Reportagem. António e GIl, as histórias do Tarrafal na memória de dois ex-presos políticos
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Reportagem. António e GIl, as histórias do Tarrafal na memória de dois ex-presos políticos

António e Gil foram espancados pela PIDE, a polícia política do regime colonial, com mazelas no corpo que ainda duram, e depois foram remetidos em alturas diferentes para o esquecimento e escuridão do Tarrafal.

A entrada do campo de concentração da ditadura portuguesa traz “más recordações” a Gil Varela, à beira dos 89 anos, ali preso por ter lutado pela liberdade e independência de Cabo Verde. “Boas recordações foi quando saímos daqui e vimos crescer um novo país”, acrescenta António Pedro da Rosa, 75 anos, outro preso político, que ficou até ao dia da libertação, no dia 1 de Maio de 1974.

“Estávamos na cela quando ouvimos alegria, muita gente a gritar que vinha libertar os presos, muitas pessoas com carros para nos levar para a Praia”, recorda.

Os presos participaram em vários comícios populares, antes de serem levados às respetivas casas, onde mulheres e filhos estavam há demasiado tempo à espera.

A solidariedade entre os presos ainda hoje ressalta dos testemunhos de Gil e António, que com a Lusa percorreram o campo – hoje Museu da Resistência -, falando das memórias mais vivas, de entre todas as que têm sido publicadas em papel e na Internet.

Gil Varela, “Kid”, ficou em prisão preventiva durante 1970, num grupo atirado logo para celas disciplinares, tão escuras que até se queixou ao diretor, o funcionário colonial cabo-verdiano Eduardo Fontes: “Ele disse que o escuro era bom para a vista” e que os queria “reeducar”.

Só passavam meia-hora fora da cela de manhã, outro tanto de tarde e quando caia a noite o que mais sentia, por fora, era calor, um calor insuportável, por dentro “era revolta”, conta Gil.

“Estávamos lá para a reintegração na sociedade”, não a sonhada, mas a imposta, “a melhor para as províncias ultramarinas”, sem liberdades, recorda Luís Fonseca, antigo embaixador cabo-verdiano, secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) entre 2004 e 2008, que usará da palavra como porta-voz dos presos políticos na cerimónia dos 50 anos da libertação do Tarrafal esta quarta-feira.


“Tínhamos cometido um grave crime de traição à pátria” ao apoiar diferentes atividades “terroristas” do PAIGC e o destino era “um espaço com o mínimo para sobreviver”.

Depois de agredido pela PIDE noutros calabouços, Luis Fonseca integrou o primeiro grupo de presos políticos cabo-verdianos a chegar ao Tarrafal (1970-1973) e que se organizou para apoiar os estudos de novos detidos, como António da Rosa, que por várias vezes se refere ao espaço como “escola”.

Foi esse primeiro grupo que amparou e ajudou a suportar o Tarrafal, descreve António, um dos detidos no caso Pérola do Oceano, o barco que tentaram desviar para a costa ocidental africana onde estava o PAIGC.

Gil Varela, que viria a ser ilibado por falta de provas após estar preso no Tarrafal, recorda as conversas e o convívio com os outros presos como uma espécie de salva-vidas, o verdadeiro “alimento” que o mantinha vivo.

Hoje, o palco dessa camaradagem, a cela comum dos cabo-verdianos, é uma das salas do Museu da Resistência com painéis que contam a história, com um filme num ecrã e fotos dos prisioneiros, como eles, isolados do mundo.

“Uma vez recusámo-nos a comer uma refeição” com alimentos estragados, uma recusa que foi mais um sinal de união, mas que valeu o “castigo” de um mês sem visitas, recorda António.

Mas o castigo mais temido, a Holandinha, cela minúscula, sem espaço para deitar, sem altura para estar de pé, só com pão e água, uma lata para as necessidades e grades minúsculas para deixar passar o ar — herdeira da ‘frigideira’, cela da primeira fase do campo, cruelmente exposta ao sol.


Gil e António nunca lá foram parar, mas viram outros presos ali castigados quando a autoridade julgava estar a ser desafiada, o que podia acontecer mesmo sem querer.

Um guarda apontou uma vez a arma a António da Rosa, numa ocasião em que este se aproximou de uma guarita, inadvertidamente, durante uma caminhada.

“Fui ter com os colegas, contei-lhes e todos saíram. Voltámos juntos ao mesmo sitio para ver se ele fazia a mesma coisa, mas virou-nos costa”, um momento cravado na memória de António, porque “era a demonstração de que ninguém tinha medo”.

Presos cabo-verdianos não podiam estar juntos com angolanos, mas viam-se ao longe e com os dedos faziam “o V de vitória” ou assobiavam melodias da revolução, sem que os guardas percebessem, mas que eram sinais de esperança na luta que estava a ser travada.

Os presidentes de Cabo Verde, José Maria Neves, Angola, João Lourenço, Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, e Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, os quatro países de origem dos presos, celebram esta quarta-feira, 01 de maio, os 50 anos da libertação do Tarrafal — uma placa memorial no local assinala os nomes dos 36 mortos no campo de concentração pela ditadura colonial portuguesa.

A maioria, 32 mortos, eram portugueses que contestavam o regime fascista, presos na primeira fase do campo, entre 1936 e 1956.

O campo reabriu em 1962 para encarcerar anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde — morreram dois angolanos e dois guineenses.

Ao todo, mais de 500 pessoas estiveram presas no “campo da morte lenta” símbolo da violência e opressão do regime colonial que caiu com o 25 de Abril de 1974.

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