Tututa Évora: A Força Silenciosa que Fez do Piano Voz de Cabo Verde
Ponto de Vista

Tututa Évora: A Força Silenciosa que Fez do Piano Voz de Cabo Verde

Cabo Verde tem o dever de não deixar o nome de Tututa cair no esquecimento. Porque sem memória, não há cultura. E sem cultura, não há futuro. Precisamos dar a conhecer esta mulher aos jovens. Mostrar-lhes que o talento não tem género, que a excelência pode nascer nas ilhas mais pequenas, e que há heroínas silenciosas que deixaram marcas profundas na nossa história.

Num tempo em que a música era, quase sempre, território dos homens e os palcos eram poucos para as mulheres, Epifânia de Freitas Silva Ramos Évora, conhecida por todos como Dona Tututa, ousou fazer história. Fê-lo sem ruído, sem pretensão, apenas com um piano, uma sensibilidade extraordinária e uma fidelidade inabalável à alma cabo-verdiana.

Há nomes que atravessam o tempo e se inscrevem na memória coletiva de um povo não apenas pela sua arte, mas pela dignidade serena com que viveram. Tututa é um desses nomes. Tocava com a alma, como quem conversa com o silêncio e traduz saudades em harmonias. Era mais do que uma pianista excecional: era uma tradutora do sentimento coletivo. Pegava na morna, na coladeira, no lamento e na esperança, e transformava tudo isso em melodia. Cada nota sua dizia mais do que muitas palavras.

Nascida no Mindelo, mas radicada na ilha do Sal, Tututa foi a primeira mulher a gravar um disco de música cabo-verdiana ao piano, abrindo caminhos onde antes não havia trilho. A sua música atravessou fronteiras sem fazer barulho, porque a sua grandeza não se media em fama, mas em profundidade. Numa época em que as mulheres raramente tinham espaço nas lides musicais, sobretudo no domínio instrumental, impôs-se com talento e carácter. Deixou uma marca de resistência tranquila, de feminilidade firme, de identidade cultural enraizada.

A sua influência não se limitou às salas de concerto ou gravações raras. A sua casa foi escola. A sua presença foi farol. Inúmeros músicos passaram por ela, aprendendo não apenas técnica, mas a respeitar a música como expressão da alma cabo-verdiana. Entre esses músicos, também os seus próprios filhos, dando continuidade a um legado de excelência.

Na Escola Municipal de Artes Tututa, que orgulhosamente carrega o seu nome, a sua memória está viva: em cada sala, em cada nota solta, em cada jovem que descobre que a música também é um ato de identidade e afirmação. Tututa pertence a uma estirpe rara de artistas que não precisaram de grandes palcos para se tornarem gigantes. A sua grandeza está na autenticidade, na doçura com que transformava cada nota numa oração, cada melodia num espelho da identidade crioula. Foi, acima de tudo, guardiã de um património imaterial que nos ajuda a entender melhor quem somos enquanto povo.

Recordo com emoção aquela que penso ter sido a última grande homenagem que lhe foi feita em vida, na ilha do Sal, por ocasião do seu aniversário. Nessa noite, foi apresentado ao público um documentário sobre a sua vida. Ela estava presente. Alegre, sorridente, cheia de energia, subiu ao palco e tocou com tal vigor e entrega, que ninguém imaginaria estar diante de uma mulher daquela idade. A sua audácia, a energia contagiante, a alegria genuína, tudo parecia dizer que Tututa, mesmo tendo passado por muitas provações, soube fazer da vida música e da música alegria.

Hoje, ao evocarmos o seu nome, não fazemos apenas memória. Renovamos o compromisso de preservar e divulgar o legado de Tututa Évora, ensinando às novas gerações que a grandeza muitas vezes se revela na simplicidade, e que a cultura é uma herança viva que se honra com respeito e continuidade.

Cabo Verde tem o dever de não deixar o nome de Tututa cair no esquecimento. Porque sem memória, não há cultura. E sem cultura, não há futuro. Precisamos dar a conhecer esta mulher aos jovens. Mostrar-lhes que o talento não tem género, que a excelência pode nascer nas ilhas mais pequenas, e que há heroínas silenciosas que deixaram marcas profundas na nossa história.

Tututa vive.
Em cada acorde que ecoa nos pianos de Cabo Verde.
Em cada lágrima que cai ao som de uma morna.
Em cada mulher que ousa sonhar e tocar.
Em cada filho da terra que sente orgulho em ser parte desta história.
Tututa Évora foi, e continua a ser, um símbolo de elegância, resistência, humildade e génio musical.

À sua memória, o nosso respeito.
À sua obra, a nossa gratidão.
Ao seu exemplo, a nossa responsabilidade de continuar.

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Comentários

  • Miranda, 1 de Jul de 2025

    Pura verdade.
    Tututa tinha harmonia.
    Como dizia o mestre Senhor Luiz Rendall, hohe fazem-se muitas" garatujas" nos instrumentos, principalnente violão, mas não têm harmonia..
    Correm os dedos para cima e para baixo, para impressionar o pagode que desconhece a arte musical.

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