Rayanne tem 9 anos e vive na zona de Alto Santa Cruz em Espargos, Paulo na zona periférica de Santa Maria. Os pais trabalham em regime de turnos num hotel. Sem onde ficar durante o dia, as crianças passam as tardes a vaguear pela cidade, pedindo moedas aos turistas. Quando o turismo sobe, a vida deles, como a de muitas outras crianças, continua no rés-do-chão.
O crescimento turístico no Sal agrava desigualdades e revela ausência de políticas sociais eficazes.
Turismo que cresce, exclusão que se aprofunda
De que serve celebrar o aumento contínuo de turistas na ilha do Sal, fenómeno que se intensificou após a pandemia, se o lado social continua a ser completamente ignorado?
A expansão do setor turístico, embora impulsione a economia, não se traduz automaticamente em desenvolvimento humano ou justiça social. O Sal, como território exposto a um turismo de massas, exige uma abordagem diferente, mas o que se verifica é a aplicação de modelos genéricos, desenhados para ilhas com realidades totalmente distintas.
Um erro de política: o Sal tratado como todas as ilhas
O Sal e Boa Vista, em menor grau, enfrentam desafios únicos: pressão sobre serviços públicos, habitação, saúde, segurança e apoio social. Ainda assim, continuam a aplicar-se ao Sal as mesmas fórmulas e critérios de financiamento utilizados em concelhos do interior de Santiago.
Exemplo gritante disso é o facto de concelhos como Santa Catarina de Santiago(335 Milhões de Escudos) receberem mais verbas do Fundo de Financiamento Municipal do que o concelho do Sal(225 Milhõesde Escudos). Ignora-se que os encargos sociais aqui são superiores. A justiça orçamental exige critérios ajustados à carga real, e não a lógicas político-partidárias.
Famílias desestruturadas, mães sobrecarregadas, crianças sem apoio
Enquanto se discursa sobre “turismo de excelência”, a degradação social alastra-se: crianças a pedirem nas ruas, violência nas escolas e um aumento silencioso da prostituição. Esses problemas, ainda que desconfortáveis, precisam ser enfrentados com coragem.
Muitos pais, sobretudo mães trabalham longas horas na hotelaria e restauração, sem horários compatíveis com a vida familiar. Sem ATLs (Atividades de Tempos Livres permanentes e não sazonais e todos privados), os filhos são deixados à sua sorte. Estruturas como os ATLs seriam soluções simples e eficazes para acolher estas crianças com segurança, promovendo o seu desenvolvimento e aliviando a pressão sobre as famílias.
Além disso, a exclusão de disciplinas como “Formação Pessoal e Social” e “Educação para a Cidadania” dos currículos escolares está a deixar os alunos sem ferramentas fundamentais para desenvolver empatia, consciência social e valores de convivência.
Nos últimos anos, foram aplicadas várias reformas na educação, mas muitas delas seguiram uma lógica puramente técnica e conteudista, removendo disciplinas essenciais para a formação integral dos estudantes. Estas áreas, que deveriam ser consideradas estruturantes, foram simplesmente descartadas.
Agora, sugere-se a inclusão de uma disciplina de “Moral”, mas de forma opcional, como se a construção de valores fosse uma escolha, e não uma necessidade coletiva.
Como podemos formar cidadãos conscientes, justos e empáticos, se a escola se preocupa apenas em “gerir conteúdos” e não em cultivar valores essenciais à vida em sociedade? Estamos a transformar a escola num espaço mecânico, onde o que importa é cumprir metas curriculares, esquecendo que a verdadeira missão da educação é formar seres humanos plenos, preparados não só para o mercado, mas para a convivência, o respeito e o bem comum.
Responsabilidade social não é caridade de vitrine
A responsabilidade social das empresas, sobretudo dos grandes hotéis, precisa de ir muito além de campanhas simbólicas ou ações pontuais. Não basta oferecer prémios às crianças em épocas festivas, distribuir brindes em escolas ou fazer doações esporádicas e depois exibi-las nas redes sociais como troféus de virtude. Isso não é responsabilidade social verdadeira, é marketing com fins fiscais e reputacionais.
A responsabilidade social exige compromisso contínuo e estruturado com as comunidades em que as empresas atuam, especialmente num setor como o turismo, que depende diretamente da estabilidade e do bem-estar social do território.
Uma medida concreta seria a redução da carga horária para mães solteiras ou agregados familiares vulneráveis, permitindo-lhes acompanhar de perto a vida dos filhos. Esse esforço poderia ser compensado pelo Estado através de benefícios fiscais, reconhecendo a função social que essas empresas desempenham ao apoiar os seus trabalhadores.
Mas é preciso ir mais longe: a responsabilidade social deve incluir, por exemplo, apoio ao estudo para funcionários em situação de vulnerabilidade, patrocínio de bolsas de estudo para os filhos dos trabalhadores, pagamento de propinas em instituições de ensino, e até a criação de espaços de lazer e educação não formal para as crianças durante os horários de trabalho dos pais.
Esse tipo de investimento não é um custo: é uma ação preventiva e estratégica. É preferível apoiar uma mãe hoje do que lidar amanhã com as consequências sociais de um jovem sem acompanhamento, sem referências, e mais exposto à marginalização. Prevenir será sempre mais eficaz, e muito mais barato, do que remediar.
Políticas com visão: preparar o futuro, não reagir ao passado
Em países desenvolvidos, políticas públicas são desenhadas com foco na prevenção. Cabo Verde precisa de aprender com esses exemplos: planear antes do colapso, investir antes do desespero.
O turismo gera empregos, sim, mas a que custo? Vidas familiares desestruturadas, ausência de tempo para educar, crianças sem rumo. Para muitas famílias no Sal, não há alternativa: é hotel ou nada.
É urgente identificar individualmente cada criança em situação de risco e garantir acompanhamento familiar próximo. Muitas vivem com mães solteiras sem rede de apoio contínua, sem orientação, sem acesso a atividades educativas. Cada caso precisa de soluções ajustadas e sensíveis à sua realidade.
Sabemos que não se resolve tudo de uma vez. Mas é possível reduzir significativamente o número de pessoas empurradas para a exclusão. Com vontade política, com equipas no terreno e com visão estratégica.
Desenvolvimento sem inclusão é ilusão
Prometer crescimento económico sem garantir justiça social é construir um castelo sobre areia: bonito à vista, mas frágil na base. Mais cedo ou mais tarde, desmorona.
O Sal não precisa de mais placas de inauguração, festas para mostrar serviço ou campanhas promocionais que escondem a realidade. Precisa, sim, de investimento social sério, planeamento com visão de futuro e compromisso real com as pessoas que aqui vivem e sustentam, com esforço diário, a imagem turística do país.
Se queremos continuar a atrair turistas, temos primeiro de cuidar de quem cá está, das famílias que trabalham longas horas nos bastidores da indústria turística, das crianças esquecidas nas ruas, dos jovens sem oportunidades reais, dos que continuam a dar tudo ao país e a receber migalhas em troca. Sem justiça social, não há turismo sustentável. Sem dignidade humana, não há desenvolvimento possível.
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