CIDADE DA PRAIA DE SANTA MARIA  DA VITÓRIA E DA ESPERANÇA (POEMA DE NZÉ DE SANT´ Y ÁGU)
Cultura

CIDADE DA PRAIA DE SANTA MARIA DA VITÓRIA E DA ESPERANÇA (POEMA DE NZÉ DE SANT´ Y ÁGU)

Lembras-te, Neneu

da praia grande da Gamboa

e do seu velho cais de São Januário

e da sua nova e vistosa ponte-cais

defronte do imponente edifício das alfândegas

e da sua baía de águas reluzentes

coalhada de lanchas de pesca

lotada de intermitentes vapores

e de veleiros carregados

do milho branco de Angola

das mercearias da Metrópole

dos víveres ensacados da SAGA

da mancarra da Guiné do sal do Maio

dos contratados da SOEMI

e das suas trouxas de miséria

ajuntadas às barrigas inchadas

da prole esquelética numerosa

e dos trinta dinheiros da traição

de Fernando de Sousa & Companhia

e de outros angariadores de braços servis

para as roças das ilhas do Golfo da Guiné?

Lembras-te, Xan

do Mercado Municipal da Praia

e do seu pelourinho semicoberto

e dos diários intercâmbios

entre os escudos e as verduras

entre as nhas as donas e as senhoras

entre o português e o crioulo

entre as Beiras e as ribeiras

na azáfama da rabidância

na desenvoltura do criouloguês

nas peripécias do portuguiolo

e de outros sumários guiões

da vida quotidiana

e das suas trocas desiguais

e dos seus trocos surripiados

pelas mãos lestas gatunas fugitivas

de Grilo e dos seus discípulos

os piratinhas da Ponta Belém

e pelas partes que se faziam caber

os polícias e os fiscais de serviço

às portas das feiras municipais?

Lembras-te, Balon

da Riba-Praia

e dos seus abraços relutantes

e dos seus sermões diligentes

deplorando do alto do desassossego

das suas falésias avarandadas

sobre as fímbrias do mar e do medo

a detractora conspiração circundante

a conspurcação do seu rosto limpo alvíssimo

pela presença diária de camponeses

rabidantes e mercadores do interior

pela maldição dos subúrbios de Baxo-Praia

e dos seus serventes contínuos

e dactilógrafos de sandálias de plástico

sucumbidos ao êxtase da Praia sábi

ao higiénico logro dos passeios e dos jardins

e dos seus transeuntes de pés descalços

arredios ao júbilo do pó e da agonia

no seu pouco jucundo regresso quotidiano

ao lar à casa a Ponta-Belém à Várzea da Companhia

à Achada à Achadinha a Tira-Chapéu a Lém-Ferreira

a Lém-Cachorro a Ribeirão Chiqueiro à Calheta de San Miguel

a Santana à Ribeira das Pratas ao fundo dos Engenhos?

Lembras-te, Caluca

do centro alto e nevrálgico

da Cidade da Praia de Santa Maria

da Esperança e da Vitória

e da sua Praça Grande axadrezada

ornada da esplanada envidraçada

do coreto da banda municipal domingueira

do repuxo de águas frescas transparentes

dos quiosques dos passeios largos

literalmente interditos aos pés descalços

cabisbaixos mir(r)ando ao longe

e da sua ordem pública

diariamente assegurada

e da sua tranquilidade pública

quotidianamente vigiada

por polícias de segurança pública

varredores municipais fiscais da câmara?

Lembras-te, Lurdes

da cidade – capital

e das suas praças limpíssimas

imoladas sob a desdita da sina

de cidade-repartição

e dos sortilégios do vitupério

dos vilipendiados signos

de secular capital da colónia

renhidamente conservados?

Lembras-te, Katifani

da Praia-Maria

e das suas pracetas verdejantes

e das suas travessas palpitantes

suspirando rancorosas

sob o seco sopro dos discursos oficiais

sob o agudo despeito dos lugares periféricos

sob o lancinante desdém dos ventos do norte?

Lembras-te, Anselmo

da urbe-sede da província ultramarina

e do seu aeródromo pejado da petulância

das autoridades administrativas em trânsito

pela crua nudez pela calva aridez da Achada Grande

e da tristeza dos ansiosos rostos dos emigrantes

ignorantes dos sulcos melancólicos dos acenos do mar

desconhecedores dos antigos apelos do adeus

do Porto Grande do Mindelo?

Todos nós éramos

todos nós fomos

peregrinos curiosos

das ruas cuidadas pavimentadas

da nobilíssima Cidade da Praia de Santiago

e das suas penedias acasteladas

Todos nós éramos

todos nós fomos

andarilhos de passos sonâmbulos

das ruas empoeiradas enlameadas

das ruelas de terra batida dos subúrbios

estanques na sua pobreza circunscrita

pelo redemoinho do seu pó

pelo ensurdecedor alarido

dos seus turbulentos campos de futebol

dos seus improvisados estádios

de terra batida ausentes bancadas

e fanáticos adeptos alevantados

sobre as estarrecidas margens

da rotina e da resignação

Todos nós éramos

todos nós fomos

todos nós seríamos

atentos escrutinadores

das pedras das inscrições das efabulações

corroendo o corpo multissecular da urbe

construída nos contrafortes do Planalto

de Santa Maria da Vitória e da Esperança

nas praias fronteiras pejadas de coqueirais

nos pântanos inúmeros adjacentes

nas várzeas e achadas circundantes

dessa urbe congeminada e apascentada

por mercadores e armadores emergentes com o abandono

da Capitania do Sul e da sua efémera povoação de Alcatrazes

enriquecidos com os negócios vários lícitos e ilícitos

dos defraudadores reinóis ilhéus e estrangeiros

do fisco do costumeiro saque e da Coroa portuguesa

dessa urbe procurada e domesticada

pelos moradores da antiga Cidade da Ribeira Grande

fugitivos do verde primevo derruído da urbe primeira antiquíssima

das suas iminentes ruínas da sua irreversível decadência

foragidos dos seus agoiros das suas seculares atribulações

de cidade crioula primordial primogénita

em Cidade Velha subitamente transfigurada

acossados dos seus celebrizados e enobrecidos pergaminhos

de primeira cidade europeia erguida nos trópicos

arquitectada pelo engenho pela astúcia pela rapacidade

de negreiros latifundiários mercadores missionários armadores

e dos demais senhores dos tempos e dos modos da escravocracia

edificada com as pedras acarretadas pelo suor pelo sofrimento

pela servidão das mulheres e dos homens negros trazidos

da costa africana vizinha traficados da Terra Firme continental

dessa urbe animada e habitada

nos seus anónimos e miseráveis interstícios

por escravos ladinos nascidos na Grande Ilha negociados

entre os desfechos vários da imprevisibilidade dos tempos

dançarinos exímios do batuco da taca

do lundum dos ritmos da tabanca

por vezes definhando moribundos de banzo

de maus-tratos de exaustão de revolta

dessa urbe demandada e sufragada

por morgados do interior da Grande Ilha

em busca do esplendor e da proximidade dos poderes

estabelecidos do provimento em cargos públicos

da civilidade das elites urbanas opulentas

de auspiciosas primícias para as filhas virgens casadoiras

de futuros proventos para os filhos mais novos

preteridos das benesses da primogenitura

excluídos dos tractos e dos réditos do morgadio

dessa urbe amiúde interpelada e festejada

dessa urbe amiúde aferida e aprimorada

nas suas feições e ambições capitalinas

por letrados e funcionários públicos nados

na Vila da Praia de Santa Maria da Esperança

originários do interior da ilha de Santiago

das ilhas adjacentes da Madeira e dos Açores

do Reino/Metrópole de Portugal e dos Algarves

das ilhas Brava do Fogo de San Nicolau de Santo Antão

de San Vicente do Maio do Sal dos aglomerados crioulos

de Cacheu Bissau Bolama e outros Rios da Guiné do Cabo Verde

instruídos nas aulas dos intermitentes e itinerantes Colégios Jesuíticos

da Cidade da Ribeira Grande e das demais urbes do arquipélago

formados nos Liceus e Seminários do Reino e da Metrópole

na Escola Principal da Brava no periclitante Lyceu Nacional da Praia

no Semynário-Lyceu de San Nicolau no Liceu de São Vicente

cabouqueiros das pretensões da cidade erudita e enfatuada

colaboradores assíduos do Almanaque Luso-Brasileiro

e de outros periódicos impressos na Metrópole

escribas e cronistas do Almanaque Luso-Africano

da revista Esperança e da Revista de Cabo Verde

autores de folhetins manifestos memoriais

relatórios tratados abaixo-assinados e conferências

articulistas grandiloquentes temíveis oradores

celebrados defensores do pan-africanismo luso-ultramarino

do nativismo da república da autonomia da província/colónia

lavradores da palavra cívica do verbo versado e burilado

nas teias e miragens imperiais da cidadania e da emancipação

construtores da polis e da sua Biblioteca Municipal

do seu Museu Nacional do seu Teatro Africano

do seu Lyceu Nacional do seu Liceu Serpa Pinto

do seu Liceu da Casa Serbam e de outros Colégios particulares

das suas associações recreativas e de socorros mútuos

dos seus serões de leitura dos seus clubes desportivos

das suas tertúlias republicanas dos seus gabinetes de leitura

das suas festas e danças de salão do seu Centro de Estudos

da sua Imprensa Provincial do seu itinerante Boletim Oficial

das suas editoras e gráficas privadas tal a Minerva de Cabo Verde

dos seus jornais irreverentes das suas controversas publicações

tais os jornais O Independente A Imprensa O Praiense

A Voz de Cabo Verde O Futuro de Cabo Verde

O Progresso de Cabo Verde O Eco de Cabo Verde

das suas persistentes revistas tal o Boletim/Revista Cabo Verde

e as suas vozes numerosas atentas eclécticas conformistas

subservientes conciliadoras críticas dissidentes subversivas

acolitadas acolitando-se para a informação para a propaganda

para a indagação para a documentação para a cultura para a mudança

com os tempos suplementares proféticos da nova largada da esperança

para a lenta subtil e impassível implosão do silêncio circundante

para a desassombrada denúncia das tragédias seculares do povo

sob a sombra vigilante itinerante do Governador da Província/Colónia

do Bispo da Diocese do Superintendente dos Serviços da Administração

e dos seus servidores reinóis e filhos retintos da terra e dos seus inspectores da polícia e dos seus demais distintos funcionários metropolitanos

adrede renitentes ao pardo abraço da terra e da secura

todavia também bastas vezes enfeitiçados pela pacata

amorabilidade nativamente aconchegada como morabeza

da ilha periodicamente arrebatada por distúrbios

e por outros convulsivos apelos da dissensão social

dessa urbe provida das artes e das habilidades

de artífices e empregados do comércio

nascidos criados e amadurecidos

na ampla dispersão do arquipélago caboverdiano

de ex-agricultores do interior da Grande Ilha

de ex-camponeses das Ilhas do Sul e das Ilhas do Noroeste

e de ex-pastores e pescadores das Ilhas Orientais

condenados ao êxodo rural e à disseminação

pelos trabalhos públicos pelos expedientes vários

do porto das portas dos mercados e das lojas

da quotidiana serventia das donas de casa

moradores dos subúrbios edificados nas ourelas do mar

nas embocaduras das ribeiras nas encostas e ravinas

das achadas circundantes do planalto-capital

sitiados pela insalubridade pela promiscuidade

pelo desassossego pela incúria das autoridades

dessa urbe provedora das expectativas

dos badios da Praia e dos badios de fora

dos padjudos e das padjudas das as-ilhas

habilitados com a antiga quarta classe

do ensino primário com o esforçado segundo ano

com o festejado quíntumo ano com o jubiloso

e altissonante sétimo ano dos Liceus

prontos nas alvíssaras e nas promessas

da intrépida e tortuosa caminhada

nos armadilhados trilhos do branqueamento

cultural e da aristocratização intelectual

para o provimento dos almejados lugares

de escriturários de aspirantes de terceiros oficiais

de interinos de longa e paciente duração

de uma segura e prestigiada carreira futura

no pouco obeso quadro da Função Pública

providenciados com a vaselina e a escassa indumentária

para os circunspectos passeios e os gestos lentos reflexivos

à roda da Praça Grande vezes sem conta circum-navegada

para o atiçamento dos olhares (in)discretos

e dos poemas ultra-românticos dos devaneios

aos seios tesos virginais resguardados das raparigas

emboscadas atrás das cortinas sulfurosas

aos desejados vultos das meninas e moças

debruçadas em gestos tímidos e lânguidos

em poses desafiadoras provocadoras

nas varandas dos sobrados circundantes

depois saudosamente relembrados

depois doentiamente rememorados

na Terra-longe metropolitana e ultramarina

dessa urbe feita loca de refúgio e bênção

de comerciantes judeus sefarditas

oriundos de Gibraltar e do Marrocos

radicados na ilha da Boavista

errantes das ilhas e dos negócios

dessa urbe sonhada e erigida

como espaço de ascensão social de migrantes

mulatos mestiços e raros negros do Fogo

em fuga da prepotência dos morgados

da predadora soberba dos brancos crioulos

arribados à excelsa terra do verde da primeira rocha

desembarcados na ilha matricial e badia retintamente crioula

chegados à ínsula verdiana maioritariamente castanho-escura

em busca da aristocratização social e económica

em demanda da révanche histórica propiciada

pelo trabalho árduo no comércio ambulante

das pedras milagrosas do skontra do café genuíno dos Mosteiros

dos frutos temperados nas pedras fumegantes

das terras vulcânicas suas natais orgulhosas

dos vinhos manecon encomendados na ilha natal

dos vinhos a granel importados da Metrópole

e de outros produtos impingidos pelos caixeiros-viajantes

das grandes casas comerciais de Lisboa e do Porto

pelo emprego sabido nas lojas nas casas de pasto nos botequins

nas pensões nas mercearias nos restaurantes nas barbearias

nos escritórios nas propriedades rústicas e urbanas

dos patrícios já longamente radicados e estabelecidos

na capital da província e nas vilas da ilha hospitaleira

pela astúcia no manejamento dos pesos e das medidas das balanças

pela sagacidade na manipulação dos balanços e dos ganhos do dia

pelo açambarcamento do sal do açúcar do sabão e do petróleo

pela especulação com os preços do milho do feijão do arroz e de

outros géneros alimentícios dos tempos da abundância e da carestia

pela oportuna busca de colocação nas vagas da guarda fiscal

nos postos e nas esquadras da polícia de segurança pública

nos serviços da fazenda e das alfândegas nas agências bancárias

do Banco Nacional Ultramarino nos correios telégrafos e telefones

nas conservatórias dos registos civil predial e automóvel

nos cartórios notariais nas secretarias judiciais das Comarcas

do Barlavento e do Sotavento nossos e deles da Relação de Lisboa

pela amigável confraternização com conterrâneos de outras ilhas

seus compadres seus clientes seus parceiros nos bancos do ori

nos jogos de cartas nos serões nas tocatinas nas serenatas

ao som do violão da rabeca do rabolo e das mornas de Nho Ogénio

pela imprescindível conservação dos sinais do orgulho

na fidalguia do parentesco e da árvore genealógica

pela conveniente ostentação da epiderme clara

marcada pela ancestral brancura dos antigos povoadores lusos

seguidores exemplares da consigna bíblica

e do póstumo axioma luso-tropical

crescei e multiplicai-vos entre pretos e pardos

entre gentios mouros e civilizados entre crentes e pagãos

entre monoteístas e animistas e as suas máscaras sincréticas

e as suas feições multiformes pluri-coloridas

pela previdente garantia de descendência vasta

marcada pela mistura com o sangue vário das criaturas

da terra de acolhimento sedimentada

no aconchego da sua cidade e das suas vilas

nativa da ilha anfitriã afirmativa da urbanidade

dos modos dos trejeitos e dos sotaques

detentora das chaves das lojas e dos armazéns

possuidora das gazuas para o desvendamento

dos enigmas do enriquecimento

conhecedora dos trilhos para a obtenção

da benevolência de Deus

salteadora dos desvios para a angariação

da condescendência do Diabo

          

Nota do autor: Constitui o presente poema uma versão refundida de um excerto do poema “Praianas (Poema de Nzé di Sant´y Águ)” integrante do livro Praianas- Revisitações do Tempo e da Cidade (Spleen-Edições, Praia, 2009) e da sua versão não nominativa constante do livro Rememoração do Tempo e da Humidade (Poema de Nzé de Sant´y Ago), editado em, 2016/2017, pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda de Portugal.

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