"Todos nós éramos, todos nós fomos, todos nós seríamos, todos nós viríamos a ser repositórios dos vários mundos da luta"
Lembras-te, Caló
de Dona Tina
das sombras pairando
sobre as casas sobre as despensas
sobre as lojas sobre os quintais
estendidos temerosos
sobre o frescor e o torpor
do planalto de Mato Engenho
debruçados fraternos
sobre as recentes ruas
de Nhaga-Baxo?
Lembras-te, Caló
de Nha Jova
dos vultos sorrateiros ubíquos
resfolegando agoirentos
sobre as rugas sobre as alfaias
sobre os lazeres sobre os afazeres
das mulheres da Assomada
chamadas mães de terroristas?
Lembras-te, Loló
de Nha Elisa Damas
das precatadas fisionomias
dos bufos e de outros informadores
da polícia política colonial-fascista
da sua perfídia assoberbando-se
pelas esquinas vigiando
os temidos e ansiosos
espectros dos filhos das ilhas
expulsos exilados presos
ostracizados desterrados
das noites longas da Assomada?
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
vozes vorazes
confidentes
dos nossos colegas
da escola primária
e do ciclo preparatório
dos nossos companheiros
dos jogos de futebol
dos nossos condiscípulos
das regulares lutas e brigas
das batalhas campais de espadas
de soca em riste de frechas retesadas
contra os adversários de grupos rivais
dos nossos camaradas dos nossos
comparsas das muitas peripécias
da meninência farta e livre
nas brincadeiras e traquinices
ávidas das aventuras
de Pedro Paulo e Manuel
das estórias contadas
de Lázaro o salteador
dos escondidos cabecilhas
das revoltas de Julangue
dos Engenhos da Achada Falcão
de Fonteana de Ribeirão Manuel
das altercações dos contratados das ilhas
com os proprietários e os feitores das roças
com os seus serviçais negros vindos
de Cabinda de Angola de Moçambique
com os forros nativos de San Tomé di Prispi
pelos favores sexuais pelos serviços domésticos
das mulheres crioulas das ilhas de Cabo Verde
das mulheres pretas retintas da Costa de África
Todos nós éramos
todos nós fomos
espelhos quebrados
alquebrados reflexos falantes
das deambulações dos nossos parentes
embarcados dos nossos familiares
emigrados no vasto mundo
dos seus eventuais encontros
com o filho mais velho
do professor Juvenal Cabral
e da costureira Iva Évora
desde há muito banido
das menções expressas na roda
das pessoas comprometidas
com o bem da nação
valente e imortal
por isso tão somente
sussurrado na sua
omnipresente ausência
e cumplicemente apelidado
como Aquele Homem
ou melhor dito e falado
como o Homem Grande
para inequivocamente
para claramente o despir
de quaisquer equívocos
ou resquícios do Anjo Caído
popularmente conhecido
pelo nome O Sujo
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
estupefactos acompanhantes
dos febris rumores
envolvendo de mistério
catapultando para a lenda
transmutando em figura mítica
de inescrutável grandeza
e inexplicável poderio
a personalidade
e a grande fama
desse Grande Homem
desde há muito celebrizado
como estudante brilhante
como hábil jogador de futebol
como engenheiro competentíssimo
preocupado com a erosão dos solos
e a educação dos filhos do povo das ilhas
como amigo e protector dos pobres
solidário das gentes nossas humildes
como crítico feroz dos abusos dos poderosos
e dos desmandos das autoridades
depois amaldiçoado por reiterada ingratidão
para com a pátria verde-rubra
depois denunciado e vituperado
como político contra-a-nação
como terrorista foragido
nas sete partidas do mundo
todavia sempre presente
nos olhares calados
dos seus amigos de infância
das escolas primárias da Assomada
da Cabeça de Carreira da cidade da Praia
todavia sempre presente
no silêncio súbito dos seus antigos
condiscípulos do Liceu Nacional Gil Eanes
dos colegas de trabalho na Imprensa Nacional
da colaboração na Rádio-Clube da Praia
da laboriosa dactilografia da fremente
concatenação da exaustiva depuração
dos artigos do Boletim Cabo Verde
todavia sempre presente
nos olhos arregalados
dos seus antigos alunos
das aulas particulares de explicação
de português história geografia biologia
francês inglês físico-química matemática
dos algébricos cálculos da afronta
e das vicissitudes do sofrimento de todos
em todos os dias das criaturas das ilhas
todavia sempre presente
nas habilidades mágicas
por todos louvadas e admiradas
dos seus irmãos uterinos
quedados vigiados nas ilhas
todavia sempre presente
na memória dos seus
antigos amigos e admiradores
da Ponta Belém da Praça Nova
da Achada Falcão de Tchororó
curiosos da sua inesperada detonação
dos muros coloniais do silêncio
nos inexpugnáveis centros mundiais
dos soçobrados impérios coloniais
da sua poliglota interlocução
com os povos oprimidos e combatentes
com os países socialistas solidários
com as criaturas humanas amantes da liberdade
com as mulheres e os homens de boa vontade
de todo o vasto mundo democrático
das suas incansáveis andanças
pelo mundo em persistente busca
dos meios humanos políticos
diplomáticos logísticos militares
para a salvação do povo das ilhas
e dos povos africanos irmãos
das garras e das desgraças
da tutela colonial portuguesa
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
audazes ouvintes
invisíveis auditores
das sussurradas conversas
dos nossos irmãos mais velhos
e dos irmãos mais velhos
dos nossos colegas e amigos
embrenhados
em estranhas excursões
aos locais mais recônditos da ilha
assoberbados
com repentinas incursões
a praias desconhecidas
a pouco frequentadas baías
ocupados
em cogitadas romarias de saudade
a velhos amigos de infância
em frequentes visitas de cortesia
a parentes próximos
e familiares afastados
moradores de localidades
ostracizadas e celebrizadas
pelo seu espírito de rebeldia
contra os abusos dos morgados
dos seus guardas e feitores
contra as prepotências dos cabos-chefes
dos regedores de freguesia
dos administradores de concelho
das demais autoridades coloniais
contra os sofismas e as ameaças
de padres irmãs de caridade
catequistas e outros amigos
das classes possidentes
e de outros defensores
das autoridades vigentes
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
adolescentinas sentinelas
postadas oníricas
em atenta vigília
sobre os cutelos
e as penedias das ilhas
à beira dos mares nossos
nadados circunvizinhos
nas esquinas das vilas e cidades
no húmido verde dos regadios
na exausta secura das achadas
entre o setembrino rumorejar
dos feijoais e milheirais
expectantes das visões
dos vários e mutantes rostos
das muitas aparições
de Amílcar Lopes Cabral
das suas transfigurações
em padre pastor professor
médico advogado profeta
colector de espécimes vários
de plantas coleccionador de borboletas
das suas asas de múltiplas cores
intrigante indagador das atribulações
do povo partícipe activo nas suas festas
cúmplice dos seus risos altos espontâneos
entristecido nas suas cerimónias fúnebres
Todos nós éramos
todos nós seríamos
todos nós almejaríamos ser
todos nós viríamos a ser
clandestino paladinos
efusivos interlocutores
dos corpos desertores
da incúria e da resignação
dos cobiçados degraus coloniais
das ambicionadas escalas islenhas
da ascensão económica e social
da aristocratização intelectual e cultural
do negro e do mulato caboverdianos
Todos nós éramos
todos nós seríamos
todos nós almejaríamos ser
possessos discípulos
clandestinos seguidores
felinos vorazes executantes
dos passos nómadas de Amílcar Cabral
dos seus ritos apostólicos emboscados
nas fissuras e nas quezílias da orfandade islenha
de um continente mátrio útero primeiro primordial
das anoitecidas vésperas do sonho de amanhã
das fraternas vestes das palavras percutindo livres
irrompendo sísmicas das úberes trevas matriciais
da clandestinidade crepitando cintilantes
nas frontes altas nas latas espáduas
dos demais fundadores ilhéus
do Partido Africano da Independência para a
União dos Povos da Guiné e de Cabo Verde
e dos demais iniciadores da heróica saga
da luta político-armada de libertação nacional
dos dois povos oeste-africanos irmanados
pelo sangue por inenarráveis padecimentos
pela perseverança e pela esperança
pela comum História de sofrimento
secularmente sujeitos ao retrógado
e abjecto domínio colonial português
dos seus ecos trespassados
para os passos fugitivos
meditativos militantes
dos militares e dos universitários ilhéus
da Casa dos Estudantes do Império
foragidos com os seus camaradas africanos
do corpo metropolitano sitiado
do vasto e moribundo
mundo imperial português
para a sua futura transmutação
em comandantes e dirigentes políticos
da luta armada de libertação bi-nacional
dos povos da Guiné e de Cabo Verde
das suas entoações afagadas
pelas vozes feminis soberanas
das mulheres das ilhas mobilizadas
para as várias frentes da luta
na incisiva minudência dos relatórios
nos trilhos andantes pelas transfigurações
do mundo nos timbres majestosos
das lições e das elocuções ressoando
pelos pátios das escolas pelas distâncias
habitadas pelos ouvidos atentos entusiastas
dos relatos da saga libertária do povo em luta
no crepitante dedilhar das notícias sobre
os hediondos crimes da guerra colonial
e os feitos heróicos e revolucionários
da longa e dura luta político-armada
de libertação binacional africana
pelas suas mãos sabidas companheiras
dos seus heróis das suas vítimas civis
dos seus feridos em combate trazidos
de volta à vida e ao dom da alegria
pelas mãos milagreiras
pela respiração solidária
das enfermeiras combatentes das ilhas
sustentadas pela perícia
das mãos cirurgiãs extenuadas
dos médicos guerrilheiros ilhéus
e dos clínicos estrangeiros internacionalistas
originários de Cuba de Angola da Jugoslávia
todos os dias transfigurando-se serenas
em silente e gratificante néctar de poesia
germinando lavada e livre
da amorosa e dilacerada
da misteriosa noite do mato
da terra irmã libertada
Todos nós éramos
passageiros anónimos
incógnitos tripulantes
das ilhas dispersas
emersas sozinhas
navegando tristemente
sobre o oceano
ressonando à deriva
sobre as águas do Atlântico
sequiosas rochosas
tais filhas enjeitadas
pedaços do africano
do ingente e negro continente
tais naus da fome
da morna do sonho
e da desgraça
tais caravelas sem velas
sonhando sofrendo
em busca do Infinito
finalmente escrutado
nas vibrantes palavras
de Amílcar Cabral
e dos seus camaradas
de muitos e ingentes combates
dos seus companheiros
da missão de luta e reflexão
ecoando no detalhado desassombro
e na sabedoria da minúcia analítica
do conclave consultivo de Dacar
do histórico Julho do ano de 1963
exaurindo-se no seu exaustivo diagnóstico
sobre a situação do povo das ilhas
decantando os muitos meandros
da sua História e da sua Cultura
dissecando a longa e trágica saga
do seu singular nascimento
como povo africano insular
da sua dolorida germinação
do cativeiro escravocrata
dos povoadores negros
sob o férreo mando
dos colonos brancos arribados
com as naus do velho Portugal
para o saque das almas
e a usura das riquezas
das criaturas trazidas
para as terras descobertas
no meio do mar-oceano
da sua impregnação
da parda cor das ilhas
virgens e incógnitas
da desolação dos seus céus
dos seus sequeiros
anualmente reinventados
para a perpetuação
dos réditos e do féretro
do morgadio e do latifúndio
e das cadeias da renda e da parceria
da sua inseminação
dos líquidos mananciais
das ribeiras sazonais
do seu parco verde
prosternado em oração
na encomenda das almas
dos cristos negros e mulatos
todos os dias crucificados
para o saciamento da sede
de paraísos terrestres e da vanglória
dos sacerdotes do furibundo Deus
dos mercadores dos armadores
e dos senhores das plantações
de algodão e de cana-de-açúcar
das suas persistentes pelejas
nos pátios das casas senhoriais
no burburinho das sanzalas
no recôndito das montanhas
nas procissões religiosas
nas festividades das romarias
nas varandas dos sobrados
nos escritórios nos balcões das lojas
nos átrios das repartições públicas
nos pátios das escolas nos altares
das capelas rurais das igrejas paroquiais
das futuras ruínas das antigas catedrais
nos púlpitos da palavra indomada
nas tribunas dos discursos de denúncia
na grandiloquência da palavra escrita
nos muitos caminhos da penúria
nos trilhos vários da Terra-Longe
nas muitas ossaturas das falas da oratura
das suas vozes arquipelágicas
arquetípicas da sua calejada alma
de nação crioula gerada e criada
na demanda da sombra maior
da dignidade e da liberdade
sempre imaginadas
sempre congeminadas
nas constantes pugnas
pelos direitos de cidadania
doravante escrutinadas e divisadas
para além dos precários horizontes
das ilhas assoladas pela esperança
expectantes na sua noite grávida de punhais
da deflagração das armas miraculosas
da sublevação para a gestação
de uma outra terra dentro da nossa terra
para o cabal e urgente cumprimento
da sua sina de pátria do meio do mar
ancorada no seu destino africano
livre e soberanamente escolhido
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
circunspectos observadores
da germinação da humidade
e dos ventos da mudança
nos aguardados tempos
do estóico povo de Cabo Verde
dos seus signos de vitória engendrados
nos rostos entusiásticos inundados
de audácia e do verde exuberante
da revolução cubana e da bonança futura
para o povo das ilhas e diásporas
perfilados ante a generalíssima figura
de Amílcar Abel Djassi Cabral
Fundador Militante nº1 e Secretário-Geral
do Partido Africano para a Independência-
União dos Povos da Guiné e de Cabo Verde
para o juramento solene de inteira dedicação
à causa sagrada da libertação nacional
do povo das ilhas no lato quadro da aplicação
dos princípios da almejada unidade africana
e da projectada unidade Guiné-Cabo Verde
e da efectiva concretização da Operação Esperança
de desembarque nas ilhas das forças libertadoras
para a neutralização e a expulsão das forças coloniais
depois adiada sine die e temporariamente abandonada
em razão das suas dimensões altamente suicidárias
em razão dos riscos advenientes da alta traição
de agentes doutrinados instruídos e infiltrados
pela famigerada polícia política colonial-fascista
em razão ademais do rotundo e trágico fracasso
e da morte em combate nas selvas da Bolívia
do Guerrilheiro Heróico Ernesto Che Guevara
em razão muito especialmente das condições
particularmente difíceis e adversas e das quase
inultrapassáveis fragilidades estruturais
do meio-ambiente caboverdiano assolado
por secas prolongadas severíssimas
por demais agravadas e tornadas
sumamente dificultosas e periculosas
pela exiguidade e pelo isolamento
da maior parte das ilhas habitadas
Todos nós éramos
todos nós fomos
sombras juvenis imaginários sósias
dos caboverdianos transmutados
em militantes armados chamados
à luta pelo Homem de Achada Falcão
de Nossa Senhora da Graça
de Nossa Senhora da Luz
dos seus espíritos de combatentes
fortificados nas glórias e nos dissabores
da luta armada de libertação bi-nacional
das noticias das suas portentosas estrelas
deflagrando-se nos obuses apascentados
pela matemática da revolta e da sublevação
pela engenharia da vitória pela ciência artilheira
de comandantes militares lavrados nos saberes
da matemática da engenharia das cièncias militares
das suas bravura e valentia irmanadas
à sagacidade dos comandantes
e dos dirigentes políticos islenhos
das suas mãos guerrilheiras
foragidas do arbítrio e da vergonha
trânsfugas do temor e do medo
desertoras dos execráveis lugares
da humilhação e do opróbrio
das fileiras do exército colonial
de ocupação e subjugação de repressão
do povo de Angola alevantado em armas
para a conquista da sua independência
das suas valentia e bravura incorporadas
nos abraços subversivos emancipatórios
aprendizes das modernas artes
da guerra popular de longa duração
na temerária audácia nos campos de batalha
de guerrilheiros caboverdianos tornados célebres
em razão das suas proezas combativas
em razão da sua total identificação no terreno
com os combatentes do povo heróico da Guiné
face aos frequentes arbítrios e abusos de poder
de alguns responsáveis político-militares
do Partido Africano da Unidade e Luta
das suas bravura e valentia infundidas
no potente retinir dos aparelhos de comunicação
das rodas dos camiões dos motores dos barcos
da sussurrante didáctica dos compêndios escolares
dos novos livros de leitura dos manuais políticos
das ondas hertzianas da Rádio Libertação
insuflando de ousadia e espírito solidário
a coragem a obstinação o afã combativo
dos militantes e combatentes islenhos
expectantes do início da fase armada
da luta no arquipélago caboverdiano
e dos heróicos desfechos futuros
da miraculosa Operação Esperança
muitos deles entretanto ocupados
com a afinação das armas automáticas
para a deflagração dos tiros disparados
no fértil e pujante solo da Guiné-Bissau
para a emancipação política do povo irmão
e para a independência futura de Cabo Verde
muitos deles entretanto indigitados
para a angariação de apoios políticos de meios
militares de bens de consumo e de produção
muitos deles entretanto colocados
no navio mercante 28 de Setembro
no navio de guerra chamado Ocante
e em outros barcos e vedetas rápidas
da nascente Marinha de Guerra do Partido
e em outros serviços de assistência social e humanitária
de apoio logístico de transporte e de comunicações
para o municiamento das incansáveis frentes de luta
e o abastecimento dos combatentes do partido
e das sofredoras e martirizadas populações
das zonas libertadas e das zonas em litígio
fustigadas por bombas de napalme
assediadas por súbitos assaltos
de fuzileiros navais comandos africanos
e outras raivosas tropas heli-transportadas
muitos deles entretanto indicados
para a elaboração dos manuais políticos
dos cadernos escolares dos novos livros de leitura
para a capacitação dos comissários políticos
dos responsáveis e militantes do Partido
dos membros e filiados das milícias populares
das crianças da Escola-Piloto e das escolas do mato
dos camponeses e agricultores das zonas libertadas
muitos deles entretanto ocupados
com a prossecução dos estudos superiores
e a formação em cursos de superação ideológica
e de especialização técnica político-militar
muitos deles entretanto destacados
para a mobilização dos emigrantes das ilhas
no Senegal na Costa do Marfim na Gâmbia
no Gabão no Congo no Zaire em França
na Itália na Holanda na Bélgica no Luxemburgo
na Suécia nos Estados Unidos da América
no Brasil na Argentina no Panamá no Canadá
nos mares altos de todo o vasto e lato mundo
alguns deles entretanto enredados
na levedação e no apuramento
dos mais convictos e vibrantes ritmos
para a afinação dos sons do canto armado
das notas da reafricanização dos espíritos
para a reconfiguração e a nova modelação
das dolentes melodias da irresignação
para a inteira consagração musical
da revolução africana e da saga heróica
dos povos da Guiné e de Cabo Verde
de todos os povos africanos em luta
dos seus militantes combatentes e dirigentes
das suas guerras de libertação nacional
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
todos nós viríamos a ser
repositórios dos vários mundos da luta
arrevesando-se fundindo-se colidindo
na pedagogia da paciência no desbravamento
dos caminhos mais fecundos e eficazes
para o desenvolvimento da luta nas ilhas
contraposta à predicação da iniciática e progressiva
emersão da total e completa inserção dos militantes
oriundos das ilhas integralmente subjugadas de Cabo Verde
no fraterno seio da massa dos combatentes do povo
da nação africana em construção da Guiné-Bissau
contraposta à irritada postulação da imediata passagem
à fase armada da luta no arquipélago caboverdiano
evolando das evocações das interpelações das exortações
de dirigentes e de outros prestigiados veteranos do Partido
descontentes com o deficiente desenvolvimento da luta nas ilhas
desiludidos com a sua alegada secundarização ecoando
na crescente ansiedade na dilatada angústia no alarme
dos prenúncios derrotistas das vozes sussurradas
de inúmeros estudantes intelectuais quadros e professores
domiciliados na clandestinidade das asserções e observações
vindos das ilhas da emigração dos debates e das controvérsias
das tertúlias e das altercações dos cafés e das universidades
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
todos nós viríamos a ser
ávidos e fiéis depositários
dos sacrifícios inúmeros da inteira dedicação
dos comandantes militares celebrizados
nas marcantes batalhas de Guidadge e Guiledje
de cerco e aniquilação final das forças coloniais
em concretização da Operação Amílcar Cabral
e de outros militantes e responsáveis políticos
de outros anónimos guerrilheiros ilhéus
filiados e fundidos na saga combatente
do povo irmão da nação africana forjada
na luta pela independência total e verdadeira
dos povos irmãos da Guiné e de Cabo Verde
para a libertação imediata e incondicional
do sagrado chão da pátria africana de depois
sonhada binacional nos dilemas e nas convicções
nos fragores da unidade e luta para o parto futuro
da união orgânica dos dois vindouros países soberanos
transpondo as fronteiras e os limiares da separação
edificados pelos vaticínios dos cultores d´Os Lusíadas
e pelas muralhas atlânticas do mar-oceano
para o seu desenvolvimento sustentado
para a plena e integral emancipação
de todas as criaturas humanas suas filhas
das suas penumbras e dos seus augúrios desenhados
em figurações da dúvida e do escarnecimento
dos seus propósitos e dos seus desconcertos
das suas contendas e das suas pelejas
reaprendidas e repreendidas em encenações
do ludibrio e de infrene interrogação dos dons
da utopia e dos mandamentos da liberdade
das vindouras virtudes do homem novo radicado
na miragem de um povo africano emancipado
livre e soberano congeminado e esculpido
em dois corpos e num único e uníssono coração
parturiente de uma futura comunidade política erigida
em pátria africana livre isenta das mazelas e dos opróbrios
da subjugação e da exploração do homem pelo homem
pelas letras pelos memorandos pelas perplexidades
pelas missivas pelas insinuações pelas omissões
pelas falácias pelos ritmos pelos silêncios
acalentados e manuseados
por tradicionais adversários políticos
do movimento de libertação binacional
por antigos e convictos correligionários
do partido forjado na undade e na luta
e por outros credenciados caminhantes
dos atalhos do litígio e do dissídio
e por outros professos émulos
dos argumentos da indagação
e das armas da litigância
sobre o peso devido do partido
e a vera leveza da liberdade
na balança de agora e daquela por vir
da soberania popular e da democracia
sobre os modos vários da afirmação
da premência do autoritarismo revolucionário
sobre as muitas modalidades do seu exercício
na inevitável via socialista do desenvolvimento
para a definitiva abjuração da corrupção
e da dependência neocolonial para a total
erradicação das classes sociais exploradoras
parasitárias das muitas expressões do atraso
da miséria da ignorância e do medo
do inferno do subdesenvolvimento
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
todos nós viríamos a ser
estremunhados decifradores
das pegadas e dos rastos
deixados intactos mantidos secretos
por outros acerbos e ferozes críticos
dos conturbados trilhos do canto armado
e por outros intrépidos peregrinos
e por outros resignados sedentários
do exílio rente à noite grávida de punhais
das suas futuras instâncias da reiteração
do pecado que redime e salva do olvido
dos seus vindouros instantes de percussão
do remorso que exime das margens da História
da sua equívoca equiparação às iníquas
façanhas de conhecidos e execrados
traidores e desertores da luta
de desprezíveis informadores
e agentes cooptados e infiltrados
pela polícia política colonial-fascista
E muitos seriam os que frontais
e incisivos interpeladores das ilicitudes
exumadas e cicatrizadas nas atribulações
da germinação da terra e dos tempos
da humidade e da provação trazidas
para a posteridade da lenda e da glória
nos combativos e laboriosos nos invictos
poemas e canções de protesto e luta
depois inundados dos heróicos feitos
e das muitas tragédias da guerra
despois trajados com as lágrimas
e com as afrontas da emigração
depois retomados e investidos
do áfrico tambor da liberdade
envergariam as indumentárias
das estações todas do calendário
para a ocasional indagação das peripécias
da sorte e do azar das duradouras
e enregeladas fontes da fortuna
e diante dos filhos da Europa -
dessoutra Europa da neve longeva
e das opulentas mulheres acalentadas
pelo amor fortuito e pela paixão amorosa
para além dos rochedos dos Pirenéus
dessoutra Europa denunciada e flagelada
nos seus odiosos alicerces heterofóbicos
para além dos vultos dos mortos de Ródan
e dos estarrecidos espectros da Ibéria
dessoutra Europa dissecada e fulminada
nos seus fundamentos predatórios
para além das renovadas núpcias
com as muitas e aliciantes máscaras
da liberdade e da prosperidade -
e diante de todas as moradas da saudade
desabrochadas nas sete partidas dos mundos
da África da Ásia da Oceânia e das Américas
dariam conta da incomensurável medida
da morabeza das suas camaleónicas
elucubrações do seu tabelado preço
em acervos certos de vilania e subserviência
das suas expressões nas várias línguas
surtas nos portos e ancoradouros das ilhas
navegantes e circundantes de todos os mares
de todas as peripécias e de todas as ilusões do mundo
da sua aflitiva e conspurcada demanda dos tempos da liberdade
da sua lenta metamorfose da sua explosiva transmutação
em irritada postulação dos modos erectos da fraternidade
E muitos seriam os que discretos
e clandestinos licitadores das proposições
do passado e das vicissitudes do temido destino
se fariam indigitados da cólera e da indignação
no branco e raivoso coração do Império
e prestariam testemunho sobre a indigência
por que passava o povo do arquipélago da fome
e os exorbitantes trabalhos e as obras extenuantes
nos sequeiros ressequidos nas ribeiras pedregosas
em perigosos precipícios e (pro)fundos abismos
erigindo-se abruptos entre as montanhas das ilhas
nas estradas inúteis regadas com a lata miséria
dos escassos e incertos salários dos trabalhadores
das obras públicas de apoio às populações vulneráreis
desempregadas da lavoura na agricultura e a sua busca
dos usurários e desconhecidos caminhos da Terra-Longe
para as sufocantes minas para as sobrelotadas camaratas
para os insanos bairros e os insalubres arrabaldes das
grandes cidades metropolitanas dos seus prédios em
construção dos seus andaimes dos seus logradouros
das suas vizinhanças hostis dos seus logros e
alvíssaras das suas injúrias dos seus insultos
imediatamente replicados a golpes de navalha
e de torrentes em fúria de palavras acerbas
lavradas em crioulo fundo rústico honrado
lavado e redimido em sangue e saudade
E muitos seriam entretanto os que
sob os auspícios das missivas de longe
e das palavras de ordem gerais emanadas
do timbre da voz sincopada de Amílcar vivo
se juntariam às consignas patrióticas
e aos signos pictóricos de denúncia
do militante co-fundador e enviado da luta
enredado na irreverência contestatária
das lides conspirativas estudantis
iluminadas pela sageza e pelo desassombro
das proposições e das reiterações
dos intelectuais afro-crioulistas
depois disseminando-se e agregando-se
às efabulações poéticas e às confubulações
políticas dos jovens vates da liberdade
e à intransigência anticolonial de outros
convictos conspiradores seus velhos
companheiros de prisão e antigos
correligionários políticos de jovens
nacionalistas forçados ao exílio
depois de precipitada fuga para
se eximir à prisão política iminente
e com os militantes entretanto regressados
do sitiado e explosivo coração do império
para o soterrado coração da luta nas ilhas
e com essoutros temerários insurgentes da
Achada Falcão e da Serra Malagueta e com
essoutras corajosas vítimas futuras da valentia
e do logro do assalto ao navio Pérola do Oceano
se acoitariam no afago e nos sussurros da
clandestinidade das palavras interditas
em demanda dos uterinos alicerces e
das negras placentas do brado africano
inicial primordial primacial fundacional
desvendado para a madrugada da rebelião
na avassaladora poesia do livro Noti
depois aprisionado e querido afónico
nas letradas (re)invenções
do mundo lusotropical
que o português criou
para a assimilação
e a ingénua recreação
dos escribas da adjacência
política cultural e identitária
de Cabo Verde a Portugal
para o aliciamento e a alienação
do cabo-verdiano humilde
anónimo nosso irmão
depois asfixiado e paralisado
na respiração luso-crioulista
do arquipélago atlântico
anestesiado pela água benta
jorrando em sangue do corpo branco
de Jesus o inofensivo Cristo crucificado
o vilipendiado Filho de Deus feito Homem
das ribeiras dos seus canaviais dos
seus mananciais de sofrimento
coagulando-se no lavrado suor
dos homens-bois sob o jugo
da almanjarra colonial
Todos nós éramos
todos nós seríamos
todos nós viríamos a ser
predicadores das liturgias
da liberdade e da justiça social
das sombras erguendo-se
despertas e eufóricas
dos espectros disseminando-se
justiceiros e igualitários
das criaturas das ilhas
dos subjugados convertendo-se
libertários e fraternitários
aos inflexíveis gerúndios
porta-estandartes da negra bandeira
do arquipélago da fome
desterrada com o corpo
alevantado de mestre Ambrósio
deportado para longe
das marchas do povo ecoando
na voz sonora do capitão
das ilhas e das ruas famintas
à cáustica narrativa
dos destroços humanos
flagelados pela desmesura
do arbítrio e do vento leste
vagando desfeitos
feitos cadáveres ambulantes
pelos ignóbeis lugares
da fome e do vilipêndio
da aviltação e das agruras
do rebaixamento dos Famintos
de todos esses amargurados dias
de todas essas amargas noites
do seu resgate para a dignidade
da posteridade dos dias vindouros
ao doce e assertivo
lirismo insurrecto
de outros poetas maiores
da Nova Largada
sempre em fremente busca
de uma Pasárgada outra nossa
germinando plena e inteira
radiosa anti-Pasárgada plantada
na pátria africana do meio do mar
dos antigos flagelados do vento leste
aos brados relampejantes
aos punhos sediciosos
à rebeldia nacionalista
dos poetas pan-africanistas
ao universalismo pan-negrista
dos discursos poéticos
dos vates de muitos nomes
devotando-se sublimes
às odes e aos hinos
à Africa esfíngica e faraónica
à África heróica e insubmissa
do poeta nosso pan-africanista
pioneiro primeiríssimo
dilacerando-se camaradas
do sangue e da bravura
das armas miraculosas
dos povos combatentes
habitantes d’ a arma da teoria
e d´a prática revolucionária
de Abel Amílcar Djassi Cabral
e de outros intrépidos coveiros
do meio-milénio de desventura
de cinco longas décadas seladas
em silêncio e indizível sofrimento
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós seríamos
circunstanciais leitores
distanciados admiradores
dos cantos e das odes
do moderno poeta metafísico
nosso ontológico das ilhas das suas
trágicas e devastadoras mortandades
da sua meditação sobre os lugares vários
da interpelação do pecado e do perdão
das suas copiosas inventariações
das suas pluviosas causticações
dos muitos paradeiros e apeadeiros
da morte do exílio e da celebridade
da prosódia e da longa ossatura
da grande envergadura dos seus versos
a um tempo proféticos e indagadores
da dúvida dos processos dos excessos
dos humilhados recessos da Humanidade
dos seus tempos passados
dos seus tempos presentes
exaustos da poética
e da erudição do mundo
dos seus tempos de então
de negro greco-latino
andarilho do mundo
dos seus tempos de então
de crioulo cabo-verdiano
afeito aos parcos remos do arquipélago
dos seus tempos de então
de ex-lusitano refractário
à grandiloquência seminarista
dos poetas nativistas submersos
na antiga brancura greco-latina
do mundo que deveras contava
e às luzes missionárias das suas estrofes
derramando-se incongruentes
sobre os insuperáveis dilemas
dos seus outros confrades nativistas
dos seus auspiciosos tempos vindouros
das fórmulas matemáticas dos axiomas científicos
dos ensaios laboratoriais das farmacopeias
das dissertações e de outros modos de captar
a imaginação e os maravilhosos saberes do mundo
e as prodigiosas complexidades do cérebro humano
reflectidas nos síndromas e nos olhos rebrilhando
cansados do neuro-cientista nosso maior das ilhas
e de outros fugitivos e de outros exilados políticos
e de outros banidos do comatoso arquipélago da penúria
da sua multissecular e moribunda Metrópole
dos seus renitentes domínios ultramarinos
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