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Deslealdade institucional e deriva antidemocrática
Editorial

Deslealdade institucional e deriva antidemocrática

Não pondo em dúvida que o presidente terá agido de boa fé, a verdade é que, tratando-se ele de uma figura com grande experiência política (o mesmo se aplicando ao chefe da Casa Civil da Presidência da República), há setores defendendo que, nesta matéria, manifestou uma grande ingenuidade, colocando-se vulnerável à urdidura cirurgicamente montada. Mas, analisando por outro ângulo, é natural que assim tenha agido. Afinal, tratava-se do primeiro ministro e do ministro das Finanças, quem de boa fé poderia pôr em causa a integridade de dois eminentes membros do governo? Por outro lado, importa um questionamento óbvio: durante os dois anos em que ocorreram os pagamentos à primeira-dama, o Tribunal de Contas estava a dormir ou desertou da sua obrigação constitucional de fiscalização das contas públicas? E, de igual modo, ninguém do Tesouro reparou que os pagamentos eram ilegais, nunca se pediram esclarecimentos, pagou-se e ponto final?!

Da comunicação ao país do presidente da República, na última sexta-feira, 23, à partida, ficou claro o que já havíamos avançado em dois editoriais: Ulisses Correia e Silva e Olavo Correia, desde a primeira hora, tiveram conhecimento e anuíram ao pagamento de compensações financeiras à primeira-dama.

Mais, estamos em condições de avançar que a dupla primeiro-ministro/ministro das Finanças assumiu compromissos no sentido de se avançar nas alterações do quadro legal, nomeadamente, no que respeita à aprovação de uma nova Lei Orgânica da Presidência da República, onde o estatuto da primeira-dama fosse redefinido.

No entanto, a dupla engavetou a proposta de nova Lei Orgânica, não cumprindo com os compromissos verbais assumidos, manifestando a mais absoluta deslealdade institucional e inquinando as relações entre o governo e o presidente da República.

Por outro lado, se foi orçamentada e aprovada pelo Parlamento a verba destinada à primeira-dama, embora não estivesse especificada - como também não estão especificados os gastos com os gabinetes do primeiro-ministro e do ministro das Finanças -, esse facto, por si só, torna praticamente legal o ato.

No entanto, Ulisses e Olavo deixaram fluir um “pagamento ilegal”, para verterem o “escândalo”, através dos seus agentes e avençados, ao fim de dois anos. Com que intenção e objetivos políticos?

As agendas pessoais de Ulisses e de Olavo

A ambição de Ulisses Correia e Silva é ser presidente da República, querendo já avançar em 2026. Para isso, precisava que o atual inquilino do Palácio do Plateau estivesse fragilizado, não tentando a renovação do mandato, ou mesmo renunciando no decurso de um “grande escândalo”.

O objetivo foi delineado ao pormenor e Ulisses escolheu mesmo o seu sucessor, à frente do partido e do governo, por tal nomeou Olavo vice-primeiro-ministro.

Azar dos azares, as contas saíram furadas à dupla, foi descoberta a urdidura e os estudos de opinião mais recentes colocam o atual presidente da República numa posição confortável em termos de aceitação pública, apesar do “escândalo” e da campanha vil promovida nas redes sociais, inclusive por deputados que envergonham o seu estatuto. Foi o tocar a reunir para os ataques mais abjetos à pessoa do presidente e, principalmente, à primeira-dama, com ofensas misóginas, mentiras e narrativas de baixo calão. Onde falta cultura republicana e democrática, falta também a educação cívica!

Presidente assumiu responsabilidades e saiu por cima

Ao assumir as suas responsabilidades, nomeadamente, reconhecendo que houve falhas da Presidência da República, alegando que não deveria ser assim e garantindo que não voltará a ser assim, mas, também, ao anunciar que os valores em causa foram devolvidos, José Maria Neves saiu por cima na apreciação da opinião pública e cravou o ónus da deslealdade institucional em Ulisses e Olavo que, estranhamente, se mantêm em silêncio, o que é revelador.

Descontando o facto de a reação do presidente ter sido tardia, perdendo-se a oportunidade de um esclarecimento atempado que poderia ter obstado, em parte, à campanha de descredibilização da instituição Presidência da República, a verdade é que José Maria Neves apresentou uma imagem de humildade ao reconhecer o erro e passou para a opinião pública a ideia de que sempre agiu de boa fé.

Por onde andava a fiscalização das contas públicas?

Não pondo em dúvida que o presidente terá agido de boa fé, a verdade é que, tratando-se ele de uma figura com grande experiência política (o mesmo se aplicando ao chefe da Casa Civil da Presidência da República), há setores defendendo que, nesta matéria, manifestou uma grande ingenuidade, colocando-se vulnerável à urdidura cirurgicamente montada. Mas, analisando por outro ângulo, é natural que assim tenha agido. Afinal, tratava-se do primeiro ministro e do ministro das Finanças, quem de boa fé poderia pôr em causa a integridade de dois eminentes membros do governo?

Por outro lado, importa um questionamento óbvio: durante os dois anos em que ocorreram os pagamentos à primeira-dama, o Tribunal de Contas estava a dormir ou desertou da sua obrigação constitucional de fiscalização das contas públicas? E, de igual modo, ninguém do Tesouro reparou que os pagamentos eram ilegais, nunca se pediram esclarecimentos, pagou-se e ponto final?!

Manobras de diversão

Uma das bandeiras dos detratores do presidente da República é a narrativa de que não existe, no ordenamento jurídico cabo-verdiano, a figura de primeira-dama. Não se tratando de uma mentira, a verdade é que há expressões, denominações ou adjetivações que, de muito serem proferidas, entram no domínio público, sendo adotadas pela comunicação social e, até mesmo, por políticos e instituições. Por exemplo, toda a gente sabe que não há candidatos a primeiro-ministro, mas sim candidatos a deputados, e até os próprios pretendentes ao cargo assimilaram há muito a denominação.

De todo o modo, a Lei Orgânica da Presidência da República, em vigor, determina que ao cônjuge do presidente é garantido gabinete, apoio de staff, segurança e viatura oficial. Ora, não haverá aqui uma flagrante contradição? Por um lado, não se reconhece a figura jurídica da primeira-dama; por outro, são-lhe colocados à disposição recursos do Estado?! E por qual razão não lhe está contemplada uma remuneração mensal?

Aliás, a este propósito, os mesmos que caíram em cima da Presidência da República por ter canalizado uma remuneração para a primeira-dama, são os mesmo que, agora que a cidadã Débora Katisa Carvalho assumiu funções numa empresa privada, vêm sugerir que isso será incompatível com a situação de cônjuge, de facto, do presidente da República. Que grande hipocrisia!

Por outro lado, faz-se circular pela Internet a ideia retrógrada de que não se tratando de um casamento formal, civil ou religioso, Débora Carvalho não pode ser considerada cônjuge do presidente da República.

Para além de se tratar de um insulto aos largos milhares de cidadãs e cidadãos cabo-verdianos (presumimos que a maioria) que partilham as suas vidas sem um vínculo formal, revela uma profunda ignorância sobre a legislação cabo-verdiana. Será que essa gente nunca ouviu falar em uniões de facto?

Perigos para a liberdade e democracia

Paralelamente, intensificam-se atos persecutórios, tentativas de assassinato de caráter, proliferação de fake news e atentados contra a honra e a boa imagem de pessoas que pensam diferente, mesmo de pessoas da própria área política do MPD, mas que divergem do governo e da direção partidária pontualmente.

Desde logo, trata-se de uma grande imbecilidade política e de uma manifestação autoritária sem precedentes na nossa democracia. Imbecilidade porque, como é bom de se ver, ao governo interessaria atrair críticos e independentes e não reduzir a sua base de apoio; autoritarismo porque os factos evidenciam que o governo e o partido que o sustenta pretendem instalar o pensamento único, numa lógica de regime musculado com uma áurea democrática formal, e perpetuarem-se no poder.

A consciência cidadã, democrática e republicana tem de estar muito atenta!

A direção,

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Comentários

  • Casimiro Centeio, 26 de Ago de 2024

    Uma análise profunda e de qualidade!
    Refere-se a uma miserável hipocrisia tida em torno de toda essas "urdidura ".
    O tiro, afinal, saiu aos amadores pela culatra, atingindo-lhes os próprios fundilhos !!!!!!!?