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Caso Amadeu. “O STJ deveria declarar-se impedido. É a parte ofendida, o Supremo, que o está a julgar”, reclama José António dos Reis
Política

Caso Amadeu. “O STJ deveria declarar-se impedido. É a parte ofendida, o Supremo, que o está a julgar”, reclama José António dos Reis

Antigo governante e analista político se apoia no Contrato Social para, outra vez, derrubar a tese judicial que mantém Amadeu Oliveira preso e à mercê da consciência dos juízes do Supremo Tribunal da Justiça, com os quais o advogado santantonense tem litígio – 14 processos-crime –  por denunciar suas alegadas fraudes e posturas inadequadas para qualquer magistrado. Para José António dos Reis “a pressa foi tanta que se foi buscar um crime bombástico para o imputar”, para logo observar que “a parte ofendida, e que no caso também tem a incumbência de julgar (STJ), deveria declarar-se impedida”. O seu último artigo (11 de janeiro) no Expresso das Ilhas elucida parte destas questões e publicamos o excerto que interessa aqui, no final da entrevista.

Santiago Magazine - No seu mais recente artigo de opinião do Expresso das Ilhas (11 de Janeiro), a dado passo escreve que "A democracia e o Estado de Direito não rimam com a existência de instâncias judiciais que se julgam acima da lei e da constituição, quando proferem sentenças manifestamente inconsistentes, incoerentes, contraditórias, eivadas de preconceitos e de reservas mentais". Estaria a pensar no caso Amadeu Oliveira?

José António dos Reis - Claro que me refiro ao caso Amadeu de Oliveira, mas também estava a pensar naquela sentença, que surpreendeu meio mundo, proferida contra o cidadão, Amaro da Luz. Felizmente, neste último caso, o Supremo Tribunal decidiu repor a normalidade.

Na clínica quando constatamos que na relação com um paciente a nossa contratransferência incorpora elementos hostis e antipáticos por ausência de qualquer empatia com o paciente, fazemos o óbvio: transferimos ou encaminhamos o paciente para um outro colega.

O juiz como ser humano que é, não está imune a esses sentimentos e impulsos hostis em relação a um arguido, sobretudo se não for guiado na sua decisão pela dimensão ética, pode cometer barbaridade.

Em Cabo Verde, deveria desenvolver-se uma experiência semelhante ao que se fez na Bélgica. O Ministro da Justiça desse país anunciou uma medida de humanização da justiça que colheu a adesão voluntária dos magistrados. A medida consistia em colocar os magistrados na prisão durante dois dias para vivenciarem e aprenderem in loco o que é estar privado da liberdade.

55 magistrados (juízes criminais, juízes de instrução, procuradores) submeteram-se voluntariamente à prisão durante dois dias sob um regime e regras iguais aos de qualquer recluso. Não podiam usar os telemóveis, seguiam o horário diário normal dos detidos, comiam as mesmas refeições, faziam, entre outras tarefas, serviço de empregados na cozinha e de lavandaria e cumpriam o horário de dormir. Podiam, entretanto, receber visitas de familiares, tal como os verdadeiros detidos.

E qual era o objetivo dessa ação? Exatamente oferecer aos magistrados que ditam as condenações à prisão, a oportunidade de experimentar o que significa a privação de liberdade. Acho que muitos entre nós que têm um impulso ou “prazer enorme” em privar cidadãos da sua liberdade, deveria passar por essa pedagógica experiência.

- Quando observa que "convinha que os protagonistas da democracia não confiassem, de todo, na paciência ilimitada, melhor, inesgotável dos cidadãos" estaria a cogitar uma eventual revolução

- Trata-se de um alerta. Às vezes pensamos que o mal só acontece na casa dos outros. O acumular de frustrações e a ausência de atitudes que demonstrem preocupações com os problemas dos cidadãos podem conduzir a escolhas de soluções não democráticas. É preciso que os atores políticos estejam cientes dissoA política existe, não como um jogo de diversão ou como um exercício de teatralização, mas como instrumento de formação da vontade popular que nos permite viver na sociedade de forma organizada, por um lado, e de gerir e resolver os problemas da coletividade, por outro. A gestão adequada das expetativas e aspirações da comunidade devem estar sempre presente no pensamento e na ação dos atores políticos, quer estejam na situação ou na oposição, tendo em conta que o sistema de governação integra essas duas dimensões.

Ademais, é preciso aferir, de forma contínua, o grau de satisfação dos cidadãos com a própria democracia. Uma democracia que tem um score de 77% dos cidadãos pouco ou nada insatisfeitos com ela, precisa olhar-se no espelho ou fazer, no mínimo, uma autoanálise.

 

- O que poderá suceder com Amadeu Oliveira, ou seja, como deverá posicionar o Supremo Tribunal em relação ao seu processo?

-  O que poderá acontecer a Amadeu de Oliveira, tenho de confessar que não sei. O que se espera é que a justiça, que é feita em nome do povo, saiba honrar e dignificar esse ditame constitucional, quando invocar esse poder delegado da fonte de qualquer poder numa república democrática: a justiça é feita em nome do povo, e o povo não é uma abstração e nem deve ser entendido, apenas, como um preceito meramente figurativo.

O que se espera é que o Supremo Tribunal de Justiça, como garante da justiça, dos direitos, liberdade e garantias dos cidadãos, cumpra, respeite e faça cumprir o espírito e a letra da lei, e faça prevalecer o primado da Constituição da República.

 

- Parece haver alguma incompatibilidade ética dos juízes do STJ no julgamento de Amadeu, na medida em que eles são visados em muitas das denúncias públicas feitas pelo advogado...

- Este caso é um pouco singular. Os crimes, que o arguido é acusado, têm relação com o seu comportamento face à justiça, aos tribunais e aos juízes. A parte ofendida no processo é que o está a julgar.

Em condições normais, a parte ofendida, e que no caso também tem a incumbência de julgar, deveria declarar-se impedida: porque nesta matéria exige-se que “a mulher de César para além de ser séria, tem, sobretudo, de parecer séria”.

No entanto, há que ter presente, que não existe previsão legal para gerir este caso singular. Motivo para se refletir e quem de direito tentar identificar soluções que sirvam para o futuro, para se poder lidar com situações semelhantes, em nome da transparência e da imparcialidade.

Embora queira acreditar que a justiça quererá superar essa condição, e que os princípios que enformam à sua realização, não ficarão arrecadados quando ela for chamada para apreciar e decidir sobre o caso.

 

-  Se o STJ não o pode julgar, o que fazer ? A que instância e de aonde recorrer?

Este problema não se colocará. Terá de ser o Supremo Tribunal de Justiça a se pronunciar, como já se pronunciou em outros momentos neste mesmo processo.

 

- Todo o processo, em si, que levou à sua detenção, esteve rodeado de ilegalidades. Como confiar na justiça?

Trata-se de um processo incomum, com uma excessiva mediatização, e que sobretudo foi tratado com alguma superficialidade, senão ligeireza. O grande erro deste processo prende-se com o fato de o arguido ser deputado. Nesse sentido, por ter feito o que fez, havia que puni-lo de forma exemplar.

No entanto, a meu ver, sob pressão e clamor social, precipitou-se em tomar medidas e empreender ações, sem que tivesse havido preocupação em estudar aprofundadamente as soluções que respeitassem a legalidade, o Estado de Direito e a Constituição. Parece que a pressa foi tanta que se foi buscar um crime bombástico para o imputar, e depois disso, se foi procurar aqui acolá “pedaços de muitas coisas”, como se se estivesse a encher um chouriço, para caraterizar o crime de responsabilidade.

Só que a Constituição da República define os crimes de responsabilidade, limitando-os aos crimes cometidos por titulares de cargos políticos por atos ou omissões no exercício de funções ou por causa delas.

E era preciso encontrar uma relação lógica entre o ato praticado pelo deputado e as funções que decorrem da sua condição de deputado. E isso, nunca foi demonstrado.

As funções de deputado (traduzidos em poderes e deveres) estão previstos nos artigos 168º e 169º da Constituição da República que para além de tipificar os poderes e deveres, remete para o Regimento da Assembleia Nacional e para o Estatuto dos Deputados, a consagração dos demais poderes e deveres.

Não pode haver outros poderes ou deveres para além da que a Constituição definiu, e soberanamente indicou quais eram as outras leis onde deveriam constar os demais poderes e deveres dos deputados.

Um outro grave erro e ilegalidade cometido, foi o que ocorreu no parlamento. A Comissão Permanente da Assembleia Nacional tomou conhecimento e decidiu sobre uma matéria, num momento em que não dispunha de legitimidade para tal, porque cabia ao Plenário da Assembleia Nacional autorizar o pedido de detenção do deputado.

Neste ponto, dá-se uma violação flagrante do preceituado no nº 1 do artigo 148º da Constituição, e se for devidamente seguido o que está estipulado no nº 3 do artigo 3º da Constituição, o ato praticado deve ser considerado inválido, com todas as consequências que daí possam advir.

 

- Nos últimos tempos tem-se dedicado a um estudo aprofundado das leis para tentar entender o processo Amadeu Oliveira. Porquê? O que o motiva?

- Tenho uma certa propensão para o autodidatismo. Estudo vários assuntos, em particular matérias que têm a ver com ciências sociais e humanas, para que possa melhor exercer a minha cidadania. Neste caso, defendo o Estado de Direito e a Justiça, e sobretudo o respeito que todos devemos ter pela Constituição da República, o maior ativo de Cabo Verde Democrático e um dos instrumentos basilares do nosso CONTRATO SOCIAL, enquanto comunidade de destino.

 

NDR

Eis o excerto do artigo de José António dos Reis, publicado no Expresso das Ilhas ("As promessas de 13 de Janeiro estão a ser cumpridas?"), que bule com o sistema, tendo Amadeu Oliveira como pano de fundo da sua contestação:

"A democracia e o Estado de Direito não se compaginam com o desrespeito pelas leis e pela Constituição da República, sobretudo quando a violação das leis é praticada pelas instituições que têm responsabilidades em velar pelo cumprimento da legalidade e de impor respeito e observância pelas liberdades e garantias dos cidadãos;

A democracia e o Estado de Direito não rimam com a existência de instâncias judiciais que se julgam acima da lei e da constituição, quando proferem sentenças manifestamente inconsistentes, incoerentes, contraditórias, eivadas de preconceitos e de reservas mentais;

A democracia e o estado de direito verdadeiros e efetivos não consentem que um deputado seja detido e metido na prisão, através de uma autorização concedida por uma órgão(?) sem legitimidade para decidir naquele espaço temporal, em flagrante violação do nº 1 do artigo 148º, sem que nenhuma instituição, sobretudo aquelas criadas para garantir os direitos e garantias dos cidadãos e a legalidade democrática, tenham movido uma “palha” para que se cumpra a lei e se respeite as regras do estado de direito.

Vivemos, infelizmente, tempos difíceis e complicados em matéria de democracia e estado de direito em Cabo Verde.

Espera-se que perante esta violação grosseira da Constituição da República um ente com coragem nesta república acione e faça útil esse preceito constitucional, segundo o qual “As leis e os demais atos do Estado, do poder local e dos entes públicos em geral só serão válidos se forem conformes com a Cons­tituição” (nº 3 do artigo 3º da CRCV), e se restaure a legalidade e o respeito devido à Lei Suprema.

Não há democracia e estado de direito que aguentem tantos atentados à sua existência e ao seu fortalecimento, sendo, pois, impossível resistir a tantos e diferenciados atropelos.

E uma chamada de atenção e um alerta se impõem à nossa República: é preciso ter e dar mais atenção ao povo que elege, que trabalha, que paga impostos, que acredita num futuro melhor. Caso contrario, e a persistir-se nessa direção eivada pela indiferença, poderemos mais cedo do que tarde, vir a ter problemas, e os exemplos abundam por esse mundo fora. Importa salientar que não se trata aqui de dramatizar ou de prognosticar alguma “hecatombe”: o que se pretende sublinhar é que convinha que os protagonistas da democracia não confiassem, de todo, na paciência ilimitada, melhor, inesgotável dos cidadãos.

No seu livro “O Povo Contra a Democracia”, Yascha Mounk escreve que a “desilusão do cidadão com a política é coisa antiga; hoje em dia, ele está cada vez mais inquieto, raivoso, até desdenhoso. Faz tempo que os sistemas partidários parecem paralisados; hoje, o populismo autoritário cresce no mundo todo, da América à Europa e da Ásia à Austrália.

Não é de hoje que os eleitores repudiam esse ou aquele partido, político ou governo; agora, muitos deles parecem estar fartos da democracia liberal em si”.

É isso! A medida que a política e os políticos se afastam dos cidadãos comuns, o povo se julga não estar mais representado, nem identificado com aqueles que supostamente o representariam. E o divorcio não ocorre de forma imediata, mas as relações vão se corroendo, e quando menos se espera a rutura já aconteceu".

 

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine