De 2016 até agora, o MpD perdeu metade do seu eleitorado e, em vez de reflectir com seriedade sobre isto, prefere criar inimigos imaginários, como os comunistas e a extrema-esquerda a babar sangue nas esquinas à espera de assaltar o poder. A insanidade é de tal ordem que, reagindo à histórica classificação de Cabo Verde para o Mundial de 2026, já anda gente a agradecer a Ulisses pelo feito e a fazer analogias entre as datas de 13 de Outubro e 13 de Janeiro.
Confesso não me ter sentido empolgado com a convocação das manifestações do último sábado, e olhei até a iniciativa do movimento “Di povo pa Povo” com alguma suspeição. É que não me agradaram de todo os fundamentos iniciais da convocação, nomeadamente: “Esta manifestação não tem carácter político ou partidário” e, mais adiante, “Não é apenas culpa dos que estão no poder.”
Desde logo, porque fico de pé atrás quando alguém convoca uma manifestação de protesto e diz que não tem nada a ver com política. Então, tem a ver com quê, com bordados?! Depois, porque, normalmente, essa narrativa do apartidarismo é meio caminho andado para o discurso contra os partidos e os políticos que, grosso modo, disfarça a ambição de os próprios se revelarem mais adiante como políticos e se entregarem nos braços dos partidos (novos ou velhos), porque vidinha boa é receber prebendas às costas do Estado e das forças sistémicas que antes abominavam.
Outra coisa que me desagradou na convocação das manifestações foi essa bizarra ideia de que a culpa pelas agruras dos cabo-verdianos, em matéria de energia, água, transportes e etc., não é apenas dos que estão no poder. Então, é de quem?! Quer dizer – parafraseando José Mário Branco no magistral “FMI” -, “a culpa é de todos em geral e não é de ninguém em particular”?
Manifestações expressaram o sentir das populações
Penso ter-se tratado de uma narrativa equivocada, cuja consequência foi a não adesão de muita gente que não se revê nesse discurso contra a política e contra os partidos, que tão nefasto desenvolvimento teve em outras latitudes e foi, aliás, responsável (entre outras razões) pelo ascenso da extrema-direita em todo o mundo. E não estou a dizer que seja o caso do movimento “Di Povo pa Povo”.
Por outro lado, reportando-me às manifestações e já perante o facto consumado, deu para perceber que a tónica das intervenções saiu do terreno dos equívocos e das meias palavras da primeira convocatória, para a vida real e as preocupações das pessoas concretas, com vivências, anseios e indignações: luz, água, transportes inter-ilhas, mais as especificidades de cada município, as reivindicações (num certo sentido) adquiriram uma componente popular, expressando o sentir das populações.
Pesem as divergências iniciais que enunciei, considero positivo que em quatro municípios – Praia, São Vicente, Boa Vista e Sal – as pessoas tenham saído à rua para manifestarem o seu descontentamento e exercerem os direitos inalienáveis de manifestação e de liberdade de expressão!
Uma espécie de “democratas” que convive mal com a divergência
O que me incomodou – e isso, sim, de forma absolutamente irreversível – foi a reação de sectores ligados ao partido do governo em tentaram desvalorizar o protesto, amarrando-o a uma suposta maquinação da oposição, ridicularizando o movimento “copo de leite” e alegando tratar-se de movimentações promovidas por “filhos de ex-ministros”, o que revela uma espécie de alergia congénita à divergência, muito pouco consentânea com quem se auto-define como proprietário da marca “democracia”.
Desde logo, para quem anda sempre a dizer que a oposição “está de rastos” (numa alusão directa ao PAICV), seria absolutamente extraordinário que tivesse condições para organizar fosse o que fosse. E, neste caso em particular, é evidente que a oposição ou oposições nada tiveram a ver com os actos do último sábado.
Depois, para quem parece tão empenhado, pela governação e pela oratória, a garantir os interesses materiais (e as mais das vezes egoístas) da classe dominante, não deixa de ser contraditório essa alusão ao “copo de leite”, que é como quem diz, a rapaziada privilegiada cujas fortunas familiares foram, grosso modo, construídas às costas dos partidos, do Estado e da mais extrema exploração da mão-de-obra, paga com salários de miséria.
Tão-pouco se entende a alusão a “filhos de ex-ministros”, porquanto, havendo-os na organização da manifestação, assiste-lhes como a qualquer cidadão a garantia do exercício de direitos constitucionais inalienáveis.
Estamos perante uma espécie de “democratas” que convive mal com a divergência e para quem os direitos, liberdades e garantias só têm sentido de momento que não façam ondas.
Não aprender com História tem sempre más consequências
Em 2016, o MpD ficou à frente nas eleições legislativas de forma clara, não por razão de uma liderança forte ou, muito menos, clarividente, mas em consequência de uma vontade colectiva de mudança e do desgaste da governação do PAICV. E os eleitores deram ao partido vencedor um mandato para empreender reformas profundas no sistema político e construir um novo rumo na governação do país.
Quase dez anos após essas eleições, todos os estudos de opinião indicam que a maioria dos cabo-verdianos está insatisfeita com a governação, considerando que o governo de Ulisses Correia e Silva não está no caminho certo.
Perante estes factos, seria normal que o governo arrepiasse caminho, percebesse o descontentamento popular e seguisse um novo rumo.
Fez precisamente o contrário: em vez de uma remodelação que correspondesse aos anseios populares, optou por uma recauchutagem, chamou figuras dos anos 90 (um momento histórico completamente diferente do actual) e, em vez de empreender novas políticas públicas, agitou o papão do partido único e manteve tudo na mesma.
Do mesmo modo, em vez de compreender com maturidade e aceitar com humildade o descontentamento popular, optou por atacar em todas as direcções, procurando desacreditar manifestantes e espalhando o ridículo e a insanidade, principalmente nas redes sociais.
De 2016 até agora, a verdade é que o MpD perdeu metade do seu eleitorado e, em vez de reflectir com seriedade sobre isto, o partido prefere criar inimigos imaginários, como os comunistas e a extrema-esquerda a babar sangue nas esquinas à espera de assaltar o poder.
A insanidade é de tal ordem que, reagindo à histórica classificação de Cabo Verde para o Mundial de 2026, já anda gente a agradecer a Ulisses pelo feito e a fazer analogias entre as datas de 13 de Outubro e 13 de Janeiro.
A democracia parece ter sido aprisionada num “colete de forças”, com o país correndo o risco de se tornar num imenso manicómio.
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