XXIV CENA
Na Esquadra da Polícia
XIA – Chefe, venho deixá-lo saber, que, Achada Fátima está transformado num autêntico inferno. Num verdadeiro barril de pólvora, espicaçando perigo eminente. O valor da ética e do decoro, simplesmente vem sendo ignorado.
CHEFE – Como, D. Xia? O que lhe fizeram? Faltaram-lhe ao respeito?
XIA – Sistematicamente, Chefe. E não esperem por mais tempo, por amor de Deus, para tomarem medidas com Paulito e suas conjadas que estão a fazer daquele lugar, mesmo à beira da igreja de Nhu Santiago Maior e de Nossa Senhora de Fátima, lugar de corrida com pixinguinhas, de despautério e de todo o tipo de descompostura.
CHEFE – Paulito?!
XIA – Todos os dias jogam batota, fumam droga, bebem grogue e provocam os mais descabidos desacatos. Triste, Chefe: é ouvir aqueles palavrões saírem das bocas dos que lá frequentam.
CHEFE – Paulito marido da Bia, Beba e Alcinda?
XIA – Exatamente. Em casa dele e da Bia. Até Danilson e Punoi, aqueles dois pirralhos que não valem nada, filhos dele e da Bia, um deles não deve ter mais do que 6 ou 7 anos, o outro não deve passar ainda dos 3, já aprenderam a jogar e andam com baralho nos bolsos e ensinam os meninos da roda a jogar.
CHEFE (em tom de gozo) – Uma criança com 3 anos já é Professor de batota?!
XIA – Dizem que nas hortas em Lagoa Gil, Chã da Silva, Rubom D'Almaça, Jaracunda, Covoada, Chão Grande e Covãozinho, não há um dia que não se verifica roubo. Que arrancam mandioca, galam batata e cortam cacho de banana para irem vender e jogar batota.
CHEFE (sorri) – Nós temos informações de que eles jogam, sim, mas em sua casa, em Cutelinho!
XIA – Em minha casa?! Mas quem foi que vos disse isso?! Deus do céu! Por isso é que se diz que a corda rebenta sempre na parte mais fraca! Eu sou mulher, viúva ainda por cima… tudo cai sobre mim. Mas Deus é grande, mundo é largo, alto é monte Pico d’Antónia. Tenho fé na Imaculada Conceição, em Nhu Santiago Cavaleiro e Virgem Maria parida, que lhes hão-de dar aquilo que merecem.
Ela soluça e limpa as lágrimas com a ponta do pano que traz amarrado à cintura.
CHEFE – Quem é que lá costuma ir jogar?
XIA – Aqueles vagabundos que não trabalham com suas mãos, mas que só vestem roupas de marca, calçam sapatilhas Adidas, Nike ou Reebok, melhor do que o Chefe que trabalha dia e noite. Dinheiro nunca lhes falta.
CHEFE – Diga-nos os nomes. Quem são eles?
XIA – Nhu Seis, Carlos de Simplício, Djucruco de Nhu Gregório, Toti Nha Joana, Patrick Nhu Sabino, Bia… mulher de Paulito, Danilson e Punoi seus filhos, Crispim de Nha Tota e, dizem que até Duco, que chegou anteontem repatriado de Portugal, anda acompanhado deles.
CHEFE – Todos esses nomes constam da lista que aqui temos, como frequentadores da sua casa.
XIA (faz-se surpreendida) – Ave-maria, cheia de graça. Senhor!… Estou já a ficar sem voz. Se o Chefe não acredite, mande um Polícia agora mesmo ir comigo e verá se não os apanha em flagrante a jogar, fumar droga e numa descarada pouca-vergonha com pixinguinhas.
CHEFE – Ok. D. Xia pode ir, vou estudar como desencadear diligências. Se viermos a precisar de si mandamos chamá-la.
Xia sai, Chefe pega no telefone.
XXV CENA
Duco bate à porta e Palmira vai abrir, revoltada.
PALMIRA – Pra quê é que está a bater na minha porta? O que é que você quer? O que veio também buscar?
DUCO – É a senhora a D. Palmira, mulher do senhor dos Santos?
PALMIRA (atira-se a ele) – Outra vez?! Mais um ainda?! Oh, Satanás. Espere que já lhe vou ensinar como enganar alguém. Estão conluiados?!
DUCO (Duco foge, defendendo a cabeça com a mão atrás da nuca) – Nha Palmira, eu vim só entregar-lhe uma carta do seu marido!
Duco mostra-lhe a carta, ela arrebata-a, rasga e atira-a ao chão. Vai-lhe dando murros e empurra-o pelas costas.
PALMIRA – Bandido, pirata, aldrabão, gatuno, ratoneiro, amaldiçoado. (Duco desaparece) Vá e volte outra vez! Há-de encontrar-me à sua espera! Quase 5 mil escudos o seu colega levou-me… ainda querem mais. Belzebu, Satanás!
Rezingona, Palmira entra em casa e fecha a porta.
XXVI CENA
Duco encontra Nhu Seis no mesmo bar a beber uma cerveja.
NHU SEIS – Não tive tempo ainda para ir contigo ao Mosquito!
DUCO – Já fui.
NHU SEIS – Foste?! Então ainda bem.
DUCO – Fui… mas passei uma afronta! Aquela mulher é malcriada! Atirou-se a mim para me bater!…
NHU SEIS (finge-se surpreendido) – O quê?! E por que não me esperaste? Para a semana já teria tempo de ir contigo.
DUCO – A mulher pensou que eu era bandido, que lhe queria enganar, atirou-se a mim, furiosa. Mostrei-lhe a carta, ela tomou, rasgou e atirou-a ao chão.
NHU SEIS – Ela pensou que tu eras bandido?
DUCO – Acho que sim.
NHU SEIS – Ahnnn! Ela deve ter razão. Sabes porquê?
DUCO – Razão para me agredir?
NHU SEIS – Cabo Verde estragou nos últimos tempos. Os Thugs agora é que estão a mandar. Matam, roubam, fazem tudo o que não devem, vão ao tribunal e os juízes os soltam logo de seguida porque têm medo deles.
DUCO – Thug é o quê?
NHU SEIS – São um monte de bandidos que vieram ultimamente repatriados.
DUCO – Que vieram repatriados?! Então eu sou Thug?
NHU SEIS – Tu não. Tu vieste de Lisboa. (Param um pouco) E como te safaste?
DUCO – Pus-me a correr antes que a vizinhança se apercebesse. Podiam juntar-se e agredir-me sem dó nem piedade. Felizmente, como estava muito calor, levei umas calças curtas que me davam até aos joelhos, bem largas, uma t-shirt também larga e sapatilhas Nike nos pés. E consegui correr sem problema.
NHU SEIS – Ela confundiu-te, rapaz! Tu estavas vestido como os Thugs se vestem. Tinhas as calças quase a caírem-te pelo rabo?
DUCO – Sim. Até para eu correr tive que segurá-las com as mãos
NHU SEIS – Por isso é que ela te agrediu. Ela confundiu-te com Thug. Eu já não vou lá há algum tempo, mas sempre que lá ia era bem recebido.
DUCO – Posso pedir uma cervejinha?
NHUU SEIS – Pede rápido porque já vou sair.
DUCO (levanta a mão ao Garçon) – Traz-me uma Strela.
NHU SEIS – Não queres ir comigo à casa do Paulito? Os rapazes devem estar lá a jogar.
DUCO – Pode ser. Ainda só fui lá uma vez.
NHU SEIS – Então acaba de beber. (Levanta a mão ao Garçon) Uma também para mim. Vou fazer-te companhia. (Garçon traz duas cervejas) Traga a conta, se faz favor.
Acabam de beber, Nhu Seis paga a conta e saem.
XXVII CENA
No gabinete do Chefe.
CHEFE – Dicarião, vai tu e o condutor Girino fazer uma diligência em Achada Fátima. Vão fazer uma rusga à casa do Paulito e da Bia. (Entrega-lhes uma lista) Estas pessoas cujos nomes constam da lista, se as encontrarem lá, tragam-nas todas. E se refilarem… pau nelas. Tragam todos: homem, mulher, criança… velhos e novos.
Os agentes Dicarião e Girino acertam a farda, colocam bastões e saem.
XXVIII CENA
Em casa do Paulito e da Bia, a rapaziada joga e fuma droga. Duco está sentado, bebendo um cálice de aguardente. Nhu Seis vai à rua fazer xixi, vê o carro de Polícia estacionar e foge. Os Polícias arrombam a porta, entram e prendem-nos todos.
XXIX CENA
Danilson sai da escola e, a caminho de casa um colega o insulta.
COLEGA – Drogado! Alcoólico! Batoteiro! Bandido!
DANILSON – Ya, man! Fixe, pah.
COLEGA – Sem vergonha! Não sei quando é que tomas juízo!
DANILSON – Ya, brother. Porque é que não pedes a tua mãe para tomar juízo… ya?
COLEGA (ameaçador) – Com a minha mãe não admito que brinques!
DANILSON – Ya, man. Assim já não está fixe, pah. Tu ofendeste-me a mim… não queres que te ofenda naquela mulher que te pariu?
COLEGA – Olha que a minha mãe não é tua colega. Quando fumas a tua porcaria da droga, procura com quem brincar. Ouviste?
DANILSON – Não discuto contigo, man. Estás a entender? Tu és um burro, pah; tu és incompetente, ignorante… tu és um intelectual pah.
COLEGA – Podes dizer o que quiseres de mim. Mas com a minha mãe não te atrevas.
DANILSON – Ya. E se me atrevo?
COLEGA – Experimenta então falar da minha mãe.
Danilson goza. O Colega avança, ele empunha de uma navalha e o Colega recua.
XXX CENA
Danilson chega da escola, encontra a porta partida e a casa toda revirada. Chora.
NHA DOMINGAS – Não chores. Os teus pais vão voltar.
DANILSON – Aonde é que eles foram? Quem partiu a nossa porta?
NHA DOMINGAS – Foram uns Polícias que lhes vieram buscar, mas eles não vão demorar.
DANILSON – Polícias?! Para que é que os Polícias precisam deles? Por que é que lhes vieram buscar? Eles não fizeram nada aos Polícias! (Bia chega a chorar) Onde está o papá? Porque é que estás a chorar? (Bia afaga-lhe o cabelo) Deixaste papá aonde? Porque é que ele não veio contigo?
NHA DOMINGAS – Paulito ficou, Bia? (Bia assenta com a cabeça) E por que é que ele não veio?
BIA – Levaram-nos ao Tribunal, ele e os rapazes foram para a Cadeia Civil.
NHA DOMINGAS – Todos?
BIA – Todos! O que mais me fez pena foi do Duco. Ele nem estava a jogar!
NHA DOMINGAS – Coitado! Sabes… ele veio repatriado de Portugal… veio com má fama! Não arranjaram advogados?
BIA – Os advogados cobram muito caro… eles não têm dinheiro. Deram-lhes um advogado pago pelo Estado, mas ele ainda não abriu a sua boca.
NHA DOMINGAS – Se fosse um grande traficante de droga ele fazia tudo para o tirar da Cadeia.
DANILSON – Porque é que os Polícias vos prenderam? Onde está o Punoi?
BIA – É verdade, Nha Domingas; o Punoi?!
NHA DOMINGAS – Ele está deitado lá em minha casa. Agora está a dormir.
BIA – Chorou muito?
NHA DOMINGAS – Começou a chorar, mas atei-lhe às costas, fiz-lhe o sono e pus-lhe na cana.
BIA – Sabem quem foi que nos denunciou à Polícia?!…
NHA DOMINGAS – Quem?! Vocês sabem quem foi?
BIA – A Xia. Foi ela que nos chibou, que foi dizer que vendemos droga.
NHA DOMINGAS – Mas não vos encontraram com droga, pois não? (Bia assenta com a cabeça) Jesus! Muita?
BIA – Trinta e um charros.
DANILSON – Mamã, foi a Xia que pôs o papá na Cadeia?
NHA DOMINGAS – Danilson, o teu pai vai sair.
Danilson sai à rua e vê Xia a passar. Com uma navalha empunhada, dirige-se à ela e descompõe-na. E jura matá-la quando for homem. É acalmado, apanha a sua sacola, vai ao quintal, tira o baralho e rasga, tira uma beata de um charro do bolso e esmaga, parte a garrafa de grogue que trazia e volta triste para dentro.
XXXI CENA
Todos o Reclusos de pé em frente ao Diretor e Guardas Prisionais.
DIRETOR – Senhores reclusos, fiquem sabendo que a partir de que entrarem aqui dentro, a vossa missão é obedecer e cumprir ordens. Aqui não se fala de direitos, a não ser direitos de obedecer. Nenhum recluso pode reclamar coisa que seja. Reclamar aqui, também é coisa proibida. A vossa boca deve-se abrir apenas para mastigar a comida quando vos dermos, ou para dizer sim senhor quando vos pedirmos uma confirmação sobre o nosso bom desempenho. Qualquer má-criação que ameacem fazer serão punidos severamente, na cela disciplinar, lugar que os Reclusos denominam por Segredo. Sabem porquê lhe puseram esse nome? (Não respondem) Porque durante os três meses que lá irão ficar, não vêm a luz com os vossos olhos. Apenas sentirão patas de baratas pisarem o vosso corpo e vos penetrarem na boca quando comem. A comida será o mínimo para não morrerem rapidamente. E como sou humano e um homem do bem, nos dias das visitas, dou-vos uma refeição remediada: arroz de atum ao almoço e feijoada com carne salgada ao jantar. Ao pequeno-almoço recebem um pão com manteiga e uma caneca de café com leite… claro, quando houver leite. As visitas são às Quintas-feiras e aos Domingos, das dez horas ao meio dia e das três às cinco da tarde. Mas, têm que o merecer. Todas as correspondências dos que gostam de mandar bocas têm de passar primeiro pelos Guardas, que as abrem e as lêem, antes de lhas entregarem ou de lhas enviarem para familiares. Agora vão receber prato, colher e uma caneca para o café. E avisem aos familiares que vos tragam garrafões para guardarem água.
XXXII CENA
DIRETORA (fala com o Professor de Danilson) – Tudo indica que Danilson já não vem mais à escola.
PROFESSOR – Há três dias que não tem aparecido.
DIRETORA – De qualquer maneira, pelo que fez, ele não podia continuar. Se vier a aparecer, trá-lo aqui, dou-lhe doze palmatoadas e o expulso da Escola.
Danilson bate à porta e o Professor vai abrir.
PROFESSOR – Olha aí o açougueirinho!
Danilson entra e cumprimenta.
DIRETORA – Eh! Não vens tu cortar-nos à navalhada também!
DANILSON (põe-se de joelhos e pede desculpa, chorando) – Sei que não vão acreditar em mim. Por isso podem dar-me castigo que quiserem. Mas estou arrependido e juro que não volto a repetir as coisas que fiz e que tenho feito.
DIRETORA – O que te fez arrepender de repente? Ou pensas que nos engana?
DANILSON – Eu conto-vos.
DIRETORA – Já não vale a pena. O processo já está feito para a tua expulsão da Escola.
DANILSON – Senhora Diretora, pode dar-me de palmatória, pode dar-me com vara de marmeleiro. Mas por favor não me expulsa da Escola. Juro-lhe que vou estudar, que vou passar a comportar-me bem e que serei um homem que, tenho a certeza, que a senhora Diretora gostaria que eu seja.
PROFESSOR (condoído, passa-lhe a mão pela cabeça) – Coitadinho!
DANILSON – Eu andava perdido… a minha família também.
PROFESSOR – O que se passa, então, contigo… e com a tua família?
DANILSON (soluçando-se) – O meu pai foi preso. Ele está na Cadeia…
DIRETORA – Porquê? O que é que ele fez?
DANILSON – Eu já estava quase a aprender a fumar, a beber e jogar batota, porque via os meus pais e os amigos deles, lá em casa a fazerem.
PROFESSOR – Coitadinho!
DIRETORA – Os teus pais? A fumar droga, beber grogue e jogar batota?
DANILSON – Eles e os amigos deles. Eu e o meu irmão mais novo assistíamos. E era eu quem lhes entregava charros e media grogue quando compravam.
PROFESSOR – Que irresponsabilidade!
DANILSON – Quero pedir desculpa ao colega que corri atrás com navalha… quero pedir também desculpa ao Juvêncio, Tonecas e Pelixo por lhes ter ensinado a jogar, fumar e beber.
Chora magoado. A Diretora e o Professor abraçam-no com muita dor.
DIRETORA – Vais continuar aqui na Escola. A tua confissão nos orgulhou e o teu arrependimento vale-te recompensas. (Para o Professor) A partir de agora ele vai ter todo o apoio daqui da Escola: livros, cadernos, esferográficas, senha para as refeições e subsídio para o transporte. Vou informar à Delegação e a Direção da Escola assumirá a responsabilidade. O Sr. Professor vai dizer ao Pitata que fui eu que dei ordem para todos os meses, enquanto Danilson estiver matriculado nesta Escola e o pai dele continuar preso, para lhe dar arroz, leite em pó, bolacha, farinha e açúcar da cantina para ele levar a mãe.
DANILSON – Muito obrigado.
Ele chora e tentam consolá-lo.
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