Pátria soletrada à vista do harmatão. [Praia-fogo: entre nuvens e sustos e a péssima poesia que empesta os altos ares]
Cultura

Pátria soletrada à vista do harmatão. [Praia-fogo: entre nuvens e sustos e a péssima poesia que empesta os altos ares]

Levantam a voz, mas é uma fanfarrada pífia, só para se fazerem notados, nunca se aproximando da verdadeira vociferação. Nem engenho nem audácia, uma poesia que não busca a vereda estreita da divergência e do atrito, mas a estrada larga do embandeiramento e da autoexplanação para os convenientes fins promocionais na arena social. Falta a essa poesia em particular, e à poesia cabo-verdiana em geral, esse tom de ressentimento sulfuroso capaz de pôr a milhas essa pandilha aldrabona propositora de escórias líricas, em que nem sequer os exauridos modelos de cordialidade poética constituiriam seguro contra o tom escandaloso que invectivasse a sua fingida pacatez, sempre convenientemente neutral.

Antes de o avião levantar voo para o Fogo pego numa revista da transportadora aérea e, por desfastio, ponho-me a folheá-la. Detenho-me na entrevista duma novel autora, a pretexto de um livro de poemas supostamente eróticos, que acabara de percorrer.

Arre, versalhada que se quer transgressora, num requebro deliquescente, num amontoado de batidos lugares-comuns, sem o ímpeto ou a mordedura que faz disparar os mais fundos alarmes do corpo. Sequer certa nascente promessa verbal consegue ali segurar-se, porque faltam leituras, falta competência linguística, domínio dos mecanismos tropológicos. Tudo ali é costura à vista, txapa-txapa duma ideia pimba do erótico, dedada de cinza complacente a clamar-se lume do pecado. Lessem Sharon Olds (Fala, Satanás), ou, nessa língua ainda nossa, a Luiza Neto Jorge.

Qual é o critério dessa gente ligada à academia que vem chancelando inanidades tais? Será que da verdadeira poesia pouco ou nada entendem, como sempre intuímos? Requebros de salão numa encenação patética, trôpegos andamentos duma música que se quer vadia ou irreverente, mas que são débeis sons saídos de cordas frouxas e desafinadas, num molde em que se fundem floreados inócuos, dedilhados por dedos lânguidos, sem o lume de ferir, embora fascinados na sua suposta ousadia e irreverência. Dai-lhes, senhor, a tusa de cada dia, a polpa endurecida com que amparar as desabridas pancadas do mundo, no irreversível da nossa claudicante condição.

Submetida a um inenarrável regime geral de desmiolamento, a poesia estribada no género (mal servindo ou defraudando a ambos num cálculo macaco e perverso) tem-nos oferecido, numa estridência comicieira, um ranço titilante, sem a mais vaga noção do que desorbita a razão ou faz fervilhar a imaginação. Dana-se o fervor primitivo nos estertores duma versalhada chilra. E nenhuma estrela ou treva, vara ou tara para nos riscar de novo os libidinosos labirintos, tão para sempre sabidos.

Mas qual o incentivo para a perseguição duma poética arrojada técnica ou sensorialmente, com consistência oficinal, quando veem uma façanhuda nulidade literária como a Vera Duarte, essa desembrulhadora de inanidades boçais e escandalosamente risíveis (e que algumas tomam como modelo triunfalista de género), trepar todas as escadas da visibilidade social e mediática, estribada num amontoado de páginas penosas, e cujo grau de pregnância é a da cinza que nunca chegou a ser brasa? Aliás, de há uns tempos a esta parte, a literatura cabo-verdiana tem sido tomada por uma rataria infecta (sem género ou sexo particular), que apetece dizer com Antonin Artaud: «com essa gente e o seu público já não há lugar para outra linguagem, senão a da bomba e da metralha».

Levantam a voz, mas é uma fanfarrada pífia, só para se fazerem notados, nunca se aproximando da verdadeira vociferação. Nem engenho nem audácia, uma poesia que não busca a vereda estreita da divergência e do atrito, mas a estrada larga do embandeiramento e da autoexplanação para os convenientes fins promocionais na arena social.

Falta a essa poesia em particular, e à poesia cabo-verdiana em geral, esse tom de ressentimento sulfuroso capaz de pôr a milhas essa pandilha aldrabona propositora de escórias líricas, em que nem sequer os exauridos modelos de cordialidade poética constituiriam seguro contra o tom escandaloso que invectivasse a sua fingida pacatez, sempre convenientemente neutral.

Eleger valores socialmente válidos não pode camuflar uma gritaria desequilibrada, em que não há firme intimação dos elementos que fazem do poema um compósito sólido, ainda que de arestas perigosamente afiadas. Não há espessura, nem esse simples pressentimento de rugosidade que nos faz arrepiar diante do informulável.

Nunca, nesse regime lírico-vociferante (noutros tempos chamei-lhe épico-cavalgante) o texto chega a ser essa alta contrafação que os poetas são chamados a praticar, impondo através da fissura do real uma nova e violenta respiração às coisas «obrigando a língua a dizer o que jaz nos monturos do mundo, ou pisos abaixo da tagarelice de um tempo dissolvente de quanto tem o pé na mais alta ou secreta solidão».

Levantada a vista para o lá fora, reparo nas nuvens que agora dançam sombriamente. Então esses ares altos são o novelo que sufraga o meu refúgio nas selvas interiores, com os gritos dos seus padecentes habitantes e o eterno silêncio das divindades invocadas.

Deixara-me levar por essas ferinas cogitações (talvez estivesse aziado e a leitura da revista fora apenas o pretexto para disparar para onde eu queria) quando um tumulto sacode o avião, e, num assomo de pavor e alívio, dou por que nos aproximamos do Fogo, onde os ventos refluindo nas encostas do vulcão, cruzando-se depois a baixa altitude, fazem sacudir a caranguejola voadora como da primeira vez que visitara a ilha. Em demorados minutos de ansiedade o avião trepida, estremece, dá pulos bruscos perdendo altitude, e eu seguro na mão da que segue ao meu lado, enquanto uma freira risonha galhofa alheada, e um infante prossegue nas suas tropelias e audácias em que se empenhara desde a saída da cidade da Praia.

Benditos os que creem ou são inocentes, pois não andam nos céus da realidade, mesmo quando uma conturbada aproximação ameaça acabar no mar, de que eu fugira previdentemente, pois não me atrevo a colocar as tripas à prova desse mar de Alcatraz que agora ameaça acolher-me, e do modo mais imprevisto.

É com festejado silêncio de alívio que o ATR se despenha, literalmente, na pista, quase na vertical, e um som fundo de reversão impregna-me o espírito duma inusitada, embora descolorida alegria.

À noite embriagar-me-ei diante da baía insone, com a massa negra da ilha em frente avultando na escuridão ponteada pelos faróis dos carros que descem de Santa Bárbara a Furna, esgrimindo eu que a felicidade pode ser apenas ter os pés em terra firme a escutar o silêncio do mundo numa adormecida cidade, que, contudo, convoca a nossa disposição para a estúrdia, na iridescência de um luar bordando ainda o palimpsesto da nossa angústia.

Salve, S. Filipe, depois da tormentosa travessia, que é, por vezes, o melhor fermento para a safra da serenidade, no desamparo duma arte que se quis epítome de quanto nos acolhe na periferia do abandono e realça a nossa condição de povo, contra a perpetuação de todos os opróbrios.

Em verdade, todas as dores escutamos, mas acalmamo-las com o vinho e os cânticos desta terra, depois de arremessarmos longamente a nossa verve contra a mediocridade que não semeia o assombro sobre a cabeça do homem, nem o mune de suficiente lastro para defrontar as peripécias em que é fértil esta vida.

 

 

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