A minha justiça
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A minha justiça

Meus senhores, não fui eu que falhei. / Foi o sistema que se ausentou.
/ Foi o silêncio dos que juram proteger.
/ Foi a lentidão dos que dizem julgar. / Eu apenas pus um ponto final
 / onde todos insistiram em pôr vírgulas.

Não houve coragem.


Houve fim.

Ele entrou pela minha porta

com a certeza de que ninguém o travaria.


Sem pressa,


sem medo...


como quem pisa chão seu.

Levou o que viu


e o que não se vê.


Levou o meu sossego,


deixou o asco


do seu cheiro a cinzeiro, a padjinha


e do bafo de grogue fermentado no estômago.

Na esquadra,


disseram para esperar.


Preencher papéis.


Dar tempo à justiça.

Mas a justiça não tem relógio


e o tempo pesa em cima de quem sofre.

Ele continua a andar na rua


como se nada fosse.


A rir-se sempre que passa por mim.


A olhar-me nos olhos


como quem diz:


"Já bô cabá na nada!"

Ninguém me valeu.


O medo é a minha companhia.


E não dorme.


Vive comigo,


senta-se à mesa,


chora comigo no chuveiro,


deita-se na cama ao meu lado.

O meu corpo nunca mais foi o mesmo.


Nem a minha respiração.


Nem os meus passos.


Aprendi a viver com os ombros tensos,


com a faca de cozinha debaixo da almofada,


com o pânico como vizinho.

Todos me diziam:


"Tem calma."


"A justiça tarda mas chega."

Mas não chegou a tempo.


Ficou parada


na mesma esquina onde ele me abordou 


com uma faca no pescoço.

Hoje, encontrei-o de frente.


Não houve polícia.


Nem tribunal.


Nem uma parede entre nós.

Ele olhou-me


com a mesma arrogância,


com o mesmo olhar de desdém


de quem se sente intocável.

Naquele instante,


qualquer vestígio de humanidade


morreu em mim.

As minhas mãos agiram


sem aviso,


sem plano,


sem hesitação.

Foi tudo muito rápido.


Foi visceral.


Cruel.


Brutal.


Foi o fim.

Fiz justiça com as minhas próprias mãos.

Não, não me orgulho.


Mas não me arrependo,

e também não celebro.

Chorei no chão enquanto gritava.


Era a frustração que saía.


Com as mãos sujas de sangue


e o futuro a fugir-me pelos dedos,


vi que agora todos apareceram:


as autoridades,


os técnicos,


os senhores do poleiro...

Agora querem saber porquê.


Falam de consequências.


Dizem que não se faz justiça assim.

O meu choro virou riso


diabólico e enlouquecido.

Onde estavam todos


quando acordava com pesadelos


ou simplesmente não dormia?

Quem me deu a mão


quando ele me seguia impune?


Quando eu deixei de ser EU


para ser medo a tempo inteiro?

Meus senhores, não fui eu que falhei.


Foi o sistema que se ausentou.


Foi o silêncio dos que juram proteger.


Foi a lentidão dos que dizem julgar.

Eu apenas pus um ponto final


onde todos insistiram em pôr vírgulas.

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Comentários

  • Hope, 14 de Mai de 2025

    Poesia isto não é.

    Responder


  • Félix Cardoso, 14 de Mai de 2025

    A cronica retrata a moridade e o sentido de impunidade. Mas a justiça privada, não deve ser o caminho, e nem deve agir em paralelo ou pior, ainda, substituir a justiça publica.
    Devemos receber esta crónica como um apelo a reformas urgentes na justiça Estatal.

    Responder


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