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Denúncia do tratamento recebido no aeroporto Nélson Mandela na Praia
Ponto de Vista

Denúncia do tratamento recebido no aeroporto Nélson Mandela na Praia

Eu, Chalo Correia, músico e compositor Angolano, venho por este meio denunciar publicamente uma situação pela qual passei no aeroporto Nelson Mandela na cidade da Praia, Cabo Verde, ocorrida no passado dia 16 de Julho do corrente mês. Pelo que, passo a citar.

Saí de Lisboa num voo da TACV com destino a cidade da Praia no dia 16 de Julho às 18:30, com o intuito de ir visitar o meu filho menor, que no final deste mês vai celebrar mais um aniversário. A viagem foi tranquila, sem qualquer tipo de contratempo, pelo menos aqui em Lisboa, tanto com a transportadora aérea, como com as autoridades. Desembarquei na Praia às 21 horas e poucos minutos, e após entrar no edifício aeroportuário dirigi me ao guichê da polícia de imigração, onde entreguei a documentação que me foi pedida. Após verificar minuciosamente os documentos, a agente feminina disse-me que o meu passaporte tinha apenas 15 dias de validade, e isso teria como consequência a minha não permissão de entrada em Cabo Verde.

Como é compreensível, isto caiu-me com o efeito de uma bomba, contra tudo aquilo que acho normal, pois em muitos anos de viagens e com milhares de quilómetros percorridos por vários países, nunca tinha acontecido, e pergunto- me: como é que eu não reparei na data da caducidade do meu passaporte, e, por outro lado, como é que as autoridades de imigração em Lisboa não me alertaram, até porque não viajava para o meu país de origem. Fiquei por uns instantes "desligado", não acreditava no que se estava a passar comigo, contra todas as probabilidades. Entretanto, a agente disse-me que iria chamar o oficial de serviço, e que eu devia esperar, e assim foi. Entretanto, aproximou-se o oficial perguntando qual era o motivo da minha ida a Cabo Verde, e respondi-lhe que ia visitar o meu filho menor, e como prova pedi ao agente para verificar atentamente o meu passaporte dos vários vistos de entrada em Cabo Verde, ao longo de nove anos. Seguidamente falou-me que a situação era séria e teria de falar com um superior, porque só se entra em Cabo Verde quem tem um passaporte com pelo menos seis meses de validade, o que não era o meu caso.

Até aí eu estava de pleno acordo com ele, pelo que só me restava esperar o outro voo e regressar a Lisboa, sem qualquer problema, assumindo a minha falha e o prejuízo pessoal associado. Entretanto, o oficial afastou-se e pegou no seu telemóvel e foi falar, segundo ele, com o superior. Pouco tempo depois, com os meus documentos em suas mãos, pediu-me para o acompanhar, e assim fomos em direção a um gabinete na área na polícia de imigração, no local de chegadas de passageiros, mas antes perguntou também se eu tinha residência em Cabo Verde. Respondi que não, e continuamos em direção ao gabinete para dar seguimento ao processo.

Postos no Gabinete, apareceram mais dois agentes policiais, que se posicionaram ao meu redor de forma intimidatória, através dos olhares, um deles, de braços cruzados, balançava o seu corpo como quem se estivesse a preparar para um confronto físico. Isto enquanto o oficial de serviço sentado escrevia no computador em cima da secretária.

Diante de todo este cenário mantive-me sempre calmo a observar a sala contigua que tinha mais duas agente femininas. De repente, perguntou-me o graduado o que é que eu fazia, ao que respondi que era músico. No entanto, continuou o seu trabalho, até dizer que tinha achado informação na internet sobre a minha atividade profissional. Também estava presente neste pequeno gabinete um funcionário da TACV que entregou alguns papéis ao oficial de serviço, olhou-me cabisbaixo dizendo que lamentava a situação, e que iria ver alguma coisa para eu comer, pois era muito tempo desde a partida de Lisboa. A TACV, na viagem de quatro horas para a Praia, apenas serve aos passageiros uma sandes e um copo de sumo ou água. Como não como carnes vermelha, durante a viagem não comi a sandes mista que me tinham dado.

Todo o procedimento envolvente era moroso e desgastante, eu pressentia através dos olhares pouco apaziguadores dos presentes um mau desfecho, e fiquei ainda mais confuso porque não sabia como iria culminar aquela situação. Por conseguinte, o meu desejo era apenas ter um lugar digno onde pudesse esperar o voo de regresso.

Durou algumas horas, desde a minha chegada ao aeroporto Nelson Mandela, às 21:00 horas do dia 16, até à hora que me permitiram ligar a uma familiar na cidade da Praia, isto já perto da meia noite e quarenta e sete minutos. Foi essa a hora que ficou registada no meu telemóvel. Entretanto, o oficial da polícia de imigração depois de terminar deu algumas orientações e foi-se embora. A seguir entrou o funcionário da TACV que trouxe uma sandes e um sumo, desculpando-se que era o que tinha conseguido, porque na área da restauração do aeroporto já estava tudo fechado. Portanto, só no dia seguinte, neste caso quarta feira dia 17, teria novidades, e provavelmente já teria um voo para eu voltar a casa.

Saíram todos, fiquei apenas com os dois agentes no gabinete, um deles ordenou que eu tirasse tudo o que  tinha nos bolsos, mandou-me pôr o meu telemóvel em cima da secretária, e também tirar o cinto das minhas calças e os atacadores dos sapatos. Protestei dizendo que não tinha cometido crime algum para ser tratado daquela forma, enquanto, jocosamente, um outro guarda ria-se. Eu disse-lhes que iria apresentar uma denúncia pública, porque não era uma maneira correta de a polícia tratar um cidadão. O agente respondeu prontamente, dizendo: «o senhor pode fazer o que quiser, está no seu direito, tem uma sala de espera onde vai ficar». Depois de despojado dos meus pertences, de forma humilhante, sarcasticamente o outro agente falou para não me preocupar pois tinha um lugar onde podia descansar, e apontaram para sair do gabinete, um guarda à frente e outro atrás de mim,  o que ia na frente  abriu a porta da sala a seguir ao gabinete onde estávamos, e disse «aqui está»! e abriu a porta. Com uma mão segurando a porta e a outra balançando o molho de chaves, disse-me para entrar, enquanto o outro guarda observava. O cheiro da sala era insuportável, o guarda, curiosamente, disse-me que era bom eu aproveitar e ir à casa de banho da área de chegadas, porque as casas de banho do compartimento onde eu ia pernoitar estavam muito mal. Não me estavam a dizer nenhuma novidade, dado o cheiro nauseabundo que pairava no seu interior e o estado de sujidade desde o chão, às paredes, e alguns moveis completamente obsoletos. Não queria acreditar no que estava a passar comigo, diante de  pessoas que agiam com uma naturalidade assombrosa. Voltei da casa de banho ao lado, e então entrei na sala, e eles fecharam a porta a chaves.

No interior onde eu estava havia dois sofás muito velhos, rotos na parte do assento, que se podia ver as tábua e pedaços de esponjas, um televisor de marca Crown pendurado numa parede, visivelmente avariado, duas longas cadeiras de metal com três assentos cada uma, completamente obsoletas, banhadas a inox, enferrujadas, e uma parede com uma abertura vidrada em espécie de aquário, exemplo de um estúdio de gravação, onde se podia ver uma pequena sala de lanches dos agentes com alguns cacifos, torradeira, uma pequena máquina de café, um micro-ondas e uma secretária. Eles do lado oposto também podiam observar-me (como uma animal em exposição dentro de uma jaula), e eu via também a movimentação dos guardas durante a noite, e em alguns momentos aproximavam-se do vidro para me verem melhor.

O compartimento não tem janelas, não se é capaz de saber quando é dia ou noite, sem relógio de parede, a desorientação toma conta de quem quer que esteja lá fechado. Tem dois quartos muito pequenos, um quarto com três camas juntas umas das outras por falta de espaço, apenas com colchões de esponja não forradas, algumas camas só têm metade dos colchões e o resto são velhas tábuas por cima de um estrado de metal. Naquele espaço com uma casa de  banho incluída, na qual na tive coragem de entrar. O outro quarto, um pouco maior, tinha cinco camas juntas, também muito sujas, à porta de entrada do quarto estava pendurado um único lençol bastante sujo, tal como o quarto anterior. Ficou-me nitidamente a impressão de que aquela sujidade é permanente, e mantida propositadamente com o objetivo de proporcionar as «boas vindas aos irmão africanos». Quanto à casa de banho deste quarto, não há palavras para a descrever, sem água nas torneiras, e apenas fiz questão de lá entrar para observar, e compreendi o porquê de me terem retirado o telemóvel: era um autêntico filme de terror dentro do aeroporto Nelson Mandela, que curiosamente é limpo e bem cuidado.

Pergunto o porquê daquele espaço. Perturbou-me quando me recordei das histórias do Tarrafal, pensei comigo que podia ser uma réplica da pequena holanda (holandinha), um cubículo feito dentro de uma sala que existia na antiga cadeia do Tarrafal, e a frigideira, que serviam unicamente para torturar os presos). Em nenhum momento fiz as minhas necessidades naquelas casas de banho, rejeitei, e, sempre que pude, pedi para ir a outra casa de banho, e quando abriam a porta cinicamente perguntavam-me se estava tudo bem comigo, e a minha reposta era sempre a mesma. «Naquele lugar imundo e desumano ninguém podia ficar bem».

Dentro daquele espaço dos quartos acabei de fazer a minha observação e saí através de um pequeno corredor, voltei para sala onde tinha o sofá, e lá continuei sentado. Não sabia que horas eram quando vi pela vidraça uma mudança de turno, com novos agentes a aparecerem. Desta feita vários agentes femininos, e pouco depois uma agente veio abrir a porta para saber se eu estava bem. Tornei a responder o que já tinha dito ao outro agente, qualquer coisa como «naquelas condições, e pelo tratamento dado, nenhum ser humano estaria bem, até porque no final das contas eu estava preso, e não livre, como me queriam fazer passar» . No entanto, ela disse com uma certa autoridade que aquilo não era nenhuma cela, as verdadeiras celas eram muito piores, deixando um aviso nas entrelinhas, se eu continuasse a protestar. «Senhora agente, as celas podem ter vários formatos», disse lhe eu, e antes que ela fechasse a porta pedi para ir a casa de banho na zona das chegadas, e ela acedeu. Quando voltei a senhora agente voltou a fechar-me no compartimento. Durante todo o período de desorientação, enquanto estava no referido espaço, andei num vai e vem de uma ponta da sala para outra, como forma de me manter consciente e ao mesmo tempo calmo. A sala tinha pouco menos de seis ou cinco metros de cumprimento, e talvez 4 e meio de largura, dividindo o espaço com os velhos moveis. Havia também uma mesa baixinha, de madeira, onde constavam várias palavras no seu tampo, escritas por quem lá tinha passado como "milagro", «polícia porca» e outras que não vou expor nesta denúncia.

Em nenhuma altura me perguntaram se sofria de qualquer doença, ou, caso necessitasse de alguma ajuda, se poderia contar com eles num atendimento de urgência. Também não forneceram qualquer produto de higiene pessoal.

Fiquei com pés inchados, de lembrar que cheguei à ilha de Santiago por volta das 21 horas, nunca fui convidado a sentar-me enquanto tratavam do processo, até eu entrar na maldita sala por volta da 01:20  da madrugada, tomando como referência a hora em que fiz a chamada para um familiar às 00:47.

No outro dia de manhã a agente-chefe que ficou de serviço, e que já me tinha aberto a porta, abriu-a novamente para entrar um indivíduo da TACV que me trouxe novamente sandes, e reparou que eu não tinha comido a anterior que o seu colega tinha trazido. Desculpou-se e disse me que às 14 horas eu me ia embora. Portanto, não comi as sandes, apenas bebi o sumo e água até à hora que me foram abrir a porta novamente, penso que teria sido por volta das 14 horas e qualquer coisa, mas desta vez era para ser levado até ao avião escoltado pela mesma agente até a pista, e posteriormente acompanhado de uma funcionária do aeroporto até ao avião.

No total, terei permanecido 13 horas isolado naquela sala, sem mais ninguém, durante a noite abriram a porta para saberem se estava tudo bem, não posso precisar quantas vezes e em que horas isto  aconteceu. A única certeza é que estive sempre acordado. Da mesma forma que não permitiram que eu realizasse a minha higiene pessoal, partindo assim para Lisboa.

Tomei conhecimento através da comunicação social de casos semelhantes ocorridos no referido espaço do aeroporto da cidade da Praia, pelo que são recorrentes. As denúncias de maus tratos a cidadãos oriundos de vários países do continente, por parte da polícia de imigração no aeroporto Nélson Mandela, é do conhecimento geral da população da Praia.

Quem me conhece sabe do respeito e do sentido de irmandade que tenho para  com o povo de Cabo Verde, não só por ter um filho cabo-verdiano, mas por acreditar num sentimento de justiça que deve abranger todo o ser humano independentemente da sua origem, raça ou religião: todos nós temos o direito de sermos respeitados..

Angola é o meu país, onde os estrangeiros são recebidos de braços abertos, e em especial os cabo-verdianos, com quem sempre fomos solidários, tanto em Cabo Verde como em Angola. Um lapso em não verificar a caducidade do passaporte, não pode ser tido como oportunidade para maltratar e humilhar as pessoas. Exijo um pedido público de desculpas das autoridades cabo-verdianas, e o desmantelamento da sala dos horrores do aeroporto Nélson Mandela na cidade da Praia como "sala de espera".

Regressei a Lisboa na quarta feira dia 17, às 21 horas.

CHALO CORREIA (Músico e compositor angolano, pai de um cidadão cabo-verdiano).

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Comentários

  • Manuel Silva, 25 de Jul de 2024

    Em todos os aeroportos do mundo existem salas para pessoas que sao recusadas a entrada, a falha se existe, foi em Angola, e do senhor, e nao pense que em Angola pessoas tem melhor tratamento que em Cabo Verde, porque isso nao é verdade...se a sala existe é para pessoas nao é por ser musico que tem que ter um tratamento especial