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Segunda epístola aos poetas do meu país
Cultura

Segunda epístola aos poetas do meu país

porque, entre infinitas ruínas, / entrançados os vínculos / que o terror cindiu, guardaste / as últimas palavras desses / que atravessaram as águas do verde / cabo para a pátria que há-de ser.

Acorda, absorto poeta;

tu que ao apagar das luzes

emudeces também

na fila de trás,

faz-te agora à pedra e ao pau,

por saberes que este mundo mau

é do lobo e do lacrau,

e o tempo admonitório

te espreita, poeta,

e por tropos que alinhaves,

pressagos, escapas à íngreme derrota.

 

Toma nota:

onde golfa, claro, o sangue do extermínio,

acolhe-se também a mais subtil ilusão,

que incuba a dúvida, finta a razão

lapidada do lado onde a vida dessangrara

e a temeridade esteve a soldo

duma negra glória.

 

É a descer, poeta,

que te dás conta como estreitas

são as veredas e enganosos os sinais,

mas desembocas onde não se leiloa

a reparação, pois a desova do terror

constelou cada pedra do teu ser.

 

Desce agora mais fundo, poeta:

o tempo exige que afeiçoes a lâmina

à intérmina rebentação do murmúrio

inevitável. Não compres o conforto

do silêncio, poeta, nem que o olvido

se encarnice sobre gerações

de danados, ou o deus acenda flashes

para a tua restrita glória;

 

é cedo, poeta, que o teu empenho

assinala o sangue dos séculos

(desses que em desabrido rasgão

 imprimem sobre a tua pele a precoce

vocação para o desmoronamento)

e a demorada luz te diz que agora

termina o exílio,

 

porque, entre infinitas ruínas,

entrançados os vínculos

que o terror cindiu, guardaste

as últimas palavras desses

que atravessaram as águas do verde

cabo para a pátria que há-de ser.

 

 

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