Descriminalização do Consumo de Drogas: O Caminho para a Saúde e Inclusão
Colunista

Descriminalização do Consumo de Drogas: O Caminho para a Saúde e Inclusão

«No labirinto das políticas de drogas, onde o estigma muitas vezes obscurece o caminho para soluções reais, é chegado hora de iluminar o horizonte com uma abordagem mais humana. Em vez de perpetuar o ciclo da criminalização, devemos trilhar o caminho da inclusão, do tratamento eficaz e do respeito aos direitos fundamentais. Ao romper com velhas narrativas, podemos construir uma nova realidade onde a saúde, a compaixão e a justiça guiem nosso percurso. Juntos, é possível transformar o desafio das drogas em uma oportunidade para construir um futuro mais resiliente e equitativo para todos.»

Compreender que um mundo totalmente livre de drogas é uma ilusão perigosa é o primeiro passo para se desenvolver políticas realistas e eficazes. A abordagem de adaptação a essa realidade pode oferecer benefícios tangíveis para toda a sociedade.

Em vez de nos deixarmos envolver por ideais inatingíveis, é hora de reconhecer e assumirmos a complexidade da questão das drogas e buscar soluções que promovam, de facto, a segurança, a saúde e o bem-estar de todos os cidadãos. Ao abraçar uma abordagem mais pragmática, podemos construir um terreno sólido para políticas que respeitem os direitos individuais, promovam a educação e proporcionem suporte eficaz aos que mais precisam. E não há dúvida: este é o caminho para um futuro saudável; o caminho da inclusão e equitativo para todos.

Até então, a política de criminalização demonstrou uma eficácia singular: forçar o consumidor e o toxicodependente a se vestirem de 'ocultos', procurando refúgio nas sombras da sociedade para escapar ao estigma social e às consequências legais.

Infelizmente, essa abordagem não apenas perpetua o ciclo de preconceito e julgamento, mas também agrava a condição do indivíduo em questão. Ao forçar o consumidor de drogas às margens da sociedade, a política atual não só falha em lidar eficazmente com o problema, mas cria um ambiente que alimenta o isolamento, dificultando ainda mais a busca por ajuda e tratamento.

A abordagem atual, em vez de oferecer soluções, intensifica as barreiras enfrentadas por aqueles que mais necessitam de apoio, agravando assim a situação já desafiadora dos toxicodependentes. Portanto, torna-se imprescindível reavaliar essas políticas, priorizando abordagens que estimulem a inclusão, promovam a compreensão e, acima de tudo, garantam um acesso eficaz ao tratamento e aos suportes essenciais para enfrentar a complexidade da dependência química. É preciso salvaguardar, acima de tudo, o Direito à Saúde. Um Direito fundamental e constitucionalmente protegido.

Lembremo-nos de que foi em defesa de uma pretensa moralidade, do Estado e da sociedade que, nos Estados Unidos de América (EUA), em 1972, se declarou, durante a presidência de Richard Nixon, a “Guerra às Drogas”.

Esta “Guerra às Drogas” que, no fundo, representa as políticas proibicionistas tem sido recorrentemente criticada. Recentemente, as políticas que criminalizam o consumo de drogas foram adjetivadas de "nefastas" no primeiro Índice Global de Políticas sobre Drogas, publicado pelo Consórcio para a Redução de Danos[1]. Na verdade, essa abordagem punitiva é, inquestionavelmente, incompatível com os princípios dos direitos humanos. Aliás, são evidentes as falhas sistêmicas do paradigma punitivo, incluindo violações generalizadas dos direitos humanos.

Por isso, cada vez com mais veemência, as diretrizes internacionais apontam para a necessidade de uma abordagem centrada nos direitos humanos. E é neste sentido que as diretrizes desenvolvidas por uma coalizão de Estados Membros das ONU, OMS, UNAIDS, PNUD e especialistas em direitos humanos e políticas de drogas, podem ser instrumento fundamental para orientar os governos na criação de políticas públicas em conformidade com os direitos humanos.[2]

Acreditamos, pois, que esse é um momento crucial para se repensar as políticas de drogas em níveis nacionais e internacionais, visando não apenas a segurança, mas também o respeito aos direitos fundamentais de todos os indivíduos.

No contexto de Cabo Verde, pelo menos no plano discursivo e em sede dos Planos Estratégico sobre a matéria, é evidente uma trajetória de adaptação e evolução nas estratégias de controle de drogas, desde os tempos coloniais até as mudanças mais recentes. O percurso legislativo revela transformações significativas, principalmente nos últimos Planos Estratégicos do país.

Quando analisamos o quadro comparativo, percebemos uma evolução nas abordagens de combate às drogas ao longo dos diferentes Planos Estratégicos em Cabo Verde. Nos dois últimos, notamos uma mudança de foco em direção ao enfrentamento do tráfico, crime organizado e terrorismo.

Contudo, as mudanças mais substanciais estão relacionadas à inclusão de estudos especializados e programas de Redução de Riscos. Isso demonstra uma abordagem mais abrangente e adaptada à realidade contemporânea, além de um crescente destaque aos direitos humanos.

Um ponto crucial para essa mudança de abordagem, queremos crer, foi a realização da Primeira Conferência Internacional sobre Drogas nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) em Cabo Verde[3]. O foco dessa conferência foi abrir caminho para uma nova perspetiva das autoridades governamentais no enfrentamento do consumo de drogas. O objetivo foi explorar modelos alternativos e avaliar seus impactos na saúde, justiça social e economia.

Lembrar que, durante esse evento, o então Ministro da Justiça, José Carlos Correia, destacou a necessidade de priorizar o bem-estar humano e reavaliar criticamente os modelos atuais de políticas de drogas. O ex-Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, também enfatizou a importância de questionar a utilidade da criminalização dos consumidores de drogas, considerando-os vítimas do sistema. Ambos propuseram uma reavaliação das estratégias repressivas e uma abordagem mais centrada no apoio humano aos consumidores.

Apesar da relevância dessa Conferência e das vozes proeminentes que instaram à reflexão sobre as políticas de drogas, não houve continuidade ou, pelo menos, divulgação oficial do impacto desse evento nas estratégias globais de combate ao tráfico e consumo de drogas em Cabo Verde. A ausência de informações sobre os desdobramentos ou implementações resultantes dessa conferência deixa uma lacuna significativa no entendimento de como as ideias e abordagens discutidas poderiam ter influenciado as políticas e estratégias nacionais no que tange ao consumo de drogas[4]. Porém, como conjeturamos, tendo em conta o marco temporal, a aludida Conferência poderá estar na base da mudança de foco dos Planos Estratégicos. No entanto, sem impactos concretos e visíveis.

A revisão da atual Lei da Droga (Lei nº 78/IV/93) com a respetiva descriminalização do consumo é crucial para alcançar as metas políticas propagadas, como o bem-estar humano, a defesa dos direitos humanos e a promoção da saúde individual e coletiva.

O português Joaquim Canotilho, um erudito em Direito, observa com propriedade que "o governo dos homens é sempre um governo sob leis e através de leis". Isso ressalta a importância de o Estado de direito ser regido pelo direito, alinhando suas ações a preceitos constitucionais, baseados na dignidade da pessoa humana e no respeito aos direitos fundamentais. Um verdadeiro Estado social deve visar a justiça social e o bem-estar dos cidadãos, promovendo a qualidade de vida e a igualdade real entre todos.

No entanto, tal objetivo não é viável enquanto mantivermos uma lei que conflita com o Direito à saúde, um alicerce presente em nossa Constituição (artigo 71º). As políticas públicas, como mencionado, são ferramentas para garantir e efetivar os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, consagrados na Constituição da República. É imprescindível, portanto, alterar a atual lei de drogas para criar um enquadramento legal que permita a implementação de políticas de redução de danos causados pelo consumo de drogas e garanta um tratamento eficaz e a reintegração social dos toxicodependentes.

A descriminalização elimina o medo e o estigma que impedem os usuários e dependentes de buscar tratamento a tempo. Além disso, permite que aqueles que desejam prestar auxílio o façam sem receios de serem considerados cúmplices de um crime. O exemplo paradigmático de Portugal com a aprovação da Lei 30/2000 ilustra isso. O cenário pós-descriminalização do consumo em Portugal é significativamente diferente do anterior, especialmente em relação à procura de tratamento e à incidência de doenças infectocontagiosas entre usuários de drogas e toxicodependentes.

Não esquecer que a liderança dos EUA ao longo dos anos para que o consumo dessas substâncias fosse proibido agora está se transformando em políticas mais abertas. Face às evidências atuais, estão mudando sua regulamentação interna a respeito das drogas. Do seu consumo, diga-se.

Portanto, na encruzilhada entre a ilusão de um mundo livre de drogas e a realidade complexa em que vivemos, é imperativo refletir sobre políticas que realmente promovam o bem-estar coletivo. A mudança não surge do silêncio, mas da ação corajosa e informada. Precisamos de estratégias que não apenas desafiem o status quo, mas que ofereçam esperança e dignidade aos que lutam contra a dependência. É hora de uma abordagem humanitária, baseada na compaixão e no entendimento, para que, juntos, possamos construir uma sociedade mais inclusiva e resiliente.

Afinal, o verdadeiro progresso não reside na punição, mas na compreensão, na educação e na construção de pontes para o futuro. Então, com coragem e sem tabus, vamos debater a atual política de drogas.

* Doutorando em Serviço Social; Mestrado em Políticas Públicas; Licenciado em Criminologia e Segurança Públicas

 

[1] https://globaldrugpolicyindex.net/resources

 
[2] https://www.undp.org/publications/international-guidelines-human-rights-and-drug-policy

 
[3] https://apdes.pt/pt/portfolio/conferencia-internacional-politicas-drogas/
[4] https://www.youtube.com/watch?v=0ZoqLZSa_98&list=PLFZqHwKRAXHKY_pR9KK-PDIT0u7oH9I8U&index=4

 

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