A manifestação “Di Povo pa Povo” é uma lufada de ar fresco no nosso panorama cívico. É um exemplo de cidadania ativa que deve ser respeitado e fortalecido. Mas para que o movimento alcance seu potencial transformador, é fundamental que abra as portas para todos os cidadãos, sem exceção. A verdadeira força de um povo está na sua capacidade de se unir acima das diferenças partidárias, religiosas, ideológicas ou sociais. E essa união só será possível quando reconhecermos que todos fazem parte do mesmo Cabo Verde, inclusive aqueles com quem discordamos. A mudança que queremos para o país só será possível com inclusão. E a democracia que merecemos só será real quando a voz do povo for de todos, sem filtros, sem medo e sem exclusões.
A tentativa de exclusão de simpatizantes, militantes de partidos políticos e profissionais de política de manifestações populares levanta um debate urgente sobre a verdadeira natureza da participação cidadã em Cabo Verde.
Em tempos de inquietação social e crescente insatisfação popular, a manifestação do movimento “Di Povo pa Povo”, realizada em várias ilhas do país sob o lema “Gossi ké hora”, surge como uma resposta legítima e necessária ao sentimento de abandono e desconexão entre o povo e os seus representantes.
Desde já, deixo o meu reconhecimento e parabéns a todos os cidadãos envolvidos nesta iniciativa, pela coragem, pela capacidade organizativa e pelo sentido cívico demonstrados. O objetivo declarado do movimento é a união do povo cabo-verdiano. Mas aqui nasce uma reflexão fundamental: que tipo de união é essa se já começa com exclusões?
Além do voto
Num regime que se proclama democrático, como o de Cabo Verde, o poder político é exercido em nome da população. Contudo, é preciso lembrar que isso não significa que o povo deva se limitar a votar de tempos em tempos e, fora disso, manter-se em silêncio. Pelo contrário: enquanto membros ativos do Estado, os cidadãos possuem e devem exercer direitos civis e políticos. Isso inclui a liberdade de expressar anseios, reivindicações, necessidades e opiniões. A democracia plena exige participação constante, crítica e consciente.
Infelizmente, o que se observa na prática é um cenário contraditório. Muitos dos que ocupam cargos de decisão parecem defender, por palavras, ações ou omissões, que o povo deve ser controlado “para o seu próprio bem”. Essa postura, que remete a um autoritarismo velado, revela uma hipocrisia alarmante e uma gritante ausência de ética no trato com questões fundamentais da vida em sociedade.
Como é possível conciliar essa visão com os princípios democráticos que tanto se celebram? A resposta é simples: não é possível. É um contrassenso inaceitável. Em qualquer país que se afirme livre e democrático, não pode haver espaço para obstrução da participação cívica. O direito de eleger e ser eleito, de se manifestar e questionar, deve ser protegido e incentivado como forma legítima de fortalecer a democracia, corrigir os erros dos gestores do poder e contribuir para uma administração mais transparente, justa e eficiente.
Em Cabo Verde, no entanto, causa estranheza o comportamento passivo das manifestações. Há uma apatia generalizada, como se o povo estivesse resignado ou desencorajado a lutar por mudanças. Mais intrigante ainda é constatar que, frequentemente, o número de agentes da polícia destacados para acompanhar esses protestos supera o número de manifestantes presentes. O que isso diz sobre o nosso sistema democrático? Estaremos a proteger a ordem ou a reprimir a liberdade?
É urgente repensar o papel da participação popular em Cabo Verde. A cidadania não pode ser exercida apenas na cabine de voto. A rua, a praça pública, os meios de comunicação e as plataformas digitais também são espaços legítimos de expressão política. Reivindicar direitos, cobrar transparência e exigir responsabilidade dos governantes não é um ato de desobediência é um exercício de cidadania.
O paradoxo das manifestações “exclusivas”
A minha maior inquietação em relação ao movimento “Di Povo pa Povo” é esta: por que razão simpatizante, militantes ou mesmo políticos não podem participar e aproveitar livremente das manifestações?
A acusação de “aproveitamento político” é constantemente usada para justificar esta exclusão. Mas sejamos honestos: todos os cidadãos têm direito à manifestação, independentemente da sua filiação partidária ou ideológica. Militantes e simpatizantes de partidos também são povo. Políticos também são cidadãos.
A tentativa de “purificar” as manifestações retirando delas qualquer presença política ou partidária é ingênua e, no limite, antidemocrática. Nenhuma sociedade se transforma ignorando ou excluindo aqueles que detêm o poder de decisão. Precisamos de todos.
O perigo de dividir o povo
Quando se cria a ideia de que só “quem não é militante ou político” pode fazer parte do movimento, cria-se uma distinção artificial e perigosa entre “o povo de verdade” e “o resto”. Mas o povo cabo-verdiano é diverso, plural, multifacetado. Dividi-lo é enfraquecê-lo.
Além disso, se o objetivo é mudar políticas públicas, corrigir erros de governação e pressionar por soluções, é imprescindível o envolvimento dos políticos. Afinal, são eles que elboram leis, executam orçamentos e determinam os rumos do país.
Não é possível exigir mudanças profundas sem envolver os protagonistas da mudança. E excluir essas pessoas do processo é, no mínimo, incoerente.
União de verdade é com todos
A manifestação “Di Povo pa Povo” é uma lufada de ar fresco no nosso panorama cívico. É um exemplo de cidadania ativa que deve ser respeitado e fortalecido. Mas para que o movimento alcance seu potencial transformador, é fundamental que abra as portas para todos os cidadãos, sem exceção.
A verdadeira força de um povo está na sua capacidade de se unir acima das diferenças partidárias, religiosas, ideológicas ou sociais. E essa união só será possível quando reconhecermos que todos fazem parte do mesmo Cabo Verde, inclusive aqueles com quem discordamos.
A mudança que queremos para o país só será possível com inclusão. E a democracia que merecemos só será real quando a voz do povo for de todos, sem filtros, sem medo e sem exclusões.
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