Falsa democracia, tirana liberdade - Primeira parte
Ponto de Vista

Falsa democracia, tirana liberdade - Primeira parte

Amílcar Lopes Cabral nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau, a 12 de Setembro de 1924. Era filho de Juvenal António Lopes da Costa Cabral e de Iva Pinhel Évora, cabo-verdianos da ilha de Santiago. Juvenal era professor e Iva costureira. Juvenal não chegou a conhecer o pai, o padre António Lopes da Costa que foi assassinado quando ele ainda era criança. Na esperança de que viria também a ser padre, a sua madrinha, Simoa dos Reis Borges Correia financiou-lhe os estudos que iniciou em Portugal. Entretanto, fracassado esse desejo, Juvenal seguiu para Guiné Bissau à procura de trabalho. Depois de algumas aventuras acabou-se enveredando na carreira de professor. Na Guiné ele conheceu a Iva que veria a ser a mãe de seus 4 filhos, sendo Amílcar o primogénito.

Em 1932 a sua madrinha Simoa faleceu, tendo-lhe deixado umas propriedades de sequeiro. Conforme se especula, foi nessa propriedade que a 10 Fevereiro 1910, Nhanha Bongolon se notabilizou ao mijar um soldado na boca. E Juvenal regressou definitivamente a Cabo Verde, trazendo os filhos consigo. Quatro anos mais tarde regressaria também a Iva, encontrando os filhos maltratados pela madrasta e ignorados pelo pai. Cabral tinha já 12 anos e cuidava de umas cabras. Não tinha ainda ido à escola. A Iva levou os meninos para a cidade da Praia e os matriculou numa escola primária. Em apenas 2 anos, ou seja, em 1938 Cabral já frequentava o liceu de São Vicente que concluiu em 1943 como um dos melhores alunos. Regressou à ilha de Santiago e trabalhou na Imprensa Nacional na cidade da Praia.

Com uma bolsa para cursar agronomia, em 1945 rumou-se para Lisboa. Em terras lusa, enquanto estudante do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, dava explicação aos colegas e cobrava para o efeito. Apaixonou-se por ele, dado ao seu brilho como aluno, uma moça portuguesa, Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, com quem veria a casar-se em 1951. Concluiu o curso em 1950 com a média de 18 valores, avaliado por um júri, cujo presidente nunca havia dado mais que 12 aos seus examinados.

Como engenheiro agrónomo, em 1952 foi contratado pelo Ministério do Ultramar, para trabalhar na Guiné Bissau como adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais. Em 1954 dinamizou a criação da Agremiação Desportiva e Recreativa de Bissau, que por não ter sido autorizada pelo regime, por ser considerada suspeita, granjeou a antipatia do Governador Melo e Alvim, que o obrigou a emigrar para Angola, podendo visitar a mãe uma vez por ano. Numa dessas visitas, isto é, a 19 de Setembro de 1956, juntou-se a mais camaradas: Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Júlio de Almeida e Elisée Turpin, fundou o PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Regressou à Angola e a 10 de Dezembro de 1956 participou na fundação do MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola.

Enquanto líder do PAIGC, Amílcar Cabral soube mobilizar recursos e congregar apoios pelo mundo inteiro. Estabeleceu relações com países comunistas e outros, nomeadamente a União Soviética de Nikita Khrushchev, China de Mao Tsé-Tung, Argélia de Ahmed Ben Bella e Marrocos de Hassan II, que não só lhe forneceram armamentos, proporcionaram-lhe formação aos quadros do Partido. Essa relação com países comunistas valeu-lhe o epíteto de anticristo, o que era demasiado inconveniente na época, visto que Portugal era um país católico e, os cabo-verdianos maioritariamente analfabetos, eram ferrenhos e fanáticos. Esse estigma só veria a minimizar-se no 1º dia de Julho de 1970, quando o Papa Paulo VI recebeu no Vaticano os três líderes dos movimentos armados contra o regime português, por ele chefiados. Os outros dois líderes foram: Agostinho Neto, do MPLA e Marcelino dos Santos, da FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique.

A luta de Cabral não era para que ele viesse a ficar rico, porque já o era. Nem para se perpetuar no poder ou para que ficasse famoso e lhe viessem chamar Sr. Engenheiro. Tanto que, notabilizou o termo CAMARADA e disse a dada altura: – «Skravu kaba, Senhor ka ten» O escravo acabou, o Senhor não existe. Tendo a igreja católica interpretado, maldosamente, esse «Senhor não existe» por «Deus não existe». Entretanto, hoje, quase que é crime ou sacrilégio expressar o termo CAMARADA. Pois, um Primeiro-ministro de Cabo Verde, numa cerimónia na Aula Magna em Portugal, escapou-lhe esse termo, de imediato pediu desculpa à plateia.

Cabral não se compactuava com ditaduras nem com atos algozes. Prova disso, houve uma altura em que o Tribunal do Partido condenara dois militares à pena de morte: Horácio Sanches Vaz e Miguel Embaná, quando Cabral soube da sentença, manifestou-se desta forma: «Si pa nu kontínua ku luta e presizu ki nu mata nos própis ómi, ami N ta ratira, N ta bai trata di nha bida». Se para continuarmos com a luta temos que matar os nossos próprios homens, eu me retiro e vou tratar da minha vida.

Foi assassinado em Conacri no dia 20 de Janeiro de 1973, com três tiros de uma arma do PAIGC, disparada por um dos seus homens que era Comandante da Unidade de Blindados em Boké. Chamava-se Inocêncio Kany. Outros militares como Inácio Soares da Gama, Mamadú Ndjai, Aristides Barbosa e Momo Touré participaram da conspiração.

Dia 24 de Setembro de 1973, 8 meses após ao assassinato de Cabral, nas colinas de Madina de Boé foi proclamada a independência da Guiné-Bissau. E a 25 de Abril de 1974, um grupo de militares, que ficaram conhecidos por Capitães de Abril, deu golpe de Estado em Portugal, derrubou o Estado Novo e pôs fim à extensão do governo de Salazar, chefiado por Marcelo Caetano.

Viveu-se, à época, um brevíssimo período multipartidário em Cabo Verde. Três forças políticas se movimentavam, cada uma divulgando os seus ideais junto à população. O PAIGC apregoava a necessidade de uma independência total e imediata, baseada na unidade Guiné e Cabo Verde; a UPICV – União dos Povos Independentes das Ilhas de Cabo Verde – defendia uma independência total, mas sem a unidade com a Guiné; e a UDC defendia uma federação com Portugal. Esta última veio a desaparecer na cena política com o 28 de Setembro em Portugal. Entre o PAIGC e a UPICV houve confrontação renhida que terminaria em Dezembro de 1974, tendo sido à UPICV, ainda, bebé, cortado o pé. Os seus membros e dirigentes foram presos e conduzidos à prisão do Tarrafal e depois para a prisão de Caxias em Portugal. Pendia contra si a acusação de arquitetar plano para envenenar a água nas redes domésticas. Quinzinho de Nhu Quim-quim de Mouro, o maior karateca nacional de então, travou uma titânica luta, frente ao Cachito, na então Praça 12 de Setembro, tendo feito prisioneira uma moça que era graduada com 4º Dam de kung-fu e que pertencia a UPICV. Essa força política foi desmantelada, os seus militantes presos e deportados para Lisboa, entretanto, quanto ao crime de que vinham acusados nunca mais se ouviu falar.

O PAIGC assumiu como o único Partido legal em Cabo Verde, outorgado na Carta Magna, no seu Artigo 4º, como «força política dirigente do Estado e da Sociedade». O Presidente da Assembleia Nacional Popular, Abílio Duarte, na abertura da última sessão da primeira legislatura que aprovou a Constituição, garantiu estabelecer um Estado em que a soberania reside no povo, cabendo às massas populares exercer o poder político diretamente e através dos órgãos de poder eleitos democraticamente. Isto quer dizer que, no papel, Cabo Verde nasceu já democrático. Só que quem estava autorizado a representar o DEMO (Povo), tinha que ser militante do PAIGC, conforme justificou Abílio Duarte: «Ao longo dos anos o PAIGC tem sabido, nos momentos cruciais da história do nosso povo, não só interpretar, mas também materializar as aspirações das massas populares à liberdade e ao progresso. É por isso que se consigna no artigo 4º da Constituição que, no desempenho da sua missão histórica da força dirigente da sociedade e do Estado, ao PAIGC cabe estabelecer as bases gerais do programa a realizar pelo Estado em todos os setores, bem como definir as etapas da reconstrução nacional e indicar as vias da sua realização». Por isso, os militantes do PAIGC, mormente os Combatentes da Libertação da Pátria, que tinham regressado das matas, vieram cheios de fúria, e fúria sem freio. Tinham trocado a sala de aula pelas cabanas das matas e caneta pela espingarda, pelo que consideravam justo e legal serem os donos da terra. Possuíam poucos estudos e quase sempre reagiam por impulsos naturais. E sabemos que a natureza é ordeira e que estabelece a ordem de forma hierárquica, até mesmo ditatorial. «O chefe é chefe e mais nada!»

Dia 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea, foi reconhecida e outorgada a Independência de Cabo Verde, representado apenas pelo PAIGC. Pedro de Verona Rodrigues Pires assumiu a chefia do Governo e Aristides Maria Pereira foi para Presidência da República. Pedro Pires já era habilitado com o 7º ano dos liceus (atual 11º ano). Aos 23 anos de idade seguiu para Portugal a fim de frequentar a Faculdade de Ciências de Lisboa, mas a obrigatoriedade de prestar serviço militar, empecilhou-lhe o desejo. Ingressou-se na Força Aérea como oficial miliciano e, em Junho de 1961, juntamente com um grupo de jovens africanos, abandonou Portugal e encontrou-se com Cabral no Gana onde juntou-se ao PAIGC. Enquanto chefe do governo confiava piamente nos seus exíguos Doutores da lei. Tanto que, foram esses Doutorados, os redatores do texto da 1ª Constituição que dizia no seu Artigo 4º: «O PAICG é a força política dirigente do Estado e da Sociedade». E ainda, sob propostas, avais e corroborações desses Doutorados, com muita boa-fé, isto é, com o intuito de se estabelecer autoridades de proximidade junto da população, criou-se o Tribunal Popular e as maliciosas milícias. A intenção era de democratizar a justiça e envolver DEMO na segurança da comunidade. E uma das vantagens dessa iniciativa é que nessa altura os Thugs não se atreveriam a dar caço-bode a ninguém. Só que a ideia se abandalhou e a sua regulamentação não foi a mais adequada. Concederam poderes excessivos e desproporcionais aos juízes que eram quase todos mokerus e analfabetos. Podiam julgar e condenar os cidadãos até 6 meses de cadeia, sem direito a constituir advogado e sem a prerrogativa de interpor recurso.

Houve, inclusive, dois juízes do Tribunal Popular, cujos filhos são hoje proeminentes figuras da Justiça e do Governo, que ordenaram uma invasão a uma casa, local de trabalho de um Curandeiro, espoliaram-lhe todos os pertences e colocaram em exposição, publicamente, de forma ultrajante e humilhante. O Curandeiro passou 24 horas no calabouço, no entanto, não chegou a ser julgado. Esse Curandeiro veria a falecer aos trinta e poucos anos, depois de levar uma injeção das mãos de um médico no Hospital de Santa Catarina de Santiago. Levou a injeção, sentiu-se mal disposto, disse que ia para a cama descansar-se, ainda hoje está-se a descansar em paz. Embora havendo crime, já deve estar prescrito, seria desafiante se as autoridades competentes investigassem esse caso e os demais que não são suspeitos nem estão prescritos. E que existem evidências por demais.

Descontentamento foi-se agudizando e a repressão acompanhando-lhe os passos. Agentes infiltrados, intitulados de Contra Inteligência, que na gíria crioula significa chibo, bufo ou pé-de-galo recebiam provisionamento para espionarem tudo quanto era suspeito. Mas a perseguição, com o epicentro na capital do país, ocorreu mais nas ilhas do Norte, especialmente em Santo Antão e São Vicente onde houve, mesmo, algumas mortes. Consequentemente, a 13 de Maio de 1977, na Holanda, foi fundada a UCID – União Cabo-verdiana Independente e Democrática – desejosa de lutar contra os abusos do Partido Único. Dos seus fundadores e dirigentes destacam-se Lídio Silva e John Wahnon. Essa força política não conseguiu singrar muito porque era visto e conotado como Partido do Norte, erradamente denominado por SANPADJUDU, e que ostentava ideologias anti-BADIU.

O Estado trabalhava em consonância com o Partido e este assumia o controlo das Organizações nas realizações de todas as atividades políticas, culturais, sociais, desportivas e recreativas. E estavam estruturadas assim: OPAD – Organização dos Pioneiros de Cabo Verde; JAAC – Juventude Africana Amílcar Cabral; e OMCV – Organização das Mulheres de Cabo Verde. A OPAD encarregava-se de organizar iniciativas de pendor infantil. Várias crianças descobriram os seus talentos e seguiram as suas vocações. «Toda a Criançada Canta» foi um dos exemplos que adoçaram a mais-valia dessa organização. A JAAC mantinha os jovens em constante interação entre si e com a sociedade, dando a sua colaboração no desenvolvimento sociocultural da juventude. O concurso «Todo o Mundo Canta» foi uma das referências importantes das atividades levadas a cabo pela JAAC. Daí, as oportunidades surgiram, os talentos descobriram-se, a nossa música se expandiu e se valorizou, até se internacionalizou. Já a OMCV se encarregava da situação das mulheres que, grosso-modo, dependiam do marido e, a taxa de analfabetismo incidia em maior percentagem sobre elas. A OMCV se encarregava de educar e formar mulheres para se integrarem com dignidade na nossa sociedade.

O governo e o PAIGC deu uma atenção particular ao sistema do ensino, com a criação de escolas, mobilização de recursos, estabelecimento de parcerias e cooperações com países amigos como Portugal, Cuba e a União Soviética. Incrementou o curso de alfabetização para os que quisessem aprender a ler e escrever. E em pouco mais de uma década o analfabetismo quase se erradicou. E a taxa hoje é de 13,5%.

Na linha do pensamento de Cabral e na perspetiva de proteger os camponeses, criou-se um instituto para a Reforma Agrária. Uma lei foi feita, entretanto a coisa deu por torto. Na sua implementação houve excesso de força e abuso do poder. Facto que, a 31 de Agosto de 1980 alguém morreu. E os sobreviventes foram desumanamente torturados, julgados e condenados. Coitados! As únicas instâncias que lhes poderiam anular a sentença, inclusive, julgar e condenar o Governo, era o Supremo Tribunal de Justiça, o Presidente da República mediante uma amnistia e, ainda, o Procurador-Geral da República, enquanto fautor da ação penal e fiscal da legalidade. Nunca o Governo.

 

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