• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
Um cabo-verdiano que se diz Cabralista é, acima de tudo, um Nacionalista
Ponto de Vista

Um cabo-verdiano que se diz Cabralista é, acima de tudo, um Nacionalista

O último artigo publicado pelo meu prezado amigo Dr. Jacinto Santos no jornal online “opais” tem o mérito de trazer à discussão uma questão que tem sido muito pouco debatida na sociedade cabo-verdiana, que é o processo de formação do quadro ideológico dominante no seio do qual operam os partidos políticos do arco do poder.

Basicamente o autor do texto se socorre de uma corrente de pensamento existente em certos setores (minoritários na minha opinião) no seio do MPD que advogam que o PAICV, na sua essência, “continua” sendo um partido de matriz totalitário, marxista, comunista e antidemocrático e que os ideólogos do partido ventoinha pouco a nada tem feito para varrer estas marcas do espetro político caboverdiano.

Naturalmente discordo, em grande medida, da linha de analise defendida pelo Dr. Jacinto Santos, da forma como os factos e os argumentos foram apresentados, contudo considero que se trata de um debate atual, pertinente e que deve ser feito de forma desapaixonada, objetiva e, sempre que possível, com base em evidências.

Assim sendo resolvi trazer para o debate alguns estratos da tese defendida pelo Dr. Jacinto Santos, contrapondo-os com os meus contra-argumentos:
“O Editorial de Humberto Cardoso (Expresso das ilhas de 14 de setembro) é lapidar e mostra o quanto o MpD falhou no desenvolvimento da sua função cognitiva. Em vários textos e ocasiões afirmara que a transição democrática em Cabo Verde terá ficado a meio caminho, porque não desalojou a ideologia do antigo regime do aparelho de Estado.”

Em que medida a transição para o multipartidarismo terá falhado? Foi aprovado uma nova constituição de cunho liberal; a matriz económica do país foi alterada radicalmente com a inserção na economia de mercado e entrada em massa de capitais estrangeiros; o estado saiu de praticamente todos os setores de atividade económica.

Pessoalmente até gostaria que esta afirmação fosse verdadeira, pois defendo que o estado caboverdiano deve assumir plenamente as suas obrigações na garantia do acesso a serviço básicos como, por exemplo, o transporte marítimo e aéreo (nacional e internacional), basta vermos o nível de precariedade dos serviços prestados pelos privados neste setor. A TACV só consegue aguentar-se de pé com uma forte intervenção do Estado. Em relação ao transporte marítimo todos os indicadores atuais apontam para uma rutura do contrato assinado entre o governo e a atual empresa concessionária a breve trecho.

Se temos tido alguma estabilidade ao nível do fornecimento de energia elétrica o mesmo se deve ao facto da Electra ter sido re-nacionalizada em 2006. Em 2005 tínhamos uma empresa totalmente descapitalizada, operando com equipamentos e infraestruturas obsoletas e desajustadas face às necessidades da população que já se mostrava cansada e desesperada com os sucessivos apagões que na altura assolavam sobretudo a Capital do País. Perante a crescente insatisfação popular o governo de então teve de tomar uma decisão firme e corajosa e voltou a nacionalizar a empresa, reassumindo assim plenamente o seu papel de garante do bem estar e qualidade de vida da população.

Poderia dar aqui com detalhe os efeitos negativos que a crescente mercantilização de serviços fundamentais como a saúde, a educação, eletricidade, transportes públicos, etc., têm afetado a qualidade de vida das camadas mais vulneráveis da nossa sociedade. Mas fico por aqui.
“… o MPD contribuiu e vem contribuindo, de fato, para o branqueamento do Regime de Partido Único.”

A minha opinião é exatamente o contrário. O MPD procurou ad nauseam manchar o legado do período do partido único. A forma como acontecimentos como o 31 de agosto em Santo Antão e casos isolados de uso excessivo de meios coercivos por parte das forças da ordem pública como as milicias populares ou os tribunais populares foi (e continua sendo) explorado, é elucidativa do que foi a tentativa de criação de uma narrativa que associasse o PAICV ao autoritarismo, repressão e à ditatura. Porém, a materialidade dos fatos nos mostra que a primeira república enquanto um regime de inspiração socialista foi fundamental na criação das bases para o desenvolvimento do país. Nem tudo correu bem, seguramente. Mas analisando os factos à esta distância temporal temos que reconhecer o trabalho desenvolvido no combate à pobreza, à fome, ao analfabetismo, etc.

“O MpD prescindiu de dar combate ideológico ao PAICV e à ideologia que o suporta desde a sua fundação.”
O MPD não teve que prescindir deste combate porque este tal PAICV, de inspiração socialista e do partido único, pura e simplesmente deixou de existir em 1990. Não há como combater um inimigo que já não existe. Persistir neste combate seria "Lutar contra moinhos de vento" como bem diria Miguel de Cervantes.

“É de uma grande ingenuidade política pensar que o PAICV terá prescindido da sua ideologia só porque continuou a funcionar em democracia liberal e no Estado do Direito!”

Depois de 10 anos na oposição o PAICV regressou ao poder em 2001 dentro do quadro democrático-liberal e exerceu três mandatos consecutivos em restrito respeito para com as leis da república. O PAICV do pós-1990 perdeu totalmente o seu caracter revolucionário e se transformou naquilo que o Dr. Jose Maria Neves chama de a “esquerda moderna e progressista” e que eu chamaria de esquerda liberal e que está plasmado nos Estatutos do PAICV.

Na secção “Declaração de Princípios”, página 2, encontramos a seguinte afirmação: “o PAICV concebe a economia de mercado fundada na liberdade e na pluralidade de iniciativas, contemplando a iniciativa privada, a iniciativa pública e a iniciativa social”. Trata-se de um documento que se encontra disponível na página oficial do partido e que pode ser consultado por qualquer cidadão interessado.

Como diria Lenin a ‘pratica é o critério da verdade’, e não conseguimos descortinar nenhum indício desse tal fantasma ideológico nem nos estatutos do PAICV nem na sua experiência governativa mais recente e que mereceu a confiança dos caboverdianos por três mandatos consecutivos.

“O MpD liderou e bem o processo de instalação do novo regime, consagrado na Constituição de 1992, mas não foi consequente no combate ás “reminiscências ideológicas persistentes” do regime do Partido Único e da sua ideologia de matriz marxista e leninista.”

Em 1990 não houve nenhum processo revolucionário que ditou a queda do regime e a sua substituição. O que houve foi um processo totalmente pacífico e negociado de transição de poder. O PAICV, percebendo o contexto de mudança no cenário internacional, abriu espaço para o diálogo e se dispôs a negociar com as lideranças do novo movimento surgido na altura e que, diga-se de passagem, era constituído na sua grande maioria por indivíduos que até então eram alguns dos mais fervorosos defensores do partido único e que na primeira oportunidade mudaram do grogu para o vinho, como bem diria o nosso saudoso compositor kaka Borbasa na sua conhecida musica “dimokrança”.

Todavia, é inegável que o MPD foi sim um ator importante no processo de abertura ao multipartidarismo, por ter oferecido ao caboverdianos uma nova alternativa de governação e sobretudo por ter vencido as primeiras eleições multipartidárias realizadas no território nacional. Contudo, quanto muito se pode afirmar que o MPD co-liderou este processo, pois tal só foi possível porque houve abertura e disponibilidade do PAICV.

“É dramático como alguns dirigentes do MPD teimam em não aceitar que o pensamento de Cabral não tem nada a ver com a democracia (sua organização, princípios e valores) e o Estado de Direito, que a esmagadora maioria dos caboverdianos adotou a 13 de janeiro de 1991.”
É totalmente anacrónico analisar o pensamento do Cabral fora do seu tempo. Sendo Cabral uma personalidade que perdeu a vida em 1973 não faz nenhum sentido julgá-lo com os óculos virados para processos históricos e políticos ocorridos quase duas décadas depois do seu falecimento. É obvio que o pensamento de Amílcar Cabral não se enquadra na democracia liberal vigente na maior parte dos nossos países atualmente. Cabral viveu no auge da guerra fria e da existência de dois blocos políticos adversários. Por acaso foi no bloco socialista que os movimentos de libertação nacional encontraram todo suporte logístico, financeiro e ideológico para o desencadear da luta armada em prol da autonomia e independência dos territórios africanos. Os países de democracia liberal eram precisamente as potencias imperialistas, opressoras e colonizadoras, contra os quais Cabral e os demais lideres africanos lutavam.

Ainda convém referir que a democracia pode ser materializada em qualquer regime cujo poder emana do povo. Considerar a democracia liberal e multipartidária como a única forma de exercício democrático possível é limitado e não reflete a diversidade de práticas, de culturas e de modos de vida existentes neste mundo.

“Cumprir Cabral em plena democracia só vincula o PAICV que vive da ideologia do seu fundador, que se autoproclamou como herdeiro do pensamento de Cabral, depois do golpe de Estado na Guiné Bissau. Um dirigente ou um militante do MPD que se diz Cabralista está no Partido errado!”

Cabral é uma figura que está acima dos partidos políticos. É um símbolo da unidade nacional. Neste sentido qualquer cidadão que se assume como Cabralista é acima de tudo um nacionalista, um patriota, independentemente da sua preferência partidária.

“A Fundação Amílcar Cabral é o instrumento de perpetuação da ideologia de Cabral. Nada contra! Mas que o faça através ou com a parceria do Estado NÃO!”

A Fundação Amílcar Cabral tem prestado um importante papel na preservação do legado de Amílcar Cabral. Frequento regularmente a sede da Fundação e sou testemunha do esforço que a FAC tem feito para, com parcos recursos, levar a diante a árdua tarefa de inventariação e sistematização de todo o espólio disponível referente ao período de luta de libertação nacional e dos primeiros anos pós independência. Quer se goste ou não, este período faz parte da nossa história e como tal deve ser preservado num esforço conjunto da sociedade civil, do estado e do setor privado, até porque Cabral não é apenas um patrimônio de Cabo Verde, Cabral é um património da humanidade.

Em vez de procurarmos diminuir o trabalho desenvolvido pela FAC deveríamos antes incentivar a criação de mais fundações e centros de estudos que possam também contribuir na preservação e divulgação da memória dos atores envolvidos em outros momentos históricos como, por exemplo, a luta pela abertura democrática, ou até de figuras relevantes do período colonial.

A história de um povo não é jamais escrita por uma mão única. Portanto mais do que tentar silenciar quem promove uma corrente ou uma personalidade que não nos agrada, devemos incentivar o surgimento de mais vozes, de mais diversidade e que se atenda a todos os públicos e seguimentos existentes dentro da nossa sociedade. Só assim estaremos a construir uma nação verdadeiramente democrática.

Compreendo perfeitamente as preocupações do Dr. Jacinto Santos em relação a uma certa indefinição ideológica do MPD no presente momento. Contudo, na minha humilde opinião esta indefinição não é propositada, ela não acontece porque as atuais lideranças querem que assim seja. A questão de fundo é que o espetro político nacional encontra-se cada vez mais afunilado. As diferenças ideológicas entre os dois principais partidos do arco do poder são cada vez mais residuais.

Governar um país como Cabo Verde, infelizmente, não depende (e nunca dependeu) apenas dos caprichos ideológicos e vontades de lideranças conjunturais. Muito pouco se tem falado sobre a importância das instituições de cooperação internacional como o FMI, Banco Mundial, União Europeia, etc. Eles também fazem parte dos nossos erros e dos nossos acertos, mas isso é assunto para outros debates.

Partilhe esta notícia