Há pouca diferença entre o regime ditatorial português e a democracia cabo-verdiana
Colunista

Há pouca diferença entre o regime ditatorial português e a democracia cabo-verdiana

O caso do momento, se é que podemos considerá-lo caso, que envolve o Presidente José Maria Neves expõe a forma como se faz política em Cabo Verde, isto é, é para deixar de cócoras, arrasar, sugar todo o sangue, matar. Não tenhamos dúvidas; o MpD, desde a sua criação, sempre viveu de casos, não se importando com a veracidade dos mesmos desde que sirvam para animar a campanha e manchar o nome das pessoas. Este, também não lhe escapará, foi assim com a lei do aborto, da Reforma Agrária e dos acontecimentos de 31 de agosto, em Santo Antão, e da profanação das igrejas, que atribuiu ao PAICV, explorando-os até que deixaram de render votos. Uma das vítimas da profanação de S. Domingos, o engenheiro José Filomeno Rodrigues, deixou o mundo dos vivos sem que a justiça tenha sido feita.

Quando a avó do grande músico e compositor angolano Waldemar Bastos disse, no tempo colonial, em plena ditadura Salazarista, ao filho: “Xê, menino, não fala política”, o que veio a inspirar o compositor a escrever a canção “velha Chica”, tema gravado no seu primeiro álbum, “Estamos juntos”, em 1983, não estava na mente da avó nem de Waldemar que, hoje, mais de meio século depois, fazer política num estado independente e “democrático” como o nosso constituiria riscos elevadíssimos para os cidadãos.

Desde muito novo apaixonei-me pela política. A prisão de Filinto Vaz Rodrigues, aduaneiro na reforma, combatente da liberdade da Pátria, meu ex-vizinho na localidade de Banana de S. Domingos, no tempo colonial e no auge da PIDE, torturado e desterrado para Angola, libertado com o 25 de abril de 1974, despertou em mim esse interesse pela política.

Hoje, mais de 54 anos depois, tal arte já não me fascina, porque a política cabo-verdiana está à margem daquilo que a filosofia aristotélica considera como ciência que tem por objetivo a felicidade humana e o bem da coletividade é a sua essência. A política, neste país, para alguns, passou a ser um trampolim para o enriquecimento; uma forma de aproveitamento dos poucos recursos do país; de ocupar cargos que se fosse por concurso público jamais conseguiriam; um jeito de garantir funções para os familiares e uma aposentadoria de luxo. Essa gente, quando percebe que “os seus lugares” estão em risco, fazem a mesma coisa que o famoso chefe do Cartel de Medellin, Pablo Emílio Escobar, fazia na Colômbia.

O percurso de Cabo Verde tem sido pautado por altos e baixos. Há quem considere o período colonial totalmente negro, mas eu e muitos naturais de Banana não temos a mesma perceção. Como o considerar totalmente negro se, nessa localidade, o melhor que há neste momento é a estrada e a escola primária, ambas construídas no tempo colonial, quando o Regedor era Augusto Cabral “Nho Pachino”? A estrada é estreita, com uma única faixa de rodagem, por isso é preciso encostar-se se houver uma outra viatura em sentido contrário. A calçada tem quase 60 anos, curvas perigosas e sem visibilidade. Com essas imperfeições, desde que os portugueses se foram embora, nenhum governo investiu um centavo na sua melhoria. A melhor e maior escola primária foi inaugurada em 1966 pelo Comandante Leão Maria Sacramento Monteiro que foi governador de Cabo Verde de 1966 a 1969.  Alguém há de me lembrar de iluminação pública, mas pergunto se é motivo de regozijo a iluminação de Banana quando os portugueses inauguraram uma central em S. Domingos no final dos anos sessenta. Esperaram 56 anos para estender mais quatro quilómetros de cabos para Banana. Mais, regozijar-nos por ser uma das últimas localidades a ser contempladas com energia em Santiago?

Cada fim de semana que visito essa localidade, fico mais dececionado com a política. É desgostoso ver mulheres e crianças com bidões a rolar ladeira abaixo, em direção à estrada a fim de disputarem água num camião, com tanques de plástico, para eles e os seus animais, gritando, para alertar os menos atentos: “agu bebi dja ben”. Duvido seriamente se a água distribuída à martirizada população de Banana reúne os requisitos químicos, físicos e bacteriológicos para ser considerada potável. Que Deus proteja os intestinos dessa gente! No entanto, fiquei pasmado quando o chefe do governo anunciou de forma pomposa, há dias, na comunicação social, que vai investir perto de oitenta mil contos para levar água a uma localidade três vezes mais distante, com uma elevação três vezes superior, em Montanha dos Órgãos, o que implica a construção de três estações de bombagem e 21 km de conduta. Nada contra! É ses sorti, ma sempre ta flada ma quem estiver mais perto da fonte devia beber primeiro. Banana só está a 20 km da capital do país que dizem ter dinheiro que nunca mais acaba.

Alguém me disse que é porque a Câmara dos Órgãos pertence ao partido no poder e perguntou-me se tenho conhecimento da existência, a meio caminho da Montanha, de uma moradia que pertence ao ministro que tutela as águas. Discordando dele, considerei uma simples coincidência, porque este governo jura a pés juntos que não discrimina Câmaras e um ministro não pode levar água a uma localidade, só porque construiu nas imediações.

A localidade de Mendes Faleiro Banana, que agora está votada ao abandono, numa espécie de cruzada contra pequenas localidades, para forçar a migração interna, foi no passado uma das localidades mais importantes de S. Domingos. A sua estrada carroçável começava em Godim, passando por Caiumbra, S. Cristóvão, Ribeira Seca até S. Tiago. Com a Independência, era suposto que a estrada fosse melhorada, mas aconteceu o contrário. As cheias levaram tudo para o mar de coroa em S. Tiago.

Como disse, a nossa política acarreta riscos elevados e ameaças de morte às pessoas que pensam de forma diferente e que querem descortinar como a gestão do país está a ser feita e a forma como as questões políticas são discutidas no parlamento também contribuíram para o meu afastamento da política. Deixei o velho hábito de estar sempre com o pequeno rádio recetor de bolso am/fm para ouvir os debates na Assembleia ou ouvir ministros (polidos de outrora) a falarem ao país.

Era um gosto enorme ouvir os Presidentes da Assembleia Nacional a dirigir os trabalhos com destaque para o erudito e eloquente Abílio Monteiro Duarte. Salvo raras exceções, Cabo Verde teve bons presidentes da Assembleia. O atual está a surpreender-me pela coragem e postura independente. Coragem teve quando desafiou o presidente do seu partido, concorrendo contra a sua vontade. Tendo medido os riscos e avançado, sabia que se tivesse perdido seria o fim da sua carreira política à semelhança de Orlando Dias que foi um dos fundadores do partido no poder. A propósito, foi caricato ouvir um caloiro do seu partido a pedir-lhe (Orlando) para sair do MpD apenas por discordar da forma como o país está a ser gerido. O outro aspeto que me surpreende no Presidente Austelino Correia é na condução dos trabalhos da Assembleia imparcialidade. Na hora de pôr ordem na casa não olha para a filiação dos deputados. Realmente, isso é algo que já não estávamos habituados. Havia uma expressão que agora só oiço quando ele não está a dirigir os trabalhos e de que não gosto: “A mesa regista”. Tal frase surge sempre que um deputado da oposição se sente injuriado ou ofendido na sua honra e pede a palavra para a defesa da honra ou em caso de protesto, quando os trabalhos estão a ser mal orientados. É a forma manhosa utilizada, com frequência, para calar os deputados.

Além disso, alguns parlamentares não se preocupam com a qualidade das suas intervenções. A ausência de deputados com tarimba de um Dr. Manuel Veiga, Dr. Hopffer Almada, Engenheiro Cipriano Tavares, Dr. Amândio Carvalho, Dr.  Mário Silva, Dr. Onésimo Silveira, Dr. Eurico Monteiro, Dra. Ondina Ferreira ou Dr. Tomé Varela contribui para esse descalabro. Podemos até ter um bom presidente da Assembleia Nacional, mas ele só pode fazer omeletes se tiver ovos. Existem alguns ovos bons, mas também há os de basiliscos.

Lembro com nostalgia as intervenções do deputado Moza, de Achadinha, do deputado Antonino Varela, de Santa Catarina, que trazia as preocupações dos camponeses, confrontando o ministro João Pereira Silva. Nessa altura, ka ta kobada nem ka tinha ato de pugilato na Assembleia.

Da mesma forma que hoje fazem falta ministros polidos como o Comandante Silvino da Luz, Dr. Manuel Faustino, Dr. José Tomás Veiga, Dr. Corsino Fortes, Dr. Corsino Tolentino, Dra. Helena Semedo, Engenheiro Armindo Ferreira ou Dr. José Luís Jesus, Dr. Vítor Borges, Engenheiro José Brito, etc. Temos agora alguns bons ministros? Temos! Temos alguns bons deputados? Temos! Agora, em termos numéricos, é inexpressivo.

Realmente, o problema é que para evitar tiradas jocosas que envergonham até as nossas crianças, não é necessário ser especialista na culinária para se saber que a cereja não é colocada debaixo do bolo ou trabalhar numa fábrica de Boeing ou Airbus para se saber que não existe 1,5 (um avião e meio), ¾(três quartos)  ou  1/2 (meio) avião.

A respeito da VBG, um dos nossos grandes males sociais, ouvimos o primeiro-ministro a dizer e bem que não rima com presidente do conselho de administração de uma empresa pública, no entanto deixa rimar com a função de deputado, elucidando-nos sobre a importância que atribui à função de deputado nacional. Por isso, agora a política diz-me muito pouco.

O caso do momento, se é que podemos considerá-lo caso, que envolve o Presidente José Maria Neves expõe a forma como se faz política em Cabo Verde, isto é, é para deixar de cócoras, arrasar, sugar todo o sangue, matar. Não tenhamos dúvidas; o MpD, desde a sua criação, sempre viveu de casos, não se importando com a veracidade dos mesmos desde que sirvam para animar a campanha e manchar o nome das pessoas. Este, também não lhe escapará, foi assim com a lei do aborto, da Reforma Agrária e dos acontecimentos de 31 de agosto, em Santo Antão, e da profanação das igrejas, que atribuiu ao PAICV, explorando-os até que deixaram de render votos. Uma das vítimas da profanação de S. Domingos, o engenheiro José Filomeno Rodrigues, deixou o mundo dos vivos sem que a justiça tenha sido feita.

Podemos gostar ou não de Neves; não é crime e gosto é relativo. Agora considerar o sucedido na presidência como o maior escândalo de todos os tempos, é de uma injustiça tremenda. Neves tem inteligência suficiente para saber que, muitos dos seus detratores, são pessoas que acham que ele é a causa dos seus fracassos políticos, sabe que o seu sucesso político traz inveja e ódio, misturas perigosas. Os camaradas de ontem que se projetaram com o impulso de Neves como presidente do partido e primeiro-ministro, hoje, quando ouvem: no folal es ta respondi nu mata.

Alguns artigos venenosos contra Neves tiveram o condão de me fazer recuar milénios até chegar ao tempo de Adão e Eva, no livro de Génesis, para rever a história dos seus dois filhos: Caim e Abel. Caim matou Abel num ato de ciúmes.

Neves, neste momento, apesar da sua sapiência e experiência, é o Presidente, no mundo, com mais “professores”:  tem de direito constitucional, direito de trabalho, direito administrativo, direito de família, ética, conduta moral, filosofia, etc. Os seus carrascos vão perguntar-me se agiu bem e se aprovo a atribuição de salário à esposa, a resposta é a mesma que já tinha dado. Houve falhas! Quem não falha é Jesus Cristo; errar é humano e ele não persistiu no erro que é o que os burros fazem.

Importa perguntar se a sra. primeira-dama que é uma profissional, com sólida formação, muito humana e generosa tinha ou não o seu trabalho bem remunerado. Ela foi ganhar mais na presidência ou o mesmo que recebia?  O valor recebido, e já devolvido, que ronda os cinco mil contos, é cento e noventa vezes inferior à quantia enterrada no mercado de coco, na Praia, que se resume única e exclusivamente num amontoado de ferro velho. Meio século poderá ser o tempo necessário para que o tribunal de contas consiga criar a capacidade para inspecionar esses ferros velhos. Felizmente, o material escolhido tem vida longa.

O salário que a primeira-dama recebeu nesses dois anos, o mesmo que receberia se continuasse no seu posto de trabalho, numa empresa nacional, é uma ninharia comparado com os avales dados pelo governo às companhias aéreas estrangeiras, que vieram prestar um péssimo serviço e deixaram o país, sem pagar, e a maioria dos críticos de Neves fingem não saber. Não vou falar quanto é que a CV Interilhas recebe, diariamente de subsídio, por um trabalho deficitário que presta à nação. E mais, a quantia que a primeira-dama recebeu em dois anos dá para comprar apenas “meio jipe[1]” topo de gama de alta cilindrada que cada membro do governo tem para fazer de 4 a 5 km por dia no percurso casa-trabalho e trabalho-casa, exceto as passeatas de fim de semana, num país cuja estrada, na maior ilha, de um extremo ao outro é de 74 km. Ter mais membros do governo que Espanha, Angola e Portugal não é escândalo, mesmo tratando-se de um país que nem aparece no mapa devido à sua insignificância geográfica.

O que nos espanta é termos associação de mulheres para todos os gostos e apetites. Há dias até apareceu uma a exigir paridade nas autárquicas, mas para se solidarizar com uma outra mulher, batalhadora, que tem vindo a ser injuriada, espezinhada, destratada, ficam de bico cerrado. Antes de estarem a correr atrás de paridade deviam solidarizar-se com a vossa colega que não tem culpa no cartório.

A propósito de paridade, alguém terá de me fazer entender se faz sentido as mulheres exigirem a lei de paridade numa sociedade onde a mulher é maioria; onde o voto de mulher e de homem valem a mesma coisa. Não bastaria concentrar os vossos votos nas mulheres? Só que há um problema: as mulheres já demostraram que na política confiam mais nos homens. Têm relutância em votar nas mulheres! Dentro dos seus partidos dão primazia aos homens! Foi o que fizeram em Santa Catarina de Santiago com a sua colega Jacira! Espero que o fenómeno Kamala Harris, candidata presidencial nos Estados Unidos, sirva para convencer as cabo-verdianas que “sim, elas podem”.

Infelizmente, muitos cabo-verdianos dão importância às questões menores e desprezam os direitos fundamentais da pessoa humana, o assassinato na via pública, o desaparecimento de crianças, feminicídio que transformam em banalidades e fazem de tudo para esquecer num ápice.

Investigar o pagamento irregular na Presidência da República quando o presidente é de cor política diferente ou inspecionar as câmaras de oposição são atos céleres e pode haver três ou quatro equipas em simultâneo. Para casos que envolvem pessoas do partido no poder, referi-los constitui crime.

Quem interpretar a minha referência ao caso da presidência como sendo uma forma de desvalorizar ou aprovar a ilegalidade, fá-lo-á de má-fé, porque o meu único objetivo é mostrar que este assunto só está a ganhar essa proporção, porque o visado é o Presidente José Maria Neves, um osso duro de roer na política. E mais, porque ainda está no seu primeiro mandato, os seus opositores sabem que se ele resolver concorrer a um segundo mandato têm enormes dificuldades de chegarem ao palácio do Plateau. É também uma forma de dizer às mulheres do meu país para serem mais solidárias com uma colega cuja vida privada está sendo exposta de forma vil na praça pública.

De entre os que mais espalham o seu veneno contra a Dra. Débora Carvalho, está um vilão, uma cobra taipan, um sofomaníaco, alguém sem passado nem presente, na política, na administração pública ou no setor privado, que se autoproclama como o cabo-verdiano mais iluminado de todos os tempos e que infelizmente nunca experimentou afeto ou carinho de um ser tão especial que é a mulher.

Realmente, para fazer política, em Cabo Verde, onde a ética é uma miragem e a devassa da vida privada é uma constante, é preciso de uma boa couraça.



[1]  Expressão tomada por empréstimo de um ilustre deputado da República.

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Comentários

  • Casimiro Centeio, 30 de Ago de 2024

    É tão admirável que não cabe em palavras comentar sobre o teu assertivo e brilhante Artigo, salvo felicitar-te ou deixar aqui expresso os meus sinceros PARABÉNS, Caro Elias Silva !
    Queiras aceitar -me um cordial e caloroso abraço!

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