, na incerteza de ter ou não recebido as tuas cartas, te verás obrigada a mandar essa por mão própria, aproveitando-te para isso dos meus oferecimentos.
ROSALINA – A sério, Benvindo?
BENVINDO – Do coração. Pois, decerto ele há-de estranhar as nossas novas relações e pode por isso fazer um juízo menos justo dos sentimentos que atuam sobre nós. Convence-o, sob qualquer forma, de que a amizade que nos liga hoje é livre de qualquer tenção interesseira ou amorosa. Desta maneira creio que ele há-de dar uma resposta, e por ela avaliaremos quais são as suas tenções futuras e qual o estado do seu coração a teu respeito.
ROSALINA – Mas tu na verdade desejas ser o portador?
BENVINDO – E que há nisso de extraordinário? Faz o que te aconselho e deixa correr o mais por minha conta.
ROSALINA – Continuarei, pois, a obedecer-te.
BENVINDO – Combinado, então.
ROSALINA – Deus te agradece os sacrifícios que fazes por mim. Podes vir amanhã, a partir das oito horas, buscar a carta.
Separaram-se.
CCXVII CENA
Alguém toca a campainha da Porta da senhora Mana Vaz.
MANA VAZ – Quem será?! A esta hora não espero visitas…
NHU CHICO (entra, depois de a Teresa ir abrir a porta. E fala para o Amândio) – Está lá em baixo um homem que pretende falar a vossa excelência.
AMÂNDIO – A mim?! Não disse quem era?
NHU CHICO – Não, meu senhor; perguntou-me se vossa excelência cá estava e disse-me que desejava falar-lhe imediatamente.
AMÂNDIO – Não sei quem seja… no entanto se a Srª Mana Vaz me dê licença…
MANA VAZ – Pois não! Seja quem for mande-o subir.
AMÂNDIO – Diga que suba!
O Criado sai e volta acompanhado do Benvindo, vestido de cavaleiro. Amândio fica visivelmente descontrolado.
AMÂNDIO E MANA VAZ (muito admirados) – Benvindo!!!
AMÂNDIO – Então por cá, meu rapaz? Grande novidade te trouxe aqui!
BENVINDO (entrega-lhe uma carta) – Incumbiram-me de entregar-lhe pessoalmente esta carta, e venho por isso cumprir o mandato.
AMÂNDIO (empalidece ao ler o subscrito. Aproxima-se de uma luz, enquanto abre a carta) – Tem resposta?
BENVINDO – Não sei, Sr. Amândio. Mas suponho que sim.
AMÂNDIO – Então espera um pouco.
Enquanto Amândio lê a carta, Mana Vaz e Teresa aproximam-se do Benvindo e fazem-no várias perguntas sobre a vida em Porto Santiago. Do silencioso solilóquio do Amândio, ouve-se a voz da Rosalina em off.
«Amândio: Compadece-te desta pobre rapariga que, talvez, por infelicidade te amou e, que não quer que tão facilmente lhe apagues do pensamento. Há dois meses que te escrevo consecutivamente uma e mais vezes por semana e ainda não me foi possível obter duas palavras tuas. Não sei se essa falta será devida a doença ou se ao aborrecimento que já te inspiro. Nesta horrível incerteza estive mais de uma vez para deixar esta casa, procurar-te, lançar-me aos teus pés e pedir-te compaixão em nome dessa lealdade e amor que me juraste. Como, porém, avaliei depois os perigos a que me expunha, aproveitei-me do bondoso oferecimento do portador desta e resolvi escrever-te, só para te rogar que me digas a causa do teu silêncio. Deves, decerto, admirar-te da pessoa que escolhi para confidente das nossas relações; posso, porém, jurar-lhe que esse pobre rapaz, que tu detestaste e que nos persuadimos ser nosso inimigo, é, ao contrário, o único ente que se interessa pela nossa felicidade, sendo um amigo fiel e sincero em quem podemos depositar toda a confiança. Mais tarde dar-te-ei explicações mais claras de tudo isto; por enquanto só te peço que o trate como um teu amigo e que podes confiar-lhe tudo sem reserva. Amândio, por quem tu és, por tudo o que mais prezas nesta vida, peço-te que te lembres da tua Rosalina, daquela que sacrificaria por ti a sua própria vida. Minora-me, no entanto, o desalento e reforça-me a esperança de que terminarão, para mim, um dia, todos estes martírios, gozando então junto de ti essa felicidade que me prometeu e que eu anelo em delírio. Amândio, ainda outra vez te rogo, que não te esqueças das tuas promessas; o teu amor é a única esperança que me resta no mundo, e, fugindo ela, Deus sabe o que será de mim. Termino, esperançada em que desta vez não recusarás uma resposta que venha encher de alegria o coração atribulado da tua até a morte, Rosalina.
AMÂNDIO (mal consegue disfarçar a sua inquietação, a carta lhe treme nas mãos. Dirige-se à Mana Vaz) – Vossa excelência dá-me licença? Necessitava responder a esta carta.
MANA VAZ – Pois não, Sr. Amândio? Tenha a bondade de entrar na sala imediata, onde encontrará tudo o que precisa para escrever.
AMÂNDIO – Anda comigo, Benvindo. (Encaminham-se ambos para a sala designada. Amândio senta-se a uma escrivaninha e, antes de tudo, pergunta ao emissário) Não te perguntaram quer era o remetente da carta?
BENVINDO – Não, senhor. E mesmo que me perguntassem não diria, por que a prudência não me autorizaria.
AMÂNDIO – Muito obrigado. (Traça estas palavras numa folha de papel) Rosalina: No sábado, à meia-noite, irei aí falar contigo. A essa hora ouvirás o antigo sinal por que me fazia anunciar e por ele te avisarei da minha chegada. Desejo que esta minha visita seja completamente ignorada. Amândio. (Acaba de escrever, dobra o papel, mete-o num envelope e, entrega-o a Benvindo) Provavelmente só partes amanhã, e por isso espera um pouco que irás dormir a minha casa.
BENVINDO – Agradeço, Sr. Amândio, mas tenho de partir imediatamente; é preciso que os criados da casa não dêem pela minha falta.
AMÂNDIO – Vieste como?
BENVINDO – Apanhei uma boleia e o mesmo deve acontecer no regresso se não me demorar.
AMÂNDIO – Visto isso, não quero tomar-te mais tempo; mas antes de partir diz-me: Como soubeste que eu estava aqui?
BENVINDO – Fui a casa do Sr. Amândio, e lá indicaram-me a da Sr.ª Mana Vaz, dizendo-me que decerto o devia encontrar aqui.
AMÂNDIO – Bem: então parte e recebe os meus agradecimentos pelo serviço que me prestaste.
BENVINDO – Não tem que me agradecer, Sr. Amândio. Estou sempre as suas ordens. (Dirigem-se para a sala onde está Mana Vaz e Teresa) Adeus, minhas senhoras.
MANA VAZ – Então partes já, Benvindo?!
BENVINDO – Sim, minha senhora, não posso demorar-me mais tempo.
MANA VAZ – A estas horas e por estas estradas… fica em nossa casa esta noite e vai pela manhã.
BENVINDO – É-me impossível, Sra. Mana Vaz.
MANA VAZ – Então bebe um copo de vinho antes de te meteres a caminho. (Ela toca uma campainha, aparece Nhu Chico) Leva este moço lá em cima e dá-lhe de beber. (Volta para o Benvindo) Então adeus, Benvindo. Faz visitas a toda a gente de Porto Santiago e diz-lhe que brevemente iremos todos fazer uma longa visita.
Benvindo despede-se e sai.
TERESA – Tiveste alguma má nova, Amândio? Parece que ficaste triste e desassossegado depois da leitura dessa carta…
AMÂNDIO – Não foi nada… um leve incómodo de meu pai, que talvez me force a ir no sábado a casa, se não receber notícias de suas melhoras.
CCXVIII CENA
ROSALINA (de bruços à janela) – Então?
BENVINDO – Tudo correu na medida dos meus desejos. Encontrei-o, falei-lhe, recebeu a carta e respondeu o que aí vai.
Com a mão tremente, Rosalina recebe a carta, abre e lê em silêncio. Termina a leitura, leva o olhar ao céu como que para agradecer a Deus.
BENVINDO – Então, Rosalina, boas notícias?
ROSALINA (entrega-lhe o papel) – Lê.
BENVINDO (também lê em silêncio) – Bem: vejamos agora a que vem ele cá.
ROSALINA – Encontraste-o em casa?
BENVINDO – Não: fui aí, mas disseram-me que não estava lá e poderia encontrá-lo em casa da Sra. Mana Vaz, que era onde ele costumava passar as noites.
ROSALINA – Em casa da Mana Vaz?!
BENVINDO – Sim, efetivamente lá o encontrei.
ROSALINA – Ele não ficou surpreendido quando te viu?
BENVINDO – Como era de prever, a minha aparição pareceu causar-lhe certa estranheza. Mana Vaz e sua filha, essas, fizeram-me muita festa, perguntaram-me pelas pessoas daqui, instaram para que eu passasse a noite em sua casa, oferecimento que o Amândio igualmente me fizera antecipadamente, mas que eu não aceitei. Ao retirar-me, a Sra. Mana Vez recomendou-me que fizesse visitas a todos e que lhes dissesse que brevemente viriam aqui passar algum tempo. (Rosalina fica completamente destroçada) Rosalina, que tens que te aflige?
ROSALINA – Queres saber, Benvindo? Assalta-me um triste pressentimento: Amândio jamais me desposará; ia jurá-lo, se tanto fosse preciso.
BENVINDO – Mas que motivos tens para assim pensares?
ROSALINA – Fala-me com franqueza: Que pensas tu dessas visitas continuadas que Amândio faz a casa da Mana Vaz, como acabaste de dizer?
BENVINDO – Nada absolutamente.
ROSALINA – E não crês que o único motivo que o leva todas as noites a casa da Mana Vaz seja a Teresa?
BENVINDO – Por ora não posso crer; mas, como ele vem falar-te no Sábado, melhor poderás saber isso; por enquanto, nada de juízos temerários. Agora deixa-me ir, depois veremos.
ROSALINA – Obrigada, Benvindo. Não me canso de implorar ao Criador que te pague.
Comentários