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Desconstruindo COVID-19 e o Estado de Emergência em Cabo Verde
Colunista

Desconstruindo COVID-19 e o Estado de Emergência em Cabo Verde

Atualmente, o espectro da morte tem marcado uma presença constante no gênero humano sob a figura de uma pandemia. Esta epidemia global, ao qual padecem nações, reivindica o nome de COVID-19, uma doença causada pela infeção do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2. Esta doença fez cair todas as máscaras da lógica do individualismo, pregada pelo neoliberalismo. O mesmo vírus que obscureceu o mundo ceifando vidas, trouxe à superfície e escancarou um conjunto de dicotomias sociais, ironias históricas e vulnerabilidades capitais que envolvem a humanidade no seu estágio atual.

A caixa de Pandora está aberta. Como fechá-la?

É o que tentaremos responder ao longo deste modesto ensaio.

A pandemia teve como berço a cidade industrial de Wuhan, capital da província de Hubei, o “Chicago da China”. A natureza altamente contagiosa do vírus fez com que a doença disseminasse pela China e pelo mundo globalizado numa velocidade impressionante. O mundo ferido pelas mortes advindas do vírus nefasto, atirou e continua atirando à China, toda sorte de vitupérios e acusações xenofóbicas. A lista de acusações é longa, incluindo, desde censuras aos hábitos alimentares chineses, até a suposta fabricação do próprio vírus pelo Governo chinês. Fica a impressão de que um país ou um continente é responsável pela germinação e mutação de um vírus.

Parecemos esquecer que a pandemia da Gripe Espanhola, como afirmou o historiador Alfred Crosby, teve a sua origem no Kansas, Estados Unidos.

E olvidamos que a Malária, teve foco inicial na América Latina, e o Ébola, na África.

A culpa como sempre, órfã de nascença, é lhe dada a conhecer vários pais.

Com o advento desta enfermidade, as autoridades governamentais das diversas nações se dividiram em pelo menos duas posturas distintas: De um lado, os que subestimaram o vírus, minimizando os seus efeitos, como foi o caso do Vice-Ministro da Saúde do Irã, Iraj Harirchi, que um dia após efectuar uma conferência de imprensa desvalorizando o coronavírus, contraiu este mesmo vírus; de outro lado, temos os que atempadamente adoptaram todas as medidas preventivas, como foi o caso da Coréia do Sul, que apostando na realização de um enorme número de testes (não só para casos suspeitos mas para todos que quisessem verificar se haviam sido contagiados), conseguiu desacelerar as infecções e reduzir o número de casos mesmo estando próximo do epicentro da pandemia, sem ter de recorrer ao uso de quarentenas, uma lição que podia ser de grande valia ao Governo cabo-verdiano, se fosse executada a tempo certo. No prelúdio do vírus, China e Itália foram as nações mais afetadas. Cabo Verde ouviu soar, por assim dizer, duas badaladas virais, e ainda assim, o Governo foi pego desprevenido pelo sino pandêmico.

Neste momento, o arquipélago sente o peso do sucateamento elaborado durante décadas, por governantes passados e futuros, dos Hospitais públicos. Tornando o sistema de saúde cabo-verdiano incapaz de dar uma resposta acertada a chegada da pandemia. Pois, toda a trajetória da gestão política cabo-verdiana, executada pelos políticos burgueses, desagua inteira no seguinte adágio: Aprés moi, le déluge (Depois de mim, o dilúvio).

Porém, o povo cabo-verdiano tem aguentado esta desolação com o porte intrépido, digno do maior louvor.

Não podemos, no entanto, deixar de notar que apesar dos pesares, o coronavírus modificou, ainda que temporariamente, as relações historicamente constituídas entre os povos, e entre o ser humano e a natureza.

Se anteriormente, o mar mediterrâneo era a sepultura de milhares de imigrantes africanos clandestinos, cuja Europa fechava as portas, hoje é a África quem fecha as fronteiras. Se antigamente, nas fronteiras estadunidenses expulsavam-se mexicanos, atualmente, são os mexicanos que agradecem o senhor Trump pelo sacrossanto muro.

Há relatos de que o ar se tornou mais límpido em algumas cidades industriais do globo, e que certos animais regressaram ao seu habitat natural. Isto se deve a paralisação do consumo desenfreado, fruto do capitalismo selvagem em que vivemos. Esta infeliz pandemia, nos impõe a refletir e a questionar, o sistema tóxico no qual estamos inseridos. É triste reconhecer, que foi preciso um vírus desta envergadura, para que o ar se tornasse mais respirável nos Estados Unidos e os cisnes se sentissem mais seduzidos a retornar aos canais de Veneza, cujas águas estão mais cristalinas como há muito não haviam sido.

O vírus que inflige o temor da morte nos corações humanos, é o mesmo que deu ao planeta, um novo sopro de vida. Justamente quando a aparência inculca uma atmosfera fúnebre ao nosso redor, a essência planetária nos evidencia que a Terra, é um eterno parto.

Pandemias já haviam sido registradas nos anais da história humana, não sendo portanto, uma novidade. Mas recentemente com este vírus nos deparamos com algo completamente novo.

O mundo perante o coronavírus, está assistindo ao nascimento de modelos totalmente inovadores de engenharia social e gestão de crises. Estamos testemunhando em primeira mão, e talvez pela primeira vez na história, a quarenta em massa, de milhões de indivíduos saudáveis. Está emergindo gradualmente, um sofisticado arquétipo de controle populacional à escala mundial.

A pergunta que não se quer calar, e cuja resposta, ninguém tem ainda a capacidade de dar, é: Quanto tempo isto vai durar?

Entretanto, a esfinge que por ora, não estamos aptos a decifrar, permite-nos elucidar a anatomia desta moléstia. Dissecando esta patologia, constatamos que o coronavírus não é apenas uma pandemia que traz consigo uma crise sanitária, mas é sobretudo, uma crise sanitária que traz em si, a semente de uma crise económica.

Com restaurantes, escolas, universidades, comércios, hotéis e espaços culturais encerrados, encerra-se também o fluxo do capital, que por sua vez acarreta desvalorizações. Se tais desvalorizações sucedem no coração da segunda economia mundial, o indício de uma crise económica é inevitável.

Prevendo a chegada da crise em Cabo Verde, o Governo tomou as medidas necessárias para proteger o crédito, e só depois enfim, procurou proteger os trabalhadores informais (a categoria mais vulnerável aos reveses da economia), e diga-se de passagem, duma forma bem superficial.

É o Governo salientando as suas tendências neoliberais, mostrando que aprendeu bem a lição ensinada pelo crash de 2007-8, em que os países foram afetados primeiro pelo crédito, em seguida, pelo mercado financeiro e por fim, pela produção.

Infelizmente para o Governo e para nós, parafraseando Heráclito: “Nenhuma crise se banha duas vezes no mesmo rio capitalista.”

A crise que se apresenta é diametralmente oposta à anterior, ela teve impacto inicial na produção, como estamos vivenciando, para depois impactar o mercado financeiro e o crédito.

É observando estas medidas governamentais, submetendo-as à crítica minuciosa (e como toda crítica completa não deve limitar-se a expor o problema, e sim propor soluções), que solicitamos encarecidamente ao Governo cabo-verdiano que adicione no seu catálogo de medidas, mais quatro nossas. Que são as seguintes:

- Uma profunda atualização dos recursos materiais, humanos, financeiros e uma reavaliação salarial dos profissionais da saúde, obtendo assim um orçamento sem restrições, que contemple todo sistema de saúde e pesquisa em Cabo Verde, pois o momento é de ousadia;

- Requisição de profissionais e equipamentos de toda clínica privada cabo-verdiana para lidar com as emergências do COVID-19, antes da saturação dos hospitais públicos;

- Aumento do rendimento destinado aos trabalhadores informais. O salário mínimo de treze mil escudos, já é minúsculo para arcar com todos os custos que uma vida digna exige, como pode então o auxílio emitido pelo Governo, estar abaixo de um salário mínimo? O proletário cabo-verdiano em tempos de crise, não deve jamais estar reduzido à mera escolha entre, não ter um auxílio digno ou ter um insuficiente. Os trabalhadores reivindicam somente o justo, e dez mil escudos, não é o justo;

-Um novo redireccionamento da avareza estatal.

Solicitamos que, ao invés de utilizarem a avareza estatal para atirar migalhas aos trabalhadores informais, redirecionem-na para a santa Assembleia Nacional. Cessem os subsídios de deslocação dos políticos da nação, que dizem serem suportados pela egrégia Assembleia, mas que todos sabemos serem suportados pelos trabalhadores da nação. Em tempos de quarentena nos parece viável tal medida, já que a mobilidade deve ser quase nula. E sequer tocamos nos subsídios de habitação, nos subsídios de comunicação, e outras tantas regalias alegadamente suportadas pela digníssima Assembleia Nacional, que carrega sempre alegremente, sua pesada carga.

Face a difusão do coronavírus pelo globo, inúmeros foram os países que declaram o estado de emergência como subterfúgio para conter esta calamidade.

A necessidade da ocasião, obrigou as nações proclamarem tal estado anti-democrático para salvaguardar a saúde e o bem-estar do povo, visto que, como já dizia o nosso ilustre africano de Hipona, Santo Agostinho: “necessitas legem nom habet” (a necessidade não possui lei) ou podemos interpretar, que a necessidade cria a sua própria lei.

Nas ilhas da morabeza não se deu diferente, certas liberdades, direitos e garantias previstos na nossa Carta Magna foram suprimidas para conservar a vida dos habitantes do arquipélago. Em síntese, Cabo Verde se encontra num estado de exceção.

Tal estado possui particularidades escorregadias. É por esta razão que qualquer Constituição democrática que se preze, prevê o estado de exceção apenas e somente apenas, em situações extremas.

Nunca será escusado demais dizer, que foi por meio de um estado de emergência que Hitler, apoiado pelo artigo 48 da Constituição da República de Weimar, teve o Decreto do Incêndio do Reichstag proclamado, abrindo assim as portas para as políticas nazistas. Tal é o perigo deste estado.

Embora o Estado cabo-verdiano esteja longe de ter sentimentos anti-democráticos, existem outras sutilezas para o qual devemos dirigir a nossa atenção.

O estado de exceção tem o dever de proteger a Constituição, mesmo suprimindo-a. Neste estado, o povo despoja-se das suas liberdades, direitos e garantias, para ganhar um quinhão de segurança assegurada pelo Estado.

O recurso à um estado de emergência pressupõe que as autoridades da República, avaliaram moral e politicamente a conjuntura nacional e mundial, reconhecendo a necessidade de um Governo mais robusto para garantir o bem-estar da nação.

O Governo ganha robustez revogando os direitos dos cidadãos, e suas medidas encontram maior caráter imediato sem os cuidados atentos do poder legislativo.

Em última análise, no estado de emergência o Governo se fortifica às expensas dos direitos dos cidadãos, há uma abolição provisória da distinção entre o poder legislativo, executivo e judiciário. Para o povo significa: mais segurança, menos liberdade.

O estado de exceção, só é aceito e tolerado pelo povo sob os auspícios de duas bandeiras, que ascendem sinalizando: a sua necessidade urgente e o seu período temporário.

A medida que o coronavírus avança, governantes do mundo inteiro têm lançado em uníssono gritos de guerra para legitimar o estado de emergência. Antes de anunciar o confinamento na França, o senhor Macron gritou: “Estamos em guerra.”

Em Cabo Verde ouviu-se o eco pela boca da Vossa Excelência, o Primeiro-Ministro, que nos fez a questão de lembrar que, “Na guerra as pessoas cumprem ordens”.

Na mesma entonação militar, fomos convocados pelo Presidente da República: “somos todos soldados do mesmo exército”.

Esta linguagem marcial, justifica-se pela gravidade do assunto, mas qualquer exame medianamente atento, não pode ser condescendente a ponto de permitir passar em silêncio, esta narrativa de guerra que carrega em si graves contradições. É preciso analisar com especial cautela as fraseologias ditas, pois a linguagem não é inocente.

Em primeiro lugar, a analogia de guerra com uma pandemia não é propriamente correta, nem de uma perspetiva económica, nem de um ponto de vista jurídico.

Na economia, o coronavírus tem sido o inverso de uma guerra, onde a produção é levada ao limite, com o coronavírus vê-se precisamente o contrário. E pela lente jurídica, se o coronavírus assemelhasse por pouco que seja a uma guerra, seria preciso declarar um estado de sítio e não um estado de emergência.

Em segundo lugar, a narrativa de guerra não é benéfica porque pressupõe um inimigo, e quando este inimigo é invisível aos olhos humanos, tendemos a materializá-lo nos corpos dos infectados, o que contribuirá para uma crescente insensibilidade social, cujo prólogo, vimos no tratamento destinado aos trabalhadores do Hotel Riu, em que uma quarentena virou um cativeiro repleto de ameaças por parte da administração do estabelecimento, e o Governo sequer se sentiu sensibilizado pelos apelos destes trabalhadores.    

Neste estado particular de exceção, delega-se ao Governo um poder legislativo, que anteriormente seria da competência do parlamento. O Governo passa a executar a legislação por meio de decretos com força de lei, por outras palavras, a hierarquia entre lei e decreto é invertida.

Neste momento, Cabo Verde não mais exerce o parlamentarismo. A República, neste instante, deixou de ser parlamentar para se tornar, governamental.

Esses traços, em linhas gerais, compõem o novo retrato do Estado cabo-verdiano.

Uma das sutilezas mais importantes deste período político, localiza-se no elenco de leis da nossa República. A Constituição cabo-verdiana no item três, do ducentésimo septuagésimo primeiro artigo, prevê: “Durante a vigência do estado de sítio ou de emergência e até ao trigésimo dia posterior à sua cessação, não é permitida a realização de qualquer acto eleitoral.”

Entendemos que, em caso de prorrogação do estado de emergência, como se deu recentemente em Espanha, a proibição da “realização de qualquer acto eleitoral” , continua vigente. Em suma, se por um ato da Providência, ou uma obra do destino, ou por qualquer que seja o arquiteto do universo, oferecerem-se motivos para que o estado de emergência seja prorrogado incessantemente até o final do ano, estará abolida as eleições municipais de novembro. Tal conjuntura é improvável, mas não impossível.

Este tópico que passa despercebido como uma nota de rodapé, é na verdade um capítulo a ser visto e medido com atenção cirúrgica no decorrer dos eventos futuros.

Para fechar a caixa de Pandora, é preciso retirar do fundo dela o único elemento que não saiu, a esperança.

Somente a fiscalização contínua do povo sobre o Governo, garantirá uma passagem deste hiato político, sem abusos ou despotismo. Em última instância, a sorte está lançada, suportemos vigilantes, portanto, o acaso do tempo.

Abril, 2020

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