Justiça. Falamos do mesmo Circo do Terror?
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Justiça. Falamos do mesmo Circo do Terror?

Li, com olhos de ver interpretar, a entrevista da ministra da Justiça ao Expresso das Ilhas, e, mesmo reconhecendo como verdade parte da sua afirmação, suscitou-me mais atenção o que Joana Rosa não disse ou omitiu. A governante, como qualquer outro faria no seu lugar, pavoneia que a Justiça cabo-verdiana vem sendo reformada e melhorada, a seu ver, desde 2021. Falou em avanços, modernização, e investimento em recursos humanos. Bali. Mas é sabido, cá fora, entre as pessoas comuns — nós, que precisamos de um tribunal para resolver um litígio, exigir um direito ou reparar uma injustiça —, a sensação é outra: a de que nada mudou ou nada tende a mudar no sector, pelo contrário, assistimos a atropelos gravíssimos do sistema judicial contra cidadãos que não lhe são de feição e situações gritantes de manipulações de processos para ilibar uns e condenar outros de forma deliberada. E isto não tem quer ver como morosidade e sim com o mero e valiosíssimo bom senso dos executores das leis.

É vero, admito, a morosidade processual é um problema grave, como a própria ministra reconheceu, assim como o Presidente da República, José Maria Neves, que voltou a tocar nesta tecla na abertura do ano judicial. Mas, convenhamos, o drama da Justiça em Cabo Verde é mais profundo e mais corrosivo do que a simples lentidão ou atraso involuntário ou proposital dos tribunais, em prejuízo dos injustiçados.

O que está em causa, antes como hoje, é a evidente perda de fé dos cabo-verdianos — a latente descrença, quase que generalizada, nos tribunais, nos juízes e no próprio sistema que deveria garantir igualdade de todos perante a lei.

Essa descrença não nasceu do nada, não brotou de uma ilusão de óptica ou de teorias de conspiração. Vem de factos consabidos: processos que se arrastam durante anos e acabam sem conclusão; Nasce, também, de decisões judiciais que parecem obedecer a lógicas que nada têm a ver com o Direito, mas muito com conveniências e pressões pessoais e sistémicas; Nasce de juízes que se acham intocáveis, procuradores que escolhem onde olhar, e tribunais que parecem viver num país diferente daquele onde convivem cidadãos frustrados e impotentes ante o corporativismo e malabarismo maligno da Justiça.

Fala-se há muito de “reforma” da Justiça, e ela é necessária e urgente. Mas a verdadeira reforma que o país precisa não se faz apenas com leis novas nem com plataformas digitais e criação de departamentos letárgicos, como as inpecções Judicial e do Ministério Público que ninguém sabe da sua eficácia se quem lá metem também prevarica. Com todas as denúncias existentes de mau comportamento de maguistrados, em prejuízo de cidadãos e do próprio Estado de Direito quando pontapeiam a constituição, essas inspecções continuam em hibernação. Assim também os Conselhos Superiores Judiciais e do Ministério Público, que, fecham os olhos ao que realmente acontece, funcionando sem vértebra, sem causa, apática e preguiçosa.

Enfim, a Reforma faz-se com coragem moral, com incentivo e promoção de magistrados desamarrados e com independência verdadeira — não a que se proclama em discursos, mas a que se pratica na solidão da decisão, quando o juiz sabe que o poder pode não gostar do veredito.

Enquanto isso, a Justiça cabo-verdiana – o sector, não a sua aplicação – continua a tropeçar nos mesmos vícios: favoritismos, compadrios, manipulação de processos e falta de responsabilização interna. Quantos magistrados são realmente punidos quando abusam da toga? Quantos processos disciplinares resultam em consequências devidas? A resposta é óbvia: nenhum. O sistema protege-se a si mesmo, como se a toga fosse escudo de impunidade.

O mais triste é que essa impunidade tem um custo — e é pago por todos nós. Porque quando a Justiça falha, o cidadão deixa de acreditar no Estado. E quando o Estado deixa de merecer confiança, instala-se o cinismo, a indiferença e a ideia perigosa de que “nada vale a pena”.

Pior é quando o Estado derruba o próprio pilar do Direito e Lei Magna para punir incómodos e se proteger a si mesmo com base em ilegalidade. A prisão de Amadeu Oliveira, como muito bem explicou Germano Almeida, é o mais gritante de todos: da sua detenção ilegal à sua condenação, tudo foi forjado para o afastar da sociedade, encarrando-o, silenciando-o, humilhando-o. Não porque, como diz a sentença, ter cometido crime de atentado ao Estado de Direito Democrático quando, na qualidade de advogado, ajudou um seu cliente a sair do país, mas porque tê-lo cá fora iria fazer ruir todo o castelo de cartas que o sector da Justiça, onde nem quem tem ás de trunfo (provas) se pode dar ao luxo de vencer.

Amadeu Oliveira está atrás das grades por conveniência do sistema, que não conseguiu pegá-lo de outra forma pelas acusações que vinha e continua a fazer contra a cínica Justiça nossa e a favor da séria e honesta Justiça que queremos, escrupulosa e justa. Veja-se o caso das investigações à morte de Zezito Denti d’Oru e perceber-se-á a dimensão da barbárie judicial made in Cabo Verde. Cito estes dois exemplos por serem mais mediáticos, todavia, sabêmo-lo, são decalques em ponto grande de 'N' casos que afectam muitos cabo-verdianos que, infelizmente, não têm a mesma projecção nacional, mas partilham o mesmo sofrimento. Enfim, quando o próprio árbitro e fiscal joga e faz jogar está tudo dito, corrijo, tudo acertado numa batota com cartas pré-assinaladas e cirurgicamente distribuídas aos falsos justos.

Estamos, portanto, diante de um paradoxo: um país que gosta de se apresentar como Estado de Direito, mas que convive serenamente com uma Justiça desconsiderada e indigna até ao tutano. As cerimónias solenes de abertura do ano judicial repetem-se, os discursos enchem-se de boas intenções, e no fim tudo continua igual — a mesma lentidão, a mesma opacidade, os mesmos juízes, o mesmo desmerecimento.

Enquanto a Justiça for um terreno onde impera o frete e o hábito de obedecer a interesses económicos e sobretudo políticos, nenhuma reforma será suficiente. Cabo Verde precisa de magistrados que não se deixem moldar por agendas políticas ou amizades de corredor. Precisa de tribunais que inspirem respeito, não desconfiança. Precisa de homens dignos.

Até lá, o novo “novo ano judicial” é apenas mais um capítulo de um velho enredo: o da Justiça pantomímica que promete muito, mas entrega pouco. Isso quando não é bárbara para selectos cidadãos e um docinho – ‘ovos-moles’ – para seus titereiros, os verdadeiros promotores deste Circo do Terror e de Poder.

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

    Comentários

    • Casimiro Centeio, 16 de Out de 2025

      Subscrevo integralmente o Artigo. O resto... tem-no dito o Dr. Amadeu Oliveira. A ministra da Justiça, como é de esperar, defende o seu partido e o seu governo, não os cidadãos comuns desse país .

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