"Ainda estou aqui"
Elas

"Ainda estou aqui"

"Numa altura em que não muitas vezes falávamos sobre o empoderamento feminino, eramos apenas "rebeldes", lembro-me de termos reflectido sobre a dualidade da condição da mulher: se por um lado é o ser frágil, que deve ser protegido, por outro, é exigido dela capacidades extraordinárias como o perdão, a superação de traumas, a serenidade no caos, a capacidade de gerar e cuidar de vidas."

Eu e a minha amiga fomos ao cinema ver o interessante filme brasileiro "Ainda estou aqui", com a extraordinária performance da Fernanda Torres, e não deixamos de cumprir a nossa secreta tradição de "rir sobre os dramas da vida". Tem sido assim desde há 23 anos, quando nos conhecemos na cantina da Universidade Nova de Lisboa.

No inverno de 2004, no mesmo cinema, e posso até jurar que foi na mesma sala 6 que vimos o "Último Samurai", com o Tom Cruise. Um filme intenso, e com uma grande carga emocional. Lembro-me de uma cena muito triste em que uma viúva - Taka (Koyuki Kato) - foi indicada para cuidar do assassino do seu falecido marido. No meio de tanta angústia da situação, ela dirige-se ao ancião da aldeia no Japão e diz-lhe, num tom de súplica: "peço licença para tirar a minha vida".

Eu e a minha amiga demos uma gargalhada sonora que ecoou sobre a enorme sala tensa, cheia de pessoas consternadas com a condição miserável da viúva. Apesar de não termos detetado, na sala escura, nenhum olhar reprovador, foi possível sentir os murmúrios de indignação à nossa volta. Rapidamente retomamos a postura de seriedade, e alinhamos com o ambiente fúnebre a combinar com o momento do filme.

Guardámos as reflexões sobre a condição da mulher para o final da sessão.

Numa altura em que não muitas vezes falávamos sobre o empoderamento feminino, eramos apenas "rebeldes", lembro-me de termos reflectido sobre a dualidade da condição da mulher: se por um lado é o ser frágil, que deve ser protegido, por outro, é exigido dela capacidades extraordinárias como o perdão, a superação de traumas, a serenidade no caos, a capacidade de gerar e cuidar de vidas.

"Até para tirar a própria vida, a mulher tem de pedir licença ao homem. Forte triste!", disse a Anita, e rimo-nos despreocupadas, naquela noite fria de Janeiro.

"Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, venceu este domingo o Óscar de Melhor Filme Internacional

No "Ainda estou aqui" vimos a vida de Eunice Paiva (interpretada pela Fernanda Torres) mudar abruptamente de um dia para outro, e ela, na sua condição de "protegida" e desprovida de detalhes sobre as atividades do marido, foi obrigada a proteger e a cuidar dos 5 filhos, enquanto lutava pela libertação do marido. No meio desse processo, a frase "vai ficar tudo bem" é a arma que ela encontra para conservar a inocência das crianças, é a cortina que oculta a dor, a angústia e o desespero da dita fragilidade. Eunice manteve-se forte, lutou com as armas que ela mesma teve que criar, e seguiu com os filhos.

Durante o jantar, aquando dos comentários sobre o filme, eu comentei com a Anita: acho que um filme bom é aquele em que cada um consegue "pegar no seu pedaço e levar para casa".  Eu levei um grande pedaço para casa!

Contei-lhe então da minha mãe, também mulher que viu a sua vida mudar da noite para o dia, como tantas outras mulheres, na guerra de 7 de Junho, na Guiné-Bissau: Era de manhã, muito cedo, quando ouvimos os bombardeamentos junto à nossa casa, que era quase encostada ao palácio, onde vivia o então presidente da República. Estávamos todos reunidos na sala de estar, quando ouvimos o estrondoso barulho de mais uma bomba que caíra algures na cidade.

Lembro-me da minha mãe ter aconchegado os meus 2 irmãos mais novos, um em cada lado das suas costelas, e de ter usado as palmas das duas mãos para tapar os ouvidos dos seus meninos, como se as suas mãos de mãe tivessem o poder de impedir o som de infiltrar nos tímpanos dos seus pequenos. O estrondo fez tremer os vidros da sala, e eu reparei que os lábios da minha mãe balbuciavam qualquer coisa, muito baixinho, que me pareceu oração.

Nessa manhã, ninguém da nossa casa sabia o que se estava a passar em Bissau, nem mesmo o meu pai, que na minha cabeça entendia tudo sobre o mundo, tinha explicações para a confusão que caíra sobre a cidade. Senti falta do meu irmão Ireneu, que também percebia muitas coisas de gente grande. A Guerra agravou-se e tivemos que deixar a nossa casa, por um lugar mais seguro, longe da mira do palácio. Na altura pensei que em poucos dias estaríamos de volta. Apenas 6 anos depois consegui voltar para casa, só para visitar.

Estivemos alguns dias em casa da irmã do meu pai mas, em pouco tempo, a sensação de segurança começou a desaparecer, pois os bombardeamentos tornaram-se cada vez mais fortes e próximos. Nós, as crianças, já tinhamos incorporado o "treino de contingência": barricar debaixo das mesas, racionalizar a comida, estar sempre preparado para partir a qualquer momento, entre outras recomendações passadas pelo meu pai.

Mais tarde, quando uma bomba caiu próximo da casa da tia Lurdes, fugimos mais uma vez, e fomos abrigados pela Embaixada de Portugal, com o objetivo de sair do país. Não me lembro bem quanto tempo ficamos lá, mas sei que foram poucos dias. Connosco estavam várias outras famílias que procuravam segurança e uma alternativa, ainda que provisória, ao ambiente de fragilidade que se vivia em Bissau. Encontrei alguns amigos, o que me deixou animada, pelo facto de saber que não era apenas a minha família que estava à procura de abrigo.

No contexto de guerra tudo é racionalizado: os movimentos, a comida, os risos, acho que até as palavras tambem tinham limites. O meu pai falava pouco connosco, apenas para dar instruções. A cara dele tinha sempre um semblante de preocupação, mas em nenhuma altura o vi desesperado. Ou talvez eu é que não conhecia o semblante de desespero dele.

Ele e a minha irmã Ana, a mais velha dos 5 filhos que se encontravam no país, falavam com mais frequência, pois apesar de lhe dizerem que era menina e que estava na posição de ser cuidada, naqueles dias de guerra, ela exigiu ser incluída nos assuntos de adultos.

No dia em que o meu pai teve de sair da embaixada para ir buscar os passaportes e dinheiro à nossa casa, a Ana vestiu-se de toda a sua coragem e rebeldia e enfrentou o Sr. Vaz: "eu não vou deixar-te sair sozinho daqui, pai! Ou vamos juntos, ou eu vou atrás de ti, depois de saires", disse-lhe, com firmeza. Acho que a guerra amadurece as pessoas...e também enlouquece...

A minha mãe, que ficou connosco no abrigo, estava tensa e apreensiva com o movimento estratégico do meu pai. Tenho a certeza que ela rezou muito, enquanto nos vigiava.

Entretanto serviu-se o almoço.

Lembro-me de cada um de nós ter segurado o seu prato descartável, numa fila ordenada, para receber o bocado de comida que estava a ser distribuída para todas as famílias. A minha mãe recebeu o seu prato, sentou-se ao pé de nós mas não tocou em nenhum grãode arroz. Ficou em silêncio a observar-nos, com aqueles seus olhos redondos, para garantir que todos iriam alimentar-se para aguentar o caminho. Em pouco tempo, reparou que o seu filho adolescente de 16 anos tinha devorado o prato, e ficado quieto, olhar para o resto dos irmãos. A minha mãe pegou no prato do meu irmão Jorge e, rapidamente, despejou quase metade da sua comida. A seguir, virou-se para nós e perguntou se queríamos mais um bocado. Ela ficou sem comer.

Mais tarde, a Ana e o papá voltaram com os documentos, mas diferente do que tinha sido planeado, não conseguimos embarcar no navio português. Apenas 2 dias depois conseguimos sair de Bissau, num navio de guerra francês. A minha família teve sorte: todos conseguimos partir no mesmo navio.

Nesse processo, vi mães entregarem os seus filhos a outras mães de confiança, num misto de coragem e desespero, para que estes pudessem sair do país para um lugar mais seguro. No nosso navio, reconheci duas amigas que não estavam acompanhadas dos seus pais.

Saímos de Bissau no final da tarde de 17 de Junho, com destino a Gâmbia. Enquanto o navio se afastava do porto, pensei nos meus amigos da escola e de escuteiro. Estava ansiosa por voltar a encontrá-los. Nunca mais voltei a ver alguns deles.

Este texto não é sobre a Guerra de 7 de Junho. Acho que ainda não tenho maturidade emocional para escrever sobre isso. Isto é sobre mulheres. Sobre as diversas situações em que ter força e coragem nem sequer é uma opção, mas sim o único caminho. É sobre as milhares Eunices Paivas que existem pelo mundo, que todos os dias são obrigadas a "parir a coragem" para sair da vulnerabilidade e "tocar a vida" com e pelos filhos.

Agradeço a sorte de ter tido, ao longo da minha caminhada, exemplos de mulheres de força, que sabem que todos os dias é dia de luta.

Desejo boa sorte para a equipa do "Ainda estou aqui" para a noite de Óscares e agradeço pelo excelente filme, que nos oferece um bocado da História.

 

* Jaky Vaz, 02 de Março de 2025, algures nos céus do Atlântico.

 

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Comentários

  • Ireneu Vaz, 3 de Mar de 2025

    Coisa que raramente faço, é chorar. Mas quase conseguiste me fazer escapar umas lágrimas. Seguramente deixarei cair mais tarde, quando sozinho estiver a sentir o que no publico, ainda não sei como se sente. Um lindo texto. Vale a pena continuar a vasculhar mais neste labirinto proibido de emoções vividas.

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  • Hermes B.Carvalho, 3 de Mar de 2025

    Excelente e emocionante texto,estimada amiga...que continues a brindarnos com estórias e exemplos marcantes de mulheres raras e magnificas como a sua querida Mãe.

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