A Sagrada Maria do Norberto Tavares
Cultura

A Sagrada Maria do Norberto Tavares

No passado sábado, 06 de Junho, se Norberto Tavares estivesse vivo estaria a completar mais um aniversário. Faria 64 anos. O músico morreu em Dezembro de 2010, com escassos 54 anos. Logo, pode dizer-se, ainda tinha muito para dar, se bem que a saúde do artista tivesse deteriorado muito nos últimos anos da sua vida.

Não escondo a grande admiração que nutro pela obra de Norberto Tavares. Ao longo da última década tenho procurado estudar as composições dele, tão profundas quanto belíssimas. O artista, natural de Santa Catarina de Santiago, tem uma obra muito rica, caracterizada, sobretudo, pela sua intervenção social em defesa de um Cabo Verde, e de um mundo, melhores. Mas, ao mesmo tempo que denuncia os problemas, ao mesmo tempo que ataca a indiferença e incita à acção e à pro-actividade, Norberto celebra aquilo que lhe é muito caro: exalta a cultura cabo-verdiana, os costumes, as tradições e os os valores da simplicidade deste povo. E celebra o amor. Norberto é também um romântico e, no romantismo, só tem olhos para uma mulher, a Maria.

É a Sagrada Maria do Norberto Tavares que preenche as próximas linhas deste texto.

Norberto é um dos artistas cabo-verdianos que mais exaltam, na sua obra, a mulher cabo-verdiana. Nas suas canções de glorificação da mulher crioula, sobressai uma figura… a Maria, a sua eterna paixão.

Senhores e senhoras, apresento-lhes - uma a uma - as oito Marias do Norberto.

1. MARIA La Rubera

É, talvez, a mais emblemática das Marias do Norberto Tavares. É nesta canção que Norberto conhece aquela que viria a ser a eterna paixão, senão dele, pelo menos do sujeito poético das suas canções.

Ê la rubera kin kontra ku Maria

Ê la rubera kin konxi Maria

N papia kuel, é nega kudin

N tral kombersu, é djoben so ku rabu d’odju

Norberto apaixonou-se de imadiato pela Maria, uma menina de rostu mansu, de odju brabu, odju nosenti, de panu maradu, de lenso dadu lasu.

Logo à primeira abordagem do cavalheiro, Maria se mostrou relutante. Negou responder, aliás nem com a ajuda das rochas, Maria quis respoder ao chamamento do apaixonado.

N subi riba la na kutelo

Maria la kelotu lém, ta bai

N pupa si nomi, ê nega kudin

Maria la Rubera é das músicas eternas de Cabo Verde. Uma grande inspiração de Norberto Tavares e que, por isso mesmo, se tornou numa das marcas do artista. Se calhar, deve ser por isso mesmo que a canção foi gravada muitas vezes. Mas a versão original, gravada com o grupo Tropical Power, está no disco Mundo Sta Di Boita, de 1982. Caminha para os 40 anos, as grandes obras não envelhecem!

Em “Mundo Sta di Boita”, a canção vem com o nome “Maria N Ta Tchomabu bu ka ta Kudin.” Posteriormente, em outras gravações, a música já aparece com a designação Maria (la Rubera), ou simplesmente Maria.

Seja que designação tiver, certo é que esta música constitui um excelente momento de inspiração do Norberto Tavares. A paixão intensa do sujeito poético encontra na imponência da montanha um forte aliado. Só que a intransigência da Maria é tanta, que nem a força das rochas é suficiente para atrair a sua atenção.

N pupa si nomi, so rotcha responden

Rotcha fla: Maria, Mariaa, Mariaaaa

Bu t’obi rotcha ta djuda’n txomabu

Nem kel bu ka ta kudin

Há aqui uma interessante personificação de elementos da natureza, neste caso, as rochas, que se transformam em cúmplice do apaixonado. Embora nem isso seja suficiente para que o enamorado tenha sucesso no seu amor pela Maria. Pelo contrário, a negação da Maria, que nem à majestosa rocha dá ouvidos, só serve para acentuar a ideia de um problema, à partida, complicado de resolver, uma paixão de impossível correspondência.

Mas, como se sabe, as paixões intensas quanto mais são negadas, mais crescem. E a paixão do Norberto pela Maria continua a crescer. Insistente, o apaixonado volta à carga numa outra canção.

2. (MARIA) KA BU NEGAN

Em “Ka Bu Negan”, Norberto continua a sua inquietante súplica pelo amor da Maria

Ó Maria, setan

Bu ka ta atxa ninguém ness mundo

Ki krebu sima mi, Maria!

Maria, setan, ka bu negan

Eu bem que queria saber porque é que a Maria insiste em negar o amor do Norberto. Parece ser algo tão bonito, tão sincero e profundo, mas a relutância da Maria é total, é incrível!

Ka bu Negam veio no disco “Volta pa Fonti”, de 1979.

A Maria não decide, mas o apaixonado também não desiste, nunca! E continua a sua saga na luta incessante pela conquista do coração da menina que preenche seus pensamentos.

3. Konkista MARIA

Norberto Tavares já se cansou de tanto esmerar nas palavras para expressar aquilo que lhe vai na alma. E, não podendo conter-se mais, parte para a acção. Agora, começa a atirar pedras à apaixonada. Mas, de imediato, tem o cuidado de justificar sua atitude

Bu sabi pamodi n dau cu pedra, Maria?

Ê cusa flau ki dja faltan

E depois de se justificar, Norberto refina a mensagem, a ver se a Maria finalmente “cai”.

Ess kusa kin sta xinti pa bo, Maria

Ka tem tadju, ka tem ramedi, n tem ki flau:

Bo é um dosura, sima kalda na ferbura, dja bu dan tontura

Bo é um frescura, sima brisa na kutelo, sima planta na rubera

A obsessão pela Maria não tem fim. A cada canção, esta árdua missão de tentar ganhar o seu coração parece renovar-se.

E se em Konkista Maria, o sujeito poético já não resiste, já não se contenta com as palavras, a determinação em agir ganha ainda mais forma na próxima música.

4. LARGAN DI NHA SULADA

Perante a impotência das súplicas, Norberto parte para a acção, novamente. E agora, é contundente. Dirige-se ao fundo da Ribeira, que é, aliás, onde gosta de ir ver a Maria, e parte para o “ataque”. Agarra a Maria pela sulada, torce seu braço a ver se ela responde com o tão desejado “Sim”. Será que é desta vez que consegue a tão ansiada resposta afirmativa?

Maria, pára li bu dexan flau dos kusa

Kusa sabi n tem pan flabu

Bem, pelo menos, agora já houve alguma evolução. Finalmente, Maria responde à Norberto, ainda que refilona.

Largan di nha sulada

Sai di nha kaminhu

Si bo rabidan nha lata d’agu

N ka ta setabu dess manera

Bo dexan bem rubera

Pa bem tadjan na nha kaminhu

Pa rabidan nha distinu

Ma n ka ta setabu desse manera

À esta resistência da Maria, Norberto contrapõe:

Bu ka podi fazen ess kusa, Maria

Bu ka podi disprezan si dess manera

Mim mas ki ninguém, mim so ma djan krebu

Bo mas ki ninguém ta mostra ma bu kren

A Maria, talvez já enfastiada, por fim promete dar a sua palavra, mas sem recurso à força.

Um ta setabu sim, mas sem torsi,

ka bu obrigan dau palavra ku disgostu.

N ta setabu sim, mas ku gostu,

Dexa ti na mes di Agostu to ki txuba txobi

Conhecedor da sina deste Cabo Verde, Norberto quase que fica apavorado, já prevendo a ausência de chuvas:

Maria, ma modi! T’o ki txuba txobi? E si ka txobi, Maria?

E a Maria repete: setabu, setabu, so t’o ki txuba txobi

O cavalheiro fica assustado e recorre à ajuda divina:

Ó Deus, nhu poi djobi! Maria, spera la, Maria!

Voltando à questão da torcedura do tal dedinho. Esta era uma prática recorrente nos tempos antigos. A mulher era obrigada a dar o sim ao cavalheiro, mediante pequenas torturas físicas. Neste caso, foi pegar na sulada da menina (o torcer do dedo/braço fica implícito). Havia a prática também de pegar no braço ou no dedo mindinho e torcer até a menina, aflita com tanta dor, responder positivamente.

Esta tradição de outrora está bem documentada no romance “A Ilha Fantástica”, de Germano Almeida. O lugar propício para as investidas dos rapazes eram os fontenários ou os caminhos dos fontenários/chafarizes, onde as raparigas iam buscar água. É exactamente isso que acontece nesta música Largan di Nha Sulada. gravado também em 1979, no disco Volta pa Fonti.

Importa agora traçar o perfil da Maria e tentar entender o que tem nela que tanto desperta a atenção e admiração do Norberto Tavares.

Nota-se que a Maria do Norberto é uma menina tipicamente rural. É uma moça trabalhadeira, que vai às hortas, que vai buscar água, de sulada amarrada à cintura. É menina que cuida da casa, menina “bem-criada”, que preza os valores da tradição e que, pelos vistos, não dá bandeira aos atrevimentos dos rapazes. Mas, também é refilona, o que mostra que é uma menina decidida, que sabe o que quer, ou o que não quer, já agora.

Esta Maria encarna aquela típica mulher cabo-verdiana, aquela mulher do campo, trabalhadeira, batalhadora, incansável. E é tudo isto que cativa o Norberto, homem fiel às raízes, apegado aos valores e às coisas simples da terra.

Se analisarmos a obra inteira do artista, depressa chegamos à conclusão que o telurismo, o apego à tradição, a simplicidade das coisas da terra, enfim o amor ao chão que o viu nascer, são as principais marcas da sua obra. A mulher cabo-verdiana - representada pela MARIA - é o epicentro de todo este amor à terra-mãe. E desta forma, chegamos a mais uma das Marias do Norberto.

5. MARIA Encantada

A música “Maria Encantada”, gravada em 1989, já mostra um Norberto preocupado com as questões de igualdade e equidade de género, onde o homem, despojado de todo e qualquer pensamento machista, promete dividir todas as lides domésticas com a mulher, caso ela, a tal Maria, aceitar casar com ele.

Esta música, poder-se-ia dizer, é um autêntico tratado de igualdade e equidade de género, salvaguardando, claro, as actualizações de alguma nomenclatura. Foi gravada em 1989, portanto há mais de 30 anos. Norberto Tavares era um vanguardista.

A Maria trabalhadeira, que se levanta cedo, estende a cama, vai buscar água, lava a roupa, passa pelas hortas e arranca a mandioca, prepara o almoço… é esta a Maria Encantada que encantou Norberto Tavares. Norberto quer casamento, e promete ajudar em todas as tarefas domésticas.

Kasa ku mim, n ta djudabu fazi tudu kusa:

N ta djudabu kotxi midjo, n ta djubabu tente balei

N ta djudabu tra baxinha, n ta djudabu pena galinha

N ta djudabu panha agu, n ta djudabu laba pratu

N ta djudabu laba ropa, n ta djubabu lisa ropa

N ta djudabu stende kama, n ta djudabu bare kasa

O pedido de casamento há muito que foi feito. Norberto ainda aguarda a tão desejada resposta da Maria. Mas, enquanto espera, os pedidos multiplicam-se. A Maria agora é tratada com mais jeitinho ainda, agora já é Mariazinha.

6. MARIAZINHA leban bu palavra

Mais uma música do grande disco “Volta pa Fonti”. Aliás, três dessas oito Marias são desse vinil de 1979.

Nesta canção, mais uma vez é notória a presença de elementos comuns a todas as músicas sobre a Maria que já analisámos. A rubera, o local predilecto e mais apropriado onde Norberto vai observar a apaixonada; a lata, portanto o utensílio que a Maria usa para transportar água; e a horta. Neste caso, a horta será o sítio onde Norberto propõe o encontro, às escondidas, com a Mariazinha.

Mariazinha, ba rubera, kamba n’horta bo speran

N sa ta bai ku nha boi, n sa ta libra so pes k’odjan

Mariazinha, leba lata, mim n ta leba nha boi

Mariazinha leban bu palavra

7. Sodadi’l MARIA

O sofrimento do Norberto causado pela ausência da Maria atinge o seu apogeu. É, se calhar na música que se segue, que se nota mais o tamanho dessa agonia. Norberto já se ausentou, nota-se, mas as saudades da amada apertam. E, depois de ter percorrido o mundo, de ter vivido na cidade grande, quer voltar às ladeiras, às ribeiras, ao seu cutelo ao encontro da Maria no seu mundo da simplicidade e humildade.

N tem sodadi di bo, Maria

Dipos di tanto desilusão ness bida

djan kre nkosta kabeça na bo regasu

pan kontau desse nha bida na mundu sem bo

 

Dipos kin anda mundo

vivi na cidadis, xeio di maldadi

djan cre dixi ladera, pan ba rubera,

incontra ku bo, Maria

Nem ke detadu na stera, ma djan sta pertu di bo

N ta xinti feliz

8. Sodadi Matinho

Em Sodade Matinho, contrariamente à todas as outras canções que já enumerámos aqui, o foco não está na Maria. Nesta música, Norberto homenageia a zona que marcou a sua infância. Nasceu em Assomada, mas passava largas temporadas em Matinho e Boca Larga, no concelho de Santa Cruz, onde também tinha familiares. Essas localidades, chegou a confessar, marcaram-no de forma indelével. Daí essa homenagem às gentes de Matinho, Boca Larga e Cutelo Mendes em “Sodadi di Matinho”.

Então, o que é que esta canção tem que ver com a Maria?

Sim, ao se lembrar, com saudades, das gentes de Matinho, Norberto evoca, também, a Mariazinha.

Lenbran Mariazinha ku se troxa

Ta subi kutelo

Lenbran Mariazinha ku se xita

Ta ba Santiagu obi misa

Estamos a terminar esta aventura pela Maria, ou pelas Marias, do Norberto Tavares. No fundo, esta veneração do artista pela sua eterna paixão não passa de uma homenagem à mulher cabo-verdiana, representada numa personagem-tipo: uma mulher humilde, simples, trabalhadeira, mulher bonita, que cativou Norberto Tavares.

A mulher cabo-verdiana invade de ponta a ponta a obra do artista e é notória uma admiração quase sagrada do sujeito poético das suas canções, à mulher.

Norberto nunca mais iria se esquecer da sua eterna paixão. Em 2005, cinco anos antes de morrer, regressou à discografia depois de alguns anos afastado e resgatou a emblemática Maria La Rubera num Best Off.

Foi o derradeiro trabalho discográfico do artista e, claro, lá deixou impregnada a Sagrada Maria.

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