Louca verdade e outros (in)verosímeis desatinos, paradoxos e incongruências do quotidiano* - Terceira Parte
Cultura

Louca verdade e outros (in)verosímeis desatinos, paradoxos e incongruências do quotidiano* - Terceira Parte

E eis-me agora num momento de lucidez, entre o meu cérebro e o meu corpo, trucidado entre ambos. Neste momento, poderia passar impreterível e indiferentemente por louco como qualquer outro transeunte, habitante radicado da cidade ou em trânsito passageiro pela urbe majestosamente sobranceira ao mar. E por maioria de razão poderia chamar louco a qualquer tribuno de ocasião que, vociferante, se dispusesse a perorar e a fazer ousadas proclamações sobre verdades super-evidentes, ou, de outro modo, excessivamente evidenciadas por demasiadamente, ainda que em modo cauteloso, recolhidas nas tenebras do silêncio temeroso. Como, aliás, reza o axioma: a loucura é a razão das minorias ostracizadas, a razão é a loucura das grandes maiorias conformadas em multidões resignadas com o seu destino e com os seus mandarins. Eis-me, pois, guilhotinado num momento de lucidez, isto é, situado algures entre a mente e a carne, entre mim e mim.

"A arte fica, o comentário petrifica" - Ruy Belo

À memória e em homenagem de Caló de Dona Tina, malogrado e estimado amigo e camarada da brincadeireira infância assomadense e das expectantes juventude e maturidade praienses

TERCEIRA PARTE

DOS CHAMADOS MELHORES, MAIS HUMILDES E ANÓNIMOS E, ADEMAIS, MAIS INDIGENTES  FILHOS DO POVO, DOS AUTO-PROCLAMADOS MELHORES, POLITICAMENTE MAIS INTELIGENTES E SOCIALMENTE MAIS COMPROMETIDOS FILHOS DO POVO E DOS AUTO-INTITULADOS MELHORES, MAIS DEMOCRATAS, MAIS COMPETENTES E MAIS RICOS FILHOS DA NOSSA TERRA**

1. Depois de devida e produtivamente aproveitado o controvertido e oportuno ensejo para a indispensável exposição de pontos de vista plurais e necessariamente divergentes sobre a natureza mitigadamente autoritária ou abertamente totalitária das feições consensualmente tidas por ditatoriais do regime de partido único socializante implantado no Cabo Verde pós-colonial (na minha assumidamente controversa  opinião, mais de facto do que de  jure),  fecha-se assim o longo parêntese para tempestivamente retomar os fios da meada discursiva do Louco Predilecto da Cidade, todos, aliás, da sua inteira iniciativa e completa responsabilidade.

Antecipando renhidas dissenções sociais e divergências político-ideológicas, reitera empolgado a mesma carismática e fantasmática figura da cidade imponentemente debruçada sobre o mar que se pode desde já perspectivar que o acima e ao de leve aludido vindouro discurso político-ideológico dos mandatários dos futuros oligarcas, hierarcas, cleptocratas e demais vendilhões da terra, do povo e da pátria se comprovará certamente como emanando de representantes de uma classe social dominante de cariz claramente neo-colonial, mas também assumidamente privilegiada, e no sentido mais próprio do termo, não só no que respeita ao acesso às benesses simbólicas e materiais inerentes ao exercício do poder político-ideológico, como também ocorre agora com a nomenclatura política e burocrático-administrativa do regime de partido único socializante, mas também no que se refere aos irrestritos e exclusivos uso, gozo, usufruto, posse e propriedade do poder económico e dos bens materiais característicos dos regimes neo-coloniais implantados desde a eclosão nos anos sessenta do século XX dos chamados sóis das independências africanas mediante a desbragada e/ou a comedida corrupção de uma importante fracção das elites funcionárias, burocráticas, empresariais (comerciais, industriais e fundiárias), e, posteriormente, no contexto da irreversível queda do chamado Império Soviético e  do dele dependente Bloco Socialista do Leste Europeu, da constatada falência dos modelos socializantes de desenvolvimento e da total desacreditação dos regimes autoritários ditos democrático-revolucionários, depois reforçada por mor de uma suposta acumulação primitiva do capital, assumida ou manhosamente cleptocrata e em modos ostensivamente parasitários e para efeitos arrogantemente ostentatórios.

Sublinhe-se neste contexto a detecção de um comum traço nas tendências de desenvolvimento classista entre todos os considerados melhores filhos do povo, tanto dos integrantes das camadas sociais laboriosas, mesmo se maciçamente desempregadas e subempregadas e, por isso mesmo,  integrantes do povo simples, humilde, indigente e anónimo, como também daqueles alavancados e alcantilados à nomenclatura política dirigente do partido único, da sociedade e do Estado, qual seja o seu propugnado suicídio de classe, nos seguintes termos e com as eventualmente singulares vicissitudes adiante indicadas e dissecadas:

I.  Nos primeiros, isto é, nos trabalhadores braçais integrantes das denominadas camadas sociais laboriosas e, por isso e concomitantemente, do povo simples, humilde e anónimo e das suas diferentes franjas indigentes, pobres e remediadas, a congénita impossibilidade de superar a miséria e a pobreza  relativa e os limiares da sua condição remediada que caracterizam a sua intrínseca situação de classe por óbvia desistência, falta de ambição ou inultrapassáveis e naturalizados constrangimentos sociais. Neste preciso e concreto contexto, deve-se todavia sublinhar e complementar que, tal como já o eram no período colonial pós-escravocrata em Cabo Verde, a emigração livre para certos países americanos, europeus, africanos e asiáticos, bem como a  disseminação, a democratização e a massificação do ensino continuam a constituir-se como (e usando uma terminologia tipicamente claridosa, todavia despida da sua óbvia conotação assimilacionista colonial)  os mais importantes factores de ascensão social, económica e cultural e da aristocratização intelectual dos filhos das ilhas no período pós-colonial caboverdiano.

II.  Nos segundos, em razão da sua reiterada e declarada pretensão voluntarista de suicídio de classe, nos termos teorizados, queridos e consignados por Amílcar Cabral na sua por demais célebre obra maior intitulada “A Arma da Teoria” e consubstanciada na sua proclamada e procurada identificação com a defesa dos interesses das classes trabalhadoras, na pele e no espírito das quais, consumado o seu suicídio de classe pequeno-burguesa de serviços naturalmente propensa ao emburguesamento, pretendem efectivamente ressuscitar-se. Foram considerados como fortes indícios dessa propalada pretensão de suicídio de classe, pelo menos na aparência, a sua denodada e missionária dedicação à causa pública nacional e o modo austero (dir-se-ia quase franciscano em respeito pela pobreza também franciscana do país) de condução da sua vida pública e privada, ainda que, em resultado e em conjugação com o inamovível exercício dos altos cargos nos poderes soberanos do Estado por parte dos mesmos, e do pleno e ininterrupto gozo vitalício de mordomias, benesses e bens raros (tais como viaturas, moradias, etc) resultante desse mesmo exercício, somente acessíveis mediante a pertença à nomenclatura política e burocrático-administrativa-empresarial dominante, isto é, mediante a ocupação de altas funções no partido único, no governo, na administração pública, no poder judiciário, nos institutos, nas empresas, nas embaixadas e missões diplomáticas e em outras instituições públicas, bem como nas organizações de massas satélites, enquanto funcionários - trabalhadores (supostamente) revolucionários.

Exceptuam-se contudo desse quadro geral e relativamente estável os casos de inusitada e/ou imprudente queda pública em desgraça política, a mais das vezes em razão de expulsões/auto-exclusões/demissões/exonerações/ ostracizações provocadas por lutas de facções e clãs político-ideológicos com correlativas frustrações de expectativas de ascensão político-partidária e enredamentos em facciosismos e fraccionismos político-partidários. Saliente-se que no Cabo Verde da vigência do regime autoritário de partido único socializante a queda  voluntária ou induzida em desgraça política não teve todavia outras consequências e repercussões tangíveis que não fossem a eliminação e a neutralização políticas com os correlativos exílio voluntário no estrangeiro, exílio cívico interno e silenciamento político-ideológico das vozes dissidentes e/ou da oposição partidária interna, a vigilância, o controle e o assédio pelas forças da polícia política isto é, pelos  serviços da segurança do Estado integrados nas chamadas FSOP (Forças de Segurança e  Ordem Pública), mantendo-se o Cabo Verde da democracia nacional-revolucionária (ou, também se se preferir, da ditadura democrático-nacional-revolucionária) longe e distante de outras consequências mais funestas, mortíferas e trágicas, ocorridas em vários períodos da dominação colonial, com destaque para o período colonial-fascista, bem como em regimes político-ideologicamente próximos ou sistemicamente aparentados e/ou afins, como a prisão política de longa duração, as execuções sumárias, o internamento em presídios e/ou hospitais psiquiátricos, a deportação, o degredo e o desterro políticos, salvo em conhecidos casos de sedição, necessariamente violenta, contra a ordem político-constitucional vigente (também justificados pelos seus protagonistas como "de desobediência civil e resistência contra a ditadura de um regime revolucionário de partido único"), como ocorrido nos trágicos e lamentáveis eventos de 1977 na ilha de S. Vicente; nos também trágicos e, em certa medida, lamentáveis tumultos de 31 de Agosto de 1981 na ilha de Santo Antão e as claramente condenáveis  consequências no plano da grave e sistemática violação dos direitos dos acusados e arguidos dos processos-crime então instaurados; em outras detenções políticas mais ou menos esporádicas, bastas vezes arbitrárias, ocorridas na cidade da Praia, na ilha Brava e na vila da Assomada, para além de outras múltiplas repressões de manifestações não autorizadas.

O curioso é que, sendo certo que, apesar de consagrados no Programa Maior do antigo partido único socializante da Guiné e de Cabo Verde para valer como referência interpretativa obrigatória da LOPE (Lei da Organização Política do Estado) e das leis ordinárias pós-coloniais, e critério de validade e de continuação da vigência das leis ordinárias oriundas do tempo colonial português, bem como na Constituição Política de Setembro de 1980, o direito de associação e a liberdade de imprensa só vieram a ser regulamentados em 1987, sendo que os direitos de reunião, de manifestação, de greve (aliás, consagrado no Programa Maior do supra-referenciado partido único socializante da Guiné e de Cabo Verde, mas ausente da Constituição Política de Setembro de 1980/Fevereiro de 1981), e de associação e oposição democráticas só viriam a ser regulamentadas em lei ordinária, já depois de declarada a Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 e no quadro da sequente adopção do pacote legislativo da transição política para a democracia multipartidária de 1990, sendo também certo que diploma legal pós-colonial caboverdiano procedeu à proibição expressa das associações e dos partidos políticos (como ocorria com a lei colonial-fascista contra as associações secretas e contra as associações ditas comunistas), limitando-se a consagração de jure do partido único socializante à atribuição ao mesmo do monopólio político na apresentação de candidatos às eleições legislativas, cujas listas podiam todavia ser reconfiguradas nas discussões que tinham lugar antes da sua fixação definitiva pelo partido único socializante que detinha  o monopólio da sua apresentação. Foi, aliás, o que ocorreu nas eleições legislativas de 1985, em que o advogado Carlos Veiga, então militante de base do sector urbano da Praia do PAICV foi agregado à lista de candidatos a deputados da ANP por proposta de uma assembleia de populares, em detrimento do economista bravense Carlos Burgo, não se tendo todavia conseguido introduzir o nome do jurista Eurico Correia Monteiro na mesma lista de candidatos a deputados apesar de também proposto por uma assembleia de populares.

Tenha-se outrossim em conta neste preciso e concreto contexto que são inúmeros os países ditos revolucionários formalmente constituídos em sistemas pluripartidários, designadamente alguns países do Leste Europeu denominados de socialismo real, e alguns países de orientação socialista em África e no Médio Oriente, mesmo quando as respectivas Constituições Políticas consagravam os respectivos partidos dominantes e/ou hegemónicos como forças políticas dirigentes da sociedade e do Estado  (como, aliás, ocorre também na LOPE e na Constituição caboverdiana de 1980/1981) e circunscreviam o papel dos demais partidos a meros satélites políticos do partido dominante/hegemónico para assim restringir as suas funções no limitado  quadro de fictícios Blocos e Frentes multipartidários com direito a quotas limitadas e predeterminadas de mandatos parlamentares e cargos governamentais, as mais das vezes sem direito de exercerem de modo efectivo a oposição democrática.


3. Retomando a matéria do controvertido e famigerado suicídio de classe brilhantemente teorizado por Amílcar Cabral, diga-se e sublinhe-se que, nos termos do discurso político dominante nos tempos da democracia nacional revolucionária, a selecção para as hostes da acima referida nomenclatura político-partidária dirigente, amiúde chamada, e posteriormente desacreditada, desqualificada e vituperada como integrante dos melhores filhos do povo, seria perfeitamente compatível com a existência de outros considerados melhores filhos do povo, se bem que de outra estirpe, de mais nítida feição económico-empresarial, designadamente daqueles pequenos burgueses da classe média industrial, comercial e fundiária que, dando legitimamente azo ao seu espírito empreendedor, podiam dar livre curso às suas naturais tendências para o emburguesamento, se bem que negando-se, ou, melhor, compelidos/forçados/coagidos/obrigados, por mor do enveredamento da governação do país por uma via socializante de desenvolvimento, a negarem-se em transmutar-se em integrantes das fracções da burguesia nativa burocrática e compradora no quadro cleptocrata da dominação neo-colonial e da sua subordinação ao capital financeiro transnacional, deste modo logrando identificar-se com os genuínos interesses de uma nação caboverdiana em permanente demanda e consolidação da sua independência política e económica, enquanto integrantes de uma burguesia empreendedora genuinamente nacional e não somente nativa/autóctone/filha da terra do ponto de vista identitário e cultural, mesmo se no condicionado quadro de uma forte dependência do país em relação à ajuda pública ao desenvolvimento e ao investimento externo.

4. Depois de um breve intervalo para retomar o fôlego, finalmente concluiu o Louco Predilecto da Cidade a sua longa explanação teórica, prosseguindo, ainda assaz sarcástico, na dissecação das maleitas da cidade e do país, sustendo-se  doravante na mais visível e famigerada, todavia também na mais envolta em tabús,  preconceitos e mistérios, qual seja  na quarta grande maleita da sociedade caboverdiana pós-colonial, isto é:  
iv. A recusa das empregadas domésticas vindas das as-ilhas (denominação por que os santiaguenses designam todas as outras ilhas de Cabo Verde que não seja a sua ilha-mãe de Santiago)  em falar o latim, ou dito de outro modo, em pronunciar os vocábulos e outros ademanes linguísticos basilectais, mesolectais e acrolectais  e outros fulgores humorísticos de Nho Puxim, consabidamente desde há muito auto-proclamado seguidor, discípulo e apóstolo de Nho Naxo, o conhecido e celebrado profeta  badio da grande ilha-matriz de Santiago  e incansável peregrino e pregador das ruelas, vielas, praças e pracetas da cidade-repartição, agnome por que, desde a irreversível decadência e a queda da cidade da Ribeira Grande de Santiago doravante transmutada em Cidade Velha,  tem sido conhecida a cidade-capital da capitania-prefeitura-província ultramarina-colónia-de novo província ultramarina- Estado semi-autónomo, invariavelmente possessão portuguesa por mais de meio-milénio de anos, depois igualmente cidade-capital do país africano independente e soberano, na indisfarçável vituperação e nos insuperáveis despeito e menosprezo da imaginação desgraçadamente ingrata e doentiamente bairrista de alguns caboverdianos de outras ilhas, bastas vezes migrantes recém-arribados à grande ilha, por demais (re)conhecida, já duraram tempos, como “má mãe” e “boa madrasta”.

Ainda assim,  o Louco Predilecto da Cidade persistia, peremptório e febril, em interpelar todas as palavras gastas, mesmo se paradoxalmente germinando nas mentes e nos passos enraivecidos, aparentemente indiferentes, de todos, incluindo nos gestos impostores e nos convictos pensamentos dos transeuntes da cidade. É sabido que há muito as palavras estão gastas por demasiado repetidas na nomeação de realidades sobre-evidentes.

5. Eis-me agora num momento de lucidez, colocado entre o meu cérebro e o meu corpo, trucidado entre ambos. Neste momento, poderia passar impreterível e indiferentemente por louco como qualquer outro transeunte, habitante radicado da cidade ou em trânsito passageiro pela urbe majestosamente sobranceira ao mar. E por maioria de razão poderia chamar louco a qualquer tribuno de ocasião que, vociferante, se dispusesse a perorar e a fazer ousadas proclamações sobre verdades super-evidentes, ou, de outro modo, excessivamente evidenciadas por demasiadamente, ainda que em modo cauteloso, recolhidas nas tenebras do silêncio temeroso.

Como, aliás, reza o axioma: a loucura é a razão das minorias ostracizadas, a razão é a loucura das grandes maiorias conformadas em multidões resignadas com o seu destino e com os seus mandarins.

Eis-me, pois, guilhotinado num momento de lucidez, isto é, situado algures entre a mente e a carne, entre mim e mim.


Praia, Janeiro de 1989
Queluz, Monte-Abraão, Julho/Setembro/Dezembro de 2022/Março de 2023

*Prosopoema iniciado por Alma Dofer Catarino, mas depois mental e mortalmente contaminado, e de modo assaz atroz e fulminante, por incursões discursivas de Dionísio de Deus y Fonteana, Tuna Furtado Lopes, Erasmo Cabral de Almada e Nzé de Sant´y Ago, envergando ambos os pseudónimos literários e ambos os pseudo-heterónimos poéticos   as vestes esquizofrénicas - incluindo as póstumas - do Louco Predilecto da Cidade

**Ou do discreto mas muito convicto empolgamento do Louco Predilecto da Cidade com as vindouras mudanças políticas para a plena legitimação democrática da vontade e da soberania populares e, assim, para a total reconfiguração do  panorama republicano  do exercício do  poder político-institucional caboverdiano, e a sua muita reticente postura no respeitante à emergente   atmosfera económico-social e à nascente ambiência político-ideológica e  cultural, assaz sufocantes e propícias à eclosão e à disseminação da corrupção e da cleptocracia e à célere constituição de uma nova classe de melhores e mais ricos filhos do povo...

 

 

 

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