EXTENSÃO DA PEÇA "O DUCO CHEGOU"
Cultura

EXTENSÃO DA PEÇA "O DUCO CHEGOU"

III CENA

Numa Esplanada, Duco e Nhu Seis bebem cerveja.

DUCO – Pois, Nhu Seis, ficaste sem conseguir embarcar!

NHU SEIS – Não consegui. A situação veio a piorar-se… fartei-me de tentar mas não foi possível.

DUCO – Devias ter ido na altura em que eu fui. Não precisavas de visto e a passagem era mais barata.

NHU SEIS – Mesmo assim eu não tinha dinheiro para comprar passagem.

DUCO – Nem eu. Mas dei expediente.

NHU SEIS – Quanto é que custou a tua passagem?

DUCO – Como fui de barco, paguei mil e quinhentos escudos.

NHU SEIS – Como é que conseguiste o dinheiro?

DUCO – O meu sogro vendeu um boi. Se não fosse ele não teria embarcado.

NHU SEIS – Às vezes falamos mal dos sogros, mas o teu foi porreiro contigo.

DUCO – Não tenho mal a dizer dos meus sogros.

NHU SEIS – Como eu não tinha sogro, aliás, até ainda não tenho, pedi dinheiro emprestado ao Sr. Padre Gil, para lhe pagar o dobro, mas o sacana não confiou em mim.

DUCO – Tu não vais à missa! És um pagão!

NHU SEIS – É isso mesmo que ele me diz. Pagão e amancebado.

DUCO – E por cá… como é que está o trabalho?

NHU SEIS – Enxada no ombro todos os santos dias, cavar nas hortas de manhã à noite.

DUCO – Desde que sai daqui, não sei o que é fazer um rego.

NHU SEIS – E lá o que é que fazem? Em quê é que trabalham?

DUCO – Trabalhamos nas obras. Se és Pedreiro, assentas tijolos, rebocas parede, fazes ladrilho, colocas azulejo nas paredes e recebes por metro quadrado que fizeres. Se és Servente, como eu… carregas a massa e os tijolos até que chá virar café. E recebes menos de metade do que recebe um Oficial.

NHU SEIS – Oficial?! Tu estavas lá na tropa?

DUCO – Oficiais são aqueles que não são serventes. Por exemplo: pedreiros, carpinteiros, ferreiros, eletricistas, canalizadores, pintores, cofradores, etc.

NHU SEIS – Dizem que lá faz um frio de rachar.

DUCO – Frio e chuva. Frio que nem consegues segurar naquilo para fazeres xixi. Os dedos não conseguem esticar para desabotoares as calças. Sentes como que te enfiem uma agulha por baixo das unhas.

NHU SEIS – Eu morreria! Já quase não aguento o frio de Assomada!

DUCO – Dá-me notícias de rapazes? Paulito, Carlos, Djucruco, António, Forçudo, Ernesto…

NHU SEIS – Não devem ter sabido que já chegaste. Senão já te teriam procurado.

DUCO – Continuam ainda a jogar em casa da Xia?

NHU SEIS – Não. Agora é em casa da Bia e do Paulito.

DUCO – E como é que Paulito está?

NHU SEIS – Como o deixaste. Conflituoso na mesma. Só que agora ele está um bocadinho mais palhaço. Vende droga, está convencido que é rico.

DUCO – Paulito… convencido de que está rico?!

NHU SEIS – Comprou um Starlet velho e agora anda tão arrogante!

DUCO – Quando é que terás tempo para me acompanhares ao Mosquito de Horta entregar uma carta à esposa de um amigo meu?

NHU SEIS – É só questão de nos combinarmos.

DUCO (mostra-lhe uma fotografia) – É um grande amigo meu. Conhecemo-nos na Cadeia.

NHU SEIS – Na Cadeia?! Tu já foste à cadeia?

DUCO – Já fui, sim.

NHU SEIS – O que é que fizeste?

DUCO – Apanharam-me sem documento e com um charro no bolso.

NHU SEIS – E o teu amigo?

DUCO – Ele trabalhava com um patrão, não lhe pagou e ainda disse-lhe: Vai pra tua terra, preto do caralh… ele não gostou, deu uma navalhada na barriga do branco.

NHU SEIS – Então o branco é que foi para o caralh…?

DUCO – Não. Foi socorrido a tempo. Lá há ambulâncias por todo o lado.

NHU SEIS – Quantos anos de cana ele apanhou?

DUCO – Ele apanhou um ano de cadeia.

NHU SEIS – Soooo!!!

DUCO – Lá, não dão muitos anos de cadeia.

NHU SEIS – Se fosse cá ele apodreceria atrás das grades.

DUCO – Lá não. Lá há justiça. O Juiz tenta perceber bem por que é que as coisas aconteceram. Qual foi o móbil do crime.

NHU SAIS – Aqui não. Aqui, quem não vai para a cadeia, nem por muito tempo, nem por pouco, são aqueles que fazem as leis. Aqueles que estão lá em cima no poleiro, a cantarem músicas que lhes apetecem. E tu, quantos anos apanhaste?

DUCO – Da primeira vez… apanhei três anos.

NHU SEIS – Então quantas vezes já foste?

DUCO – Umas quatro… ou cinco. (Aponta o dedo para a foto) Estes são seus filhos gémeos. O Djoca vive lá com ele e Filipe está cá com a mãe.

NHU SEIS – Como se chama a mulher?

DUCO – Palmira.

NHU SEIS – E o homem?

DUCO – Dos Santos.

NHU SEIS – Onde é que ele mora em Lisboa?

DUCO – Moramos quase juntos. Eu na Damaia e ele na Buraca.

NHU SEIS – Deixa-me ver a foto. (Estuda minuciosamente a fotografia) Conheço esta senhora. Pena é que nestes dias não vou poder ir contigo ao Mosquito. Se não te importes, espere por mim daqui há duas semanas eu vou contigo.

DUCO – Então eu espero. Quando tiveres tempo tu dizes-me. Tenho que lá ir porque o marido dela pediu-me com toda a confiança. E depois, ele é já escaldado uma vez. Mandara encomenda por um amigo e a mulher não chegou a receber.

NHU SEIS – O que é que ele tinha mandado?

DUCO – Uma cama e um colchão molaflex. O macaco assenhoreou da encomenda.

NHU SEIS (levanta-se) – Paga a conta e vamos embora.

DUCO – Pagar a conta?! Eu não estou com dinheiro!

NHU SEIS – Emigrante sem dinheiro?!

DUCO – Eu vim repatriado, rapaz!

NHU SEIS – Não trouxeste dinheiro nem para pagares uma cerveja ao amigo?

DUCO – Saí da Cadeia diretamente para o Aeroporto e do Aeroporto para a ilha do Sal. Do Sal para Praia, o Alcides da Mariazinha é que me emprestou cinco mil paus que paguei o barco e Hiace até a casa.

NHU SEIS – E como é que vais pagar ao Alcides?!

DUCO –A Rabolina já mos deu para lhe vir pagar.

NHU SEIS – E já lhos deste?

DUCO – Ainda não. Vim encontrar-me com ele em Assomada para lhos dar.

NHU SEIS – Então paga a conta com os cinco mil paus e tchau.

Sai e deixa o Duco sozinho.

IV CENA

Com ar de emigrante, Nhu Seis diz à Palmira que o seu nome é Duco.

PALMIRA – O meu marido então pediu-lhe que viesse cá em casa visitar-me e ver como é que estou?!

NHU SEIS (entrega-lhe uma carta) – E deu-me esta carta, pediu-me que lha viesse entregar pessoalmente.

PALMIRA – Xeeh, Nhu Duco! Só Deus lhe pode pagar.

NHU SEIS – O seu marido é um irmão pra mim. Desde que nos conhecemos, nunca mais nos separamos. Todos os fins-de-semana, ou ele vai passar o Sábado à minha casa e eu vou ao Domingo à dele, ou eu vou ao Sábado e ao domingo vai ele passar comigo.

PALMIRA – Ele está bom? De nada se queixa? Nada lhe incomoda?

NHU SEIS – Está gordo, rijo e valente. Apenas se queixa de uma coisa.

PALMIRA (assustada) – Daquele reumatismo que disseram que lhe está a incomodar os joelhos?! Dizem que lá faz tanto frio!

NHU SEIS – Faz muito frio, mas também há bons remédios. E há dinheiro para os comprar.

PALMIRA – Graças a Deus.

NHU SEIS – O que faz-lhe chorar quase todos os dias, é só saudades da senhora Palmira.

Riem-se.

PALMIRA (com a carta na mão) – Senhor Duco, eu não sei ler. Não se importa de ma ler?

NHU SEIS – Eu leio, sim, senhora. (Palmira dá-lhe a carta) Minha querida esposa do meu profundo coração. Antes do mais, desejo que esta duas regra de papel, mal feita, te encontra dreto, junto com Filipe meu filho macho. Este amigo que leva esta carta é sima um irmão pra eu. Ele leva umas encomenda que é pra você vai tirar da Alfândega. Vai um televisão grande e colorido que é pra você vai olhar novela, i Flipe para olhar futubola. Também vai um gelera pra você fazer fresquinha e ficar a beber água gelado. Vai um aparelhage, um gira-disco que toca doze disco, um gravador que leva doze pilhas, dois cama cu colchão de molaflex, um jogo de sofá para você fuliar kes mocho com trupeça velho que você tene tufuliado dentu de sala. Vai ainda um Bicicleta que Djoca mandar Flipe. Podes dar a esse meu amigo o dinheiro que tenes lá na casa para ele vai fazer o despacho. Ele conhece um-monte gente e sabe dar expediente rai de dretu. Não te mando dinheiro desta vez pamode ainda eu não recebi. Vai daqui, mantenha de eu cu de Djoca, para tu cu Filipe que estão lá. E para tudo quenha que purgunta por eu, de riba camba baixo. Do teu marido que está com gana de te olhar, Desanto.

Nhu Seis dobra a carta e devolve-lha.

PALMIRA – Meu Deus!… Todas estas encomendas ele mandou?!

NHU SEIS – E pediu-me, quase de joelhos, para não deixar de vir cá buscá-la e levá-la para ir levantá-las na Alfândega.

PALMIRA – Só podia ser uma pessoa como o senhor, para ele confiar mandar-me todas essas coisas.

NHU SEIS – É verdade! A senhora Palmira se lembra de um cama molaflex que ele tinha mandado e que a senhora não chegou a receber?

PALMIRA – Já vai fazer dois anos. O maltrapilho que o trouxe, nem cheguei a conhecê-lo.

NHU SEIS – Pois, o seu marido contou-me. Ele deu-me o talão do embarque, já fui ter com o rapaz.

PALMIRA – Já o encontrou?!

NHU SEIS – A sua caminha também está na Alfândega, a espera que a vá levantar, juntamente com as outras que lhe trouxe.

PALMIRA – E ainda há criatura que diz que Deus não existe?! Ele ouviu as minhas preces!

Filipe entra, correndo atrás de um arco, Nhu Seis aponta o dedo para ele.

NHU SEIS – Este é o irmão gémeo do Djoca! Meu Deus! São tão parecidos! Cara chapada um do outro! (Filipe faz um sorriso) Até a rir, são parecidos.

PALMIRA – Este é o Filipe. O irmão gémeo do Djoca. Eles têm 9 anos.

NHU SEIS – Só que o Djoca está um pouco mais forte do que ele.

PALMIRA – Também não viu onde é que o Djoca está?! A comida por lá corre atrás de vocês e por cá foge de nós.

NHU SEIS – Lá, por acaso… com a comida não temos problema.

PALMIRA – Às vezes, por acaso, parece que Deus não faz justiça correta. (Tapa a mão na boca e arregala os olhos) Ave-maria, Jesus! Não acredito que já pequei sem sentir!

NHU SEIS – Não são todos os pecados que Deus leva em consideração. Ele sabe que não saiu do coração, mas que foi a boca que espantou.

PALMIRA (faz o sinal da cruz) – Vou ao milheiral buscar um pouco de favas, mato uma galinha e faço com arroz para o senhor janta. Depois vou arranjar a cama na dispensa e você vai dormir com o Filipe. Quando for madrugada iremos apanhar o carro do Cosme e vamos à Alfândega.

V CENA

Na Alfândega, Nhu Seis mostra a Palmira uma televisão, um frigorífico, uma aparelhagem, um gira-discos, um gravador grande, duas camas com colchão, um jogo de sofá e uma bicicleta. Manda-a esperar, entra numa repartição e sai com uns papéis na mão.

NHU SEIS – Senhora D. Palmira, consegui fazer os despachos por um preço muito inferior ao que se cobra habitualmente. Encontrei um primo meu, nem sabia que ele era chefe aqui, cobrou-me, ao todo, apenas 25 mil escudos.

Palmira tira uma saqueta do bolso, tira uma paca de notas, conta 22 mil escudos contos e entrega Nhu Seis. Tira uma caneca, abre-a e despeja as moedas, escolhe as de 100 e de 50 escudos, conta 1.300$00 e entrega-lhos.

PALMIRA – Desculpe-me por estar a dar-lhe toda esta maçada.

NHU SEIS – Não faz mal. Deus deixou-nos para ajudar aos outros. (Palmira despeja mais moedas e conta mais mil escudos. Nhu Seis fica nervoso e a olhar para todos os lados) Quanto é que a senhora tem aí?

PALMIRA – Aqui estão mil escudos. Mas já lhe tinha dado, só em moedas, 1.300$00. Em notas dei-lhe 22 contos. Estou a contar os restantes para lhe dar.

NHU SEIS – Dê-me só mais esses que tem na mão. O que falta eu ponho, vou-me entender com o seu marido quando eu chegar a Lisboa.

PALMIRA – Obrigada!

NHU SEIS – Enquanto vou pagar os despachos a senhora vai buscar um camião para vir buscar as bagagens. Se a senhora demorar, poderá não me encontrar aqui, mas deixo tudo despachado, pode mandar carregar o camião sem olhar para o lado.

Palmira sai, Nhu Seis desaparece.



VI CENA

POLÍCIA, PALMIRA, CONDUTOR E AJUDANTE DO CONDUTOR

Enquanto metem bagagens no camião, chega um Polícia.

POLÍCIA – O que estão a fazer? Assim de dia e na barba cara de todos?

AJUDANTE – Estamos a trabalhar. Não tens olhos?

POLÍCIA – Eh, delinquente! Já lavaste a boca hoje, por acaso?

AJUDANTE – Ainda não. Queres fazê-lo por mim?

POLÍCIA – Se for necessário! E olha como e com quem falas!

AJUDANTE – Com um homem fardado que julgo ser Polícia.

POLÍCIA – Então aprende a falar, por favor, se não queres que te ponha a dançar reggae.

PALMIRA – Porquê, senhor Guarda?

POLÍCIA – Já que não têm vergonha na cara, ao menos tenham um pouco de respeito.

PALMIRA – Quem não tem vergonha é o senhor, que é atrevido e malcriado.

POLÍCIA – Modere a linguagem, sua velha má.

PALMIRA – Velha má é sua mãe. Modere o seu atrevimento e eu modero a minha linguagem.

POLÍCIA – Deixe-me ver os documentos que comprovem que as bagagens são suas?

PALMIRA – Nhu Duco é que tem os documentos, ele está lá dentro da repartição.

POLÍCIA – Então vá chamar Nhu Duco para trazer os documentos.

Palmira começa a andar.

CONDUTOR – Dona, nós não temos tempo para ficar aqui à espera.

PALMIRA (volta assanhada) – Pra já não vou chamá-lo. As encomendas são minhas, meto-as no carro e tchau.

Ela pega numa embalagem para ir meter no carro, o Polícia tira o cassetete e os dois se engalfinham. O Polícia escorrega e cai, Palmira arrasta-lhe pelos pés das calças e ele fica em ceroulas.

Continua…

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