Não vamos premiar, de modo algum, o advogado AO pela sua atuação, que a configurar crime deve ser tratado como tal. Porém, é preciso reconhecer a “pertinência” e a “utilidade” da sua acão, cujo resultado constitui uma sublime oportunidade para o país perceber as falhas a nível da segurança de suas fronteiras e encetar uma “mega” e séria sindicância ao trabalho dos servidores da nossa justiça e da nossa SEGURANÇA. E reconhecer, porque não, sem complexo, as deficiências, mesmo que ínfimas, que infestam o nosso sistema judiciário, sanando-as, por forma a trazer e restabelecer a confiança dos cidadãos na nossa JUSTIÇA.
Numa visão puramente funcional, diria, aliás como amplamente defendido pelos entendidos na matéria, que, da mesma forma que a saúde não deve ser O objetivo da vida, mas UM recurso para a vida diária, a JUSTIÇA não deve ser, tão-somente, O propósito dos agentes institucionais que têm a nobre e “sagrada” incumbência de sua aplicação. Em outros termos, esta deve, sim, constituir uma realidade que, “de per si” (passo a redundância) deva existir numa “sociedade-de-direito”, por forma a se manter o “status quo” desta mesma sociedade – uma vida em harmonia. É esta a verdadeira essência da JUSTIÇA, aliás, espelhada na célebre frase de Ulpiano: “ubi homo, ibi societas; ubi societas, íbi jus” (onde há homem, há sociedade; onde há sociedade há justiça).
A JUSTIÇA deve ser parte da sociedade, nunca O objetivo, conclui-se.
Quando estamos, sistematicamente, a procura de uma melhor saúde é porque, objectivamente, não a temos. De igual modo, esta recorrente ânsia e apelo por mais e por uma melhor JUSTIÇA é sintomático de que, também, não a temos. Ou se temos, ela é deficitária. O sistema está enfermo, diga-se.
O melhor será, antes da necessidade de correr atrás da saúde, tudo fazer para a manter. Porque, como disse, certa vez, o sueco Lennart Nordenfelt, professor sénior da teoria e ética da saúde, só assim ser-nos-á possível alcançar todas as metas vitais, dadas as circunstâncias. Nada mais óbvio!
Chegado a este ponto, após este diálogo e este paralelismo entre a saúde e a justiça, à guisa de prólogo, impõe o seguinte questionamento: afinal, temos JUSTIÇA ou precisamos correr atrás dela?
Sem contraditar e desconsiderar o esforço e a vontade dos sucessivos governos e governantes da área, visando uma justiça robusta e saudável, parece-me que tal desiderato, ainda, não foi conseguido e, por isso, a segunda hipótese seria a resposta mais elegível, por ora.
Por mais que se queira negar o inegável, os sinais de desconforto e de indisposição, vindos de todos os quadrantes da nossa sociedade, face à realidade da nossa justiça penal, são inquestionáveis. Do cidadão comum, que reclama por uma maior celeridade e pela justiça da nossa justiça penal, aos agentes e colaboradores, desta mesma justiça, que denunciam irregularidades graves e “intransparência” na sua realização.
É sempre um erro crasso e pernicioso desvalorizar essas “vozes” de descontentamento: daqueles que clamam por uma JUSTIÇA mais célere; dos que anseiam, legitimamente, pela “vitória” da nossa JUSTIÇA. Pois, já dizia, no longínquo século XV, o Infante D. Pedro: “aquelles que tarde vencem ficam vencidos”.
Tão-pouco, se deve fazer orelhas moucas às denúncias que põe em causa a “seriedade” e a transparência da nossa JUSTIÇA.
Esta atitude de aparente apatia e de “desconsideração” só agrava o estado de saúde da nossa JUSTIÇA. E uma das vias de mudança, acredito (e concordando com o externado pelo jurista e escritor Casimiro de Pina, num artigo de jornal) será a “alteração de hábitos e de mentalidades”. O que significa, em acréscimo, que não basta “as reformas vagas e circunstanciais”, para se ultrapassar o estado doentio da nossa JUSTIÇA.
A mudança de mentalidade e de hábitos faz-se necessária e permitirá, desde logo, perceber que a “nossa” lei, não obstante o seu carácter geral e que visa a uniformidade - a sua aplicação através do sistema judiciário - num diálogo com o jurista e escritor francês Gérard Philippe, não é uniforme e nem coerente. Tendo esta consciência, e crendo na dimensão social da justiça, poder-se-á atuar positivamente sobre estes aspetos procedimentais, “construindo” vias acessíveis e céleres, para todos, aos tribunais.
Esta mudança de mentalidade permitirá, ainda, a abordagem mais profícuo ao crime (crime-evento e crime-fenómeno), que, por sua vez, possibilitará o vislumbre do seu lado útil, como advogava Émile Durkheim.
É claro que não estamos a fazer apologia do crime. Contudo, sendo o crime uma transgressão das normas penais em vigor num dado sistema social e que, por isso, pressupõe uma punição, quando tal acontece deve interpelar-nos à identificação dos fatores (se quisermos, dos porquês) que o motivam. Deste modo, consegue-se a devida correcção a nível social, mas, também, mitigar as fragilidades do nosso sistema de justiça, emprestando-lhe mais eficiente e mais eficácia. E a prevenção especial e geral, que se pretende com a aplicação da justiça, será, finalmente, alcançada.
Heráclito, filósofo da era a.C., já defendia que nada, em si mesmo, é bom ou mau. O ser bom ou o ser mau depende dos efeitos de algo sobre diferentes coisas e das relações que se estabelecem. E isto depende, em grande medida, da perspetiva como se aborda um “acontecimento”. Por exemplo, da mesma forma que a riqueza nas mãos de um tolo se torna inútil ou destrutiva e a doença, paradoxalmente, pode levar o homem, por vezes, a valorizar a vida e tomar consciência de si mesmo, assim, também, o crime torna-se um mal se abordado, unicamente, numa perspetiva jurídico-penal. Contudo, será útil quando encarado sob o espectro da criminologia e enquanto fenómeno de interesse político-criminal. Pois, tratando-se o crime de algo que foge ao nosso controlo, conquanto inevitável e incontrolável, cabe-nos, portanto, identificar e ter em linha de conta todos os aspetos que lhe estão subjacentes e constituem fatores facilitadores para a sua materialização. E deste modo, intervir para a sua correcção, através da sua prevenção.
O caso do advogado Amadeu Oliveira (AO) é paradigmático de como a falta de uma abordagem, também, criminológica pode enviesar o tratamento de uma situação, que, para além de jurídico, tem respaldo “político social e criminal”. E acarretando prejuízos, nos moldes já aludidos.
Por conta disto, cegaram-se as mentes e a racionalidade e perde-se, mais uma vez, a “soberana” oportunidade de “ver” as falhas de que vestem o nosso “sistema-de-justiça”, para as necessárias correcções.
Imprudentemente, e de uma forma deletéria, têm-se escusado do necessário esforço adicional, como aconselha o jurista João Félix Cardoso. Este esforço adicional, pressupõe-se, para além da interpretação de uma realidade processual, que deve, amiúde, extrapolar a norma em si, uma “leitura” fora do campo, exclusivamente, normativo-penal ou processual-penal. É preciso fazer-se uma abordagem sociológica, sistémica e mais criminológica, que ao caso se impõe, e tirar as devidas lições e consequentes ilações.
Não vamos premiar, de modo algum, o advogado AO pela sua atuação, que a configurar crime deve ser tratado como tal. Porém, é preciso reconhecer a “pertinência” e a “utilidade” da sua acão, cujo resultado constitui uma sublime oportunidade para o país perceber as falhas a nível da segurança de suas fronteiras e encetar uma “mega” e séria sindicância ao trabalho dos servidores da nossa justiça e da nossa SEGURANÇA. E reconhecer, porque não, sem complexo, as deficiências, mesmo que ínfimas, que infestam o nosso sistema judiciário, sanando-as, por forma a trazer e restabelecer a confiança dos cidadãos na nossa JUSTIÇA.
Sendo certo que é preciso uma mudança mais profunda para recompor o estado da justiça. Aliás, há décadas que movimentos criminológicos, cada vez mais organizados, aceram críticas contra a atual justiça penal, que dizem desajustado e contraditório na sua doutrina, e peleiam por um novo modelo de reação ao crime, nomeadamente a Justiça Restaurativa.
Porém, este básico, e mais urgentes, exercício, que aqui se propõem, deverá servir, por ora, para o propósito imediato e concorrer para a vida harmoniosa e perene da nossa sociedade. Pois, uma relação distante e indiferente das instituições públicas para com os cidadãos e a desconfiança exacerbada, que daí resultam, poderão, como defendem alguns, desembocar em correntes ideológicas que comungam de ideias extremistas, muito perniciosas para a estabilidade de qualquer país.
Assim como o AO, outros tantos estarão, igualmente, dispostos a enfrentarem a nossa JUSTIÇA a pretexto de uma melhor JUSTIÇA.
Terão razão?
José Luís Vaz
Licenciado em Criminologia e Segurança Pública.
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