A Autofagia na Diplomacia Cabo-verdiana*
Ponto de Vista

A Autofagia na Diplomacia Cabo-verdiana*

Devemos estar cientes que o Ministério não pensa. E como quem pensa por ele é um contingente de seres humanos que, estatisticamente - no limbo do desconhecido - mal pode ser expresso por um único ponto percentual, essa doutrina irracional corporativista come seus próprios pés e já vai avançando em direção às pernas em um processo que terminará por consumir até a cabeça, em autofagia! Em nome de um corporativismo fragilizado perante embaixadores políticos, mas feroz para com os técnicos do MNE especializados em diplomacia, os diplomas saem do forno diplomático cozinhados para as conveniências do momento. Essa voracidade emperra qualquer progresso significativo, evolutivo e de motivação institucional, levando a situação ao limite. Não pode continuar assim.

A autofagia é um processo de regeneração natural que ocorre a nível celular no corpo, reduzindo a probabilidade do surgimento de algumas doenças, além de aumentar a longevidade. Parece simpático, mas será aconselhável? Sobreviver devorando-se por dentro, nos parece ser um processo de autodestruição, pouco aconselhável.

Meu domínio da medicina é praticamente nulo e as habituais descobertas nessa área, bem como as recentes notícias a respeito de novas técnicas de emagrecimento, em especial, competem com as fantasias milagrosas da Igreja Universal para me deixar num estado de indiferença próximo da melancolia. Mas, mesmo assim, perante os efeitos de certas descobertas e inovações em diplomacia, vale a pena refletir; vale a pena pesquisar e investigar um pouco, para ao menos encontrarmos soluções paliativas futuras a determinadas moléstias!

Esta recente descoberta nipónica, de 2016 (do cientista japonês Yoshinori Ohsumi, Prêmio Nobel de Medicina) sobre os mecanismos da autofagia, levaram a uma melhor compreensão de doenças como parkinson e a demência, alertando-nos para a insensatez institucional e corporativista que podem fragilizar, como um todo, as nossas instituições de soberania, quando se desvalorizam quadros técnicos de mérito, ao ponto, até, de serem subalternizados por quadros de outros sectores da Administração Pública cabo-verdiana, como ditou o Decreto-lei nº 9/2016, de 12 de fevereiro, no nº 2, do seu artigo 9º, “…requisitar técnicos de outros sectores da Administração Pública cabo-verdiana para os Serviços Externos”, em detrimento dos próprios técnicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)!

A esta “caboverdura” se associou, em 2020, um Estatuto da Carreira Diplomática restritivo em relação à carreira técnica no MNEC, mas aberto a terceiros e quejandos; o absurdo surgiu agora com a aprovação da nova Orgânica do MNECIR (de 05 de Outubro) ao consagrar no nº 2, do seu artigo 11º, relativo à DNAPEX, este fabuloso dispositivo: “…A DNAPEX é integrada por pessoas de entre o pessoal diplomático ou, EXCEPCIONALMENTE, em função das necessidades que o justifiquem, por pessoal técnico afeto ao Ministério.” Ser um técnico “EXCEPCIONALMENTE” num departamento, significa um corpo estranho e algo descartável…! Como é possível que um técnico especializado em diplomacia, com 20 ou 30 anos de vínculo administrativo com o MNE, ser constantemente desprezado pelo seu próprio Ministério, a favor até de técnicos externos recrutados, ad hoc, num outro departamento governamental qualquer (inclusive do Parlamento ou das autarquias locais!!!). Nesta mesmíssima linha, o artigo 22º da nova Orgânica determina que cada estrutura orgânica da DGAJT “…é dirigida por um Diretor de Serviço, provido de entre diplomatas de carreira, com formação superior em Direito, podendo a escolha recair sobre pessoa estranha ao serviço com igual formação.” E o técnico do MNE, onde fica? Marginalizado? O que poderá estar por detrás disso?

Vale realçar que a Carreira Técnica no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) foi e é, para todos os efeitos, uma carreira especializada em Diplomacia; A tarefa diplomática é de tal forma indistinta que a distribuição dos dossiers sobre os assuntos diplomáticos é feita da mesma forma entre os diplomatas e os técnicos;

Existem já precedentes e jurisprudência nesta matéria de transição de técnicos (alguns até de fora do MNE) para a carreira diplomática, por simples Despacho do Ministro, o que pressupõe poderes discricionários, ou quem sabe, arbitrariedades que podem por em causa a motivação e dedicação dos técnicos deste Ministério;

A valorização desta carreira no MNE é determinante para o desenvolvimento do país, mormente a diplomacia económica, quando o percurso e evolução na carreira é contrariada por medidas legislativas diversas;

O MNE possui um leque de técnicos superiores com formação académica dos mais elevados graus, desde a licenciatura, passando pelo mestrado e doutoramento, que não deve ser desperdiçado; por outro lado, alguns destes técnicos superiores assumiram já neste país, cargos de Ministros, Presidentes de CM’s, Deputados, bem como os de Altos Dirigentes Públicos;

Então, por estas e outras razões é revoltante registar esta caminhada degradante para todo o corpo técnico e diplomático do MNE, porque se existe uma união corporativa dos diplomatas contra os técnicos, então que essa união seja abrangente, desde o fenómeno dos embaixadores políticos ao recrutamento de conveniências na administração pública.

Devemos estar cientes que o Ministério não pensa. E como quem pensa por ele é um contingente de seres humanos que, estatisticamente - no limbo do desconhecido - mal pode ser expresso por um único ponto percentual, essa doutrina irracional corporativista come seus próprios pés e já vai avançando em direção às pernas em um processo que terminará por consumir até a cabeça, em autofagia!

Em nome de um corporativismo fragilizado perante embaixadores políticos, mas feroz para com os técnicos do MNE especializados em diplomacia, os diplomas saem do forno diplomático cozinhados para as conveniências do momento.  Essa voracidade emperra qualquer progresso significativo, evolutivo e de motivação institucional, levando a situação ao limite. Não pode continuar assim.

Rogamos a Deus para que este espetáculo corporativista não venha a terminar num misto de “canibalismo” e autofagia diplomática, porque, por enquanto, uma palavra só: INDIGNAÇÃO!

 Livio Lopes – Técnico Especialista em Diplomacia

* Texto publicado pelo autor no facebook

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