Breve contextualização histórica e política
Diversos estudos têm destacado a Democracia como um processo caracterizado por uma ampla liberalização política e económica do regime do qual cidadãos individualmente considerados e grupos de cidadãos organizados passam a exercer influência na vida política do país por meio de competição eleitoral para a formação da vontade popular (LIPSET, 1959; SCHUMPETER, 1961; DAHL, 1971).
Esse amplo processo de liberalização que tem assolado o mundo, sobretudo, os países desenvolvidos desde o início do século XVIII e que terá intensificado após a II Guerra Mundial ao atingir países em vias de desenvolvimento parece estar na origem de novas ondas de democratização que têm atingido numerosos píses em desenvolvimento levando renomados cientistas políticos a apelidaderem esses países de “novas democracias” ou “democracia da terceira onda” (HUNTINGTON, 1994).
Na realidade, ainda que longínqua, a gênese da democracia cabo-verdiana pode ser localizada nos meados da década de 1970 no âmbito da qual um conjunto de acontecimentos com epicentro no sul da europa rapidamente se alastrou a outras regiões do mundo, designadamente, ao leste europeu, a áfrica e a américa latina dando assim a origem àquilo que se convencionou chamar-se da terceira onda de democratização.
De facto, esses acontecimentos que se traduziram em motivações de ordem políticas, económicas, culturais e sociais parecem estar na origem das transições democráticas de um número considerável de países que abraçaram os princípios fundamentais da democracia por meio da adopção de uma engenharia institucional que estabelece as principais regras e normas de acesso a cargos políticos num cenário de liberdade e competição política.
Em Cabo Verde, a literatura especializada em transitologia (ÉVORA, 2004) mostra que o processo de transição democrática iniciou nos finais dos anos 1980 e culminou com a queda do então célebre art. 4º da extinta Constituição de 80 que consagrava o Partido Africano da Indepenência de Cabo Verde (PAICV) como a única força dirigente do Estado e da sociedade. A queda do referido artigo abriu caminho para a instauração da democracia representativa e de base liberal ao consagrar a competição entre partidos políticos, cidadãos independentes e grupos de cidadãos organizados como características distintivas e condição essencial para o acesso a cargos políticos do novel regime.
Durante o período da implantação democrática as isnstituições passaram a ser encaradas como condição indespensáveis para a emergência, sobrevivência e longevidade de regimes democráticos num contexto de desacreditação e estagnação política, económica e social provocado por regimes autoritários e que pareciam dar sinais de colapso por não conseguirem transformar as demandas e aspirações sociais em políticas e resultados concretos que contribuissem para o incremento do nível de bem-estar social do povo.
Nestes termos, as novas democracias não se descuraram em instalar e fortalecer suas instituições democráticas usando para o efeito um argumento muito assente na literatura política moderna de que só instituições fortes seriam capazes de garantir a estabilidade política que seria fundamental para o progresso e avanço sociais (DAHL, 1971; FUKUYAMA, 2004). Assim, a partir da abertura política do regime nos inícios dos anos 90 do século passado, assistiu-se em Cabo Verde um grande entusiasmo em relação às instituições democráticas traduzidas na aprovação e implementação de medidas legislativas que se destinavam a criar e a fortalecer instituições basilares da democracia.
A título ilustrativo desse grande entusiasmo institucional, considre-se, por exemplo, a aprovação (por maioria de dois terços) da Lei dos Partidos Políticos e da Lei Eleitoral, a criação e implementação da Comissão Nacional de Eleições (CNE) permanente a instalação do judiciário independente em relação ao Poder Político, a instalação do Tribunal Constitucional e Tribunais da Relação, o fortalecimento da instituição Polícia, a instalação do Poder Local independente e autônomo, a reforma e fortalecimento do Legislativo enquanto centro nevrálgico da democracia entre outras medidas institucionais criadas e implementadas durante o período democrático.
De facto, Cabo Verde registou um grande avanço na dimensão institucional da democracia nunca antes visto no Arquipélago. Em grande medida, esses avanços institucionais são hoje responsáveis pela boa avaliação que conceituadas organizações internacionais fazem da democracia cabo-verdiana. Na verdade, desde a instauração democrática, o país não experimentou nenhum bloqueio ou crise institucional grave que pudesse por em causa as conquistas democráticas e fazer ressurgir atitudes e comportamentos autoritários que ainda permanecem na consciência de um número consideravel daqueles que se auto-apelidam de democrátas.
Não seria escusado afirmar-se que parte da boa avaliação da democracia cabo-verdiana deve-se a essa grande estabilidade institucional experimentada pelo país associada à grande letargia social historicamente internalizada e vivenciada pelos cabo-verdianos que os fazem ser, segundo uma literatura bem conhecida entre nós, “povos de brandos costumes”.
A boa avaliação da democracia cabo-verdiana aparece mais uma vez no Relatório Anual da conceituada revista británica “The Economist Intelligence Unit” que coloca Cabo Verde na 26ª posição em 167 países liderando assim o grupo de países lusofonos e surgindo a frente de países do velho continente com tradição democrática mais longeva como a França e a Itália. Segundo a Revista, em toda África, Cabo Verde só perde para as Seycheles que ocupam a 1ª posição no ranking da avaliação das democracias africanas.
Na verdade, os resultados dos 5 indicadores avaliados pela Revista corrobora a asserção defendida neste artigo de que o notável avanço da dimensão institucional é inversamente proporcional ao avanço na dimensão substantiva da democracia em Cabo Verde. Os dados do relatório recentemente publicado pela Revista referente ao ano de 2018 revelam que Cabo Verde consegue ser muito bem avaliado em 3 indicadores quais sejam: (i) Processo Eleitoral e Pluralismo (9.17/10); (ii) Funcionamento do Governo (7.86/10); (iii) Liberdades Civis (8.82/10) e pior avaliado nos restantes dois indicadores quais sejam: Participação Política (6.67/10) e Cultura Política (6.88/10).
Almond & Verba (1963) no célebre estudo intitulado The Civic Culture definem a cultura política como sendo um compósito de orientações subjectivas dos cidadãos, inclusive valores, crenças, conhecimentos e juizos sobre o sistema político e papéis que desempenha na sociedade e consideram essas orientações de extrema relevância para a estabilidade do sistema democrático. Na realidade, vários estudos de opinião publicados em Cabo Verde como, por exemplo, os do Afrobarómetro, mostram que a maioria esmagadora dos cidadãos preferem a Democracia, mas quando questionados se conhecem os seus dirigentes e o modo de funcionamento do sistema democrático muitos demonstram um grande desconhecimento o que sugere a ocorrência de um apoio ainda muito difuso ao sistema porque não específico ao ponto dos cidadãos conseguirem direccionar suas demandas por meio de canais adequados e com necessária eficácia que se espera em regimes democráticos.
De facto, a participação e a cultura política têm sido apontadas como o “calcanhar de Aquiles” da democracia cabo-verdiana e um grande handcap no processo de consolidação democrática do país na medida em que os avanços nessas áreas têm sido muito tímidos o que não favorece o fortalecimento e ampliação da democracia. Há que realçar os meritórios trabalhos (incluindo formações, workshops, cursos de verão, palestras, etc.) que, ultimamente, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) vem fazendo no sentido de disseminar os conhecimentos sobre o sistema democrático e contribuir para a emergência de cidadãos mais participativos e conscientes.
Uma boa parte da literatura sobre processos sociais, participativos e sociedade civil em Cabo Verde tem vincado a ideia da letargia da cidadania (COSTA, 2013) pelo facto dela não se constituir em uma esfera actuante e reivindicativa capaz de exigir os titulares de cargos públicos a efetivação de direitos plasmados em vários textos constitucionais. Nesta lógica, resulta cada vez mais evidente a ideia de que, efectivamente, o grande avanço registado na dimensão institucional da democracia não tem acompanhado o mesmo avanço na dimensão social ou substantiva da democracia ao ponto de reverter a situação da letargia histórica herdada de modelações e configurações estatais marcadamente autoritárias e que têm acompanhado a formação do povo das ilhas ao longo de vários séculos.
A esse fraco avanço na dimensão social/substantiva da democracia cabo-verdiana, acresce-se o facto de o Poder que se pressupõe ser do Povo não ser, efectivamente, exercido por ele. Cria-se uma grande ilusão no povo de que é ele quem tem o poder e quem mais ordena ao passo que o que realmente acontece é que ele se afigura apenas como um instrumento de legitimação do poder da Elite cabo-verdiana.
Em 28 anos de democracia em Cabo Verde o Povo ainda não consegue exercer sua soberania para além do mecanismo convencional e tradicional da democracia qual seja o voto em eleições períodicas e universais. Em sentido oposto, nas democracias avançadas o Povo dispõe de mecanismos alternativos que o permita exercer o Poder e contribuir para a correção das distorções provocadas pela democracia representativa.
Dos Estados Unidos da América ao velho continente, experiências como as conferências temáticas, as comissões e conselhos de políticas públicas e outras instâncias colegiadas não apenas abundam como ocorrem de forma natural e sistemática e constituem espaços de repartição e equilibrio de poderes entre cidadãos comuns e entidades governamentais. Nesses países, há um consenso alargado e assumido por dirigentes políticos de que os cidadãos comuns dispõem de capacidades para se envolverem em processos decisórios e participativos mais amplos do que a mera participação em atos eleitorais que não geram maiorias estáveis e permanentes porque conjunturais conforme expressos no célebre dilema de Condorcet (1785).
Por outro lado, há já vários anos que a teoria democrática contemporânea vem demonstrando que a democracia representativa vem atravessando uma grande crise de resultados (CROZIER; HUNTINGTON & WATANUKI, 1975), provocada sobretudo pela sobrecarga de demandas e que esteve na gênese de grandes mobilizações populares contra o seu funcionamento como, por exemplo, aquele ocorrido em maio de 1968. A par dessa crise de resultados evidenciado no célebre Relatório da Comissão Trilateral sobre a Democracia, emerge a partir dos meados dos anos 1990 outra crise da democracia a que se convencionou chamar-se de “crise da Representação” (HIRST, 1992). Essa crise motivada pelo distanciamento cada vez maior entre representantes e representados teve repercussões diretas na vida de cidadãos que não conseguem ver suas demandas transformadas em outputs que almejam ver alcançados.
Em Cabo Verde parece haver sinais, ainda que muito esporádicos, dessas crises e isso poderá estar na origem de várias reivindicações de uma certa cidadania que aspira melhorias das condições de vida, descentralização do Poder e maiores resultados da ação governativa tanto em nível local quanto nacional.
Na verdade, as várias manifestações que ultimamente têm acontecido um pouco por todos os concelhos do país convergem em um ponto comum: a demanda pelos resultados concretos da política e a necessidade de ser conferido ao povo vez e voz nas decisões que afetam suas vidas e seus destinos. A este respeito, uma questão importante e que não pode ser negligenciada tem a ver com os recentes alertas do Banco Mundial (BM) sobre o risco de instabilidade social no país caso condições materiais importantes (emprego, habitação, renda, saúde) não forem superadas.
Ronald Inglehart (1977) em seu estudo sobre modernização nos mostra que enquanto valores materiais não forem totalmente satisfeitas as condições para o desenvolvimento sustentável e a passagem para os valores pós-materiais (ambiente, laços sociais, auto-expressão, qualidade de vida) são remotas ou escassas.
Voltando ao Poder dos cidadãos na democracia, o pressuposto acima referido de que o povo dispõe de capacidades para se envolver em processos participativos e decisórios mais amplos do que a mera participação eleitoral precisa ser materializado para que ele (o povo), efetivamente, passe a exercer a soberania que lhe assiste. À semelhança do que acontece nas democracias avançadas, não se trata da substituição e muito menos da eliminação dos mecanismos convencionais da democracia representativa. A solução para a falta de poder do povo a que essas democracias chegaram foi a criação, regulamentação e implementação de espaços alternativos com forte potencial democratizante e que conferem aos cidadãos comums a possibilidade de influenciar decisões e políticas públicas fora do período eleitoral e pela via da discussão e deliberações públicas.
Desde Habermas (1984) a Avritzer (2007), há toda uma literatura desenvolvida sobre instituições participativas e que mostra como o sistema democrático pode ser modificado ao ponto de facultar espaços que possibilitam maior participação e deliberação políticas por parte dos cidadãos comuns contribuindo assim para a diminuição do sentimento de impotência dos cidadãos gerada pela democracia representativa. Portanto, enquanto este sistema se mantiver sem modificações e/ou alterações profundas e, enquanto se muda para ficar tudo como estava, os cidadãos seguirão sendo meros instrumentos de legitimação de certa Elite do Poder em Cabo Verde e, porconseguinte sem “Poder” e importância nenhuns no actual ritual democrático praticado no país.
[1] PhD Political Science & Researcher in: “Grupo de Pesquisa sobre Processos Participativos na Gestão Pública-UFRGS”.
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