A minha geração não viveu a guerra, mas colhe os frutos da luta. A minha filha Nicole conviveu com duas bisavós, e isso, para mim, é uma bênção rara. Ela recebeu delas moedas com carinho para comprar rebuçados e, sobretudo, recebeu bênção de quem sobreviveu para contar a história. Uma herança invisível mas valiosa. Hoje, ela cresce livre, com direitos e escola, sem ter de carregar lata à cabeça para buscar água ao poço. É por isso que, hoje, ao celebrar os 50 anos da nossa independência, não penso só em datas. Penso em pessoas. Penso na resistência das mulheres como as minhas avós, que fizeram tanto com tão pouco. Penso nos homens como o meu pai, que acreditaram num futuro possível, mesmo quando tudo dizia o contrário. Penso em todos os que foram esquecidos pelo sistema colonial, mas que nunca se esqueceram do valor da dignidade. Esse é o verdadeiro espírito da independência, não é apenas ter um hino e uma bandeira, é ter memória, é honrar quem veio antes de nós, é educar os nossos filhos com consciência.
Falar dos 50 anos de independência de Cabo Verde é, para mim, muito mais do que olhar para a bandeira hasteada ou ouvir discursos oficiais. É voltar à memória da minha família. É lembrar as histórias contadas pelas minhas avós, a “Mama Zina” e “Nhangoia”, que viveram os tempos da fome, da seca e do abandono do governo colonial português. É ouvir de novo a voz do meu pai, Pedro Alexandre, um jovem sonhador que acreditava que a liberdade era o mínimo que um povo digno merecia. Lembrava-se bem dos tempos em que tudo era proibido. Não se podia falar alto, nem pensar diferente. Era preciso obedecer, aceitar e calar. Pelos ideais da liberdade, ele lutou com firmeza, até que em 1991, a independência e a democracia finalmente se abraçaram, tornando Cabo Verde verdadeiramente livre.
Voltando ao tempo da colonização, a minha avó Nhangoia, mulher de fibra, contou-me que, mesmo durante a seca, tinham de pagar pela terra onde plantavam. Além da fome e da incerteza das colheitas, carregavam nas costas o peso dessa injustiça. Trabalhavam com fé, rezando pela chuva e pelo milho, mas parte do que colhiam nem era para alimentar os seus. Tinham de pagar ao português pelo direito de tentar sobreviver. E mesmo assim resistiram.
Ela ainda contou-me que, nos tempos da seca, se ia trabalhar para ganhar 3 escudos por mês. Era pouco, mas era melhor do que nada. Partiam cedo, com fome no estômago e fé no peito. Chamavam-lhe trabalho de estrada, mas era trabalho de resistência, de quem não tinha outra escolha. Trabalhar por tão pouco era humilhante, mas desistir era ainda pior.
A minha avó Zina, igualmente, uma mulher de fibra, emigrou para Angola com o meu avô. Não foi à procura de aventura, foi para fugir da fome. Como tantos outros cabo-verdianos, deixou a sua terra com o coração apertado e os olhos postos num futuro incerto. Levaram quase nada, além da esperança e da vontade de sobreviver.
Fugir da fome era, na verdade, um grito de liberdade. A liberdade de procurar vida onde a terra já não dava. A liberdade de não querer ver os filhos morrer de barriga vazia. E mesmo longe, a saudade nunca saiu de dentro dela. A terra, mesmo dura, continua a chamar quem é filho dela.
A história das minhas avós é a história de Cabo Verde. Um povo que, mesmo espremido entre a seca e a dureza do chão, encontrou sempre uma maneira de resistir, seja nas ilhas ou além-mar. Foram gerações que aprenderam a viver com o pouco, mas nunca deixaram de sonhar com o muito.
O meu pai soube bem o que era isso, estudou porque tinha um sonho maior do que as dificuldades que enfrentava. A escola muito poucas na altura e longe de casa, com a escassez de transporte, todos os dias, percorria quilómetros a pé, com os livros debaixo do braço, o sol a castigar-lhe a pele e a vontade firme no coração. Era assim que se aprendia naquele tempo. Estudar não era obrigação, era uma conquista. Um luxo para poucos, mas uma salvação para os que acreditavam que o saber podia mudar o rumo da vida.
Ele não teve facilidades. Teve foi coragem. Resistência. Determinação. E é disso que se faz a história do povo cabo-verdiano. De passos firmes mesmo quando o chão era duro. De fé, mesmo quando não havia garantias. De sede de aprender, mesmo com fome no estômago.
O meu pai aprendeu a ler quando muitos ainda não podiam. Construiu a sua vida com esforço e hoje, quando olho para trás, percebo que foi esse caminho feito a pé que nos trouxe até aqui. A liberdade também se conquista assim, com livros, com passos, com coragem.
Cresci a ouvir histórias de fome, de resistência, de fé. Histórias de um povo pequeno em tamanho, mas enorme na dignidade. E foi através dessas vozes que entendi por que o meu povo lutou pela independência.
Portugal governava Cabo Verde com mão de ferro através de um Governador nomeado, que era o representante direto do império. Esse modelo centralizado impedia qualquer forma de autonomia local real, e é exatamente contra isso que os movimentos independentistas, como o PAIGC, se ergueram.
A propósito disso, não posso falar de independência sem lembrar os Combates da Pátria, em particular, ao Amílcar Cabral. Homem de palavra firme, mente lúcida e coração entregue ao povo. Foi ele que nos ensinou que a luta não se faz apenas com armas, mas com consciência, com cultura, com identidade. Foi ele que nos disse que ninguém pode libertar um povo, senão ele próprio.
A Independência não é apenas um grito de vitória no dia 5 de Julho. É tudo o que veio antes, o sacrifício, o sonho, a coragem de quem acreditou. É tudo o que veio depois, o trabalho, os tropeços, as conquistas e as cicatrizes.
A minha geração não viveu a guerra, mas colhe os frutos da luta. A minha filha Nicole conviveu com duas bisavós, e isso, para mim, é uma bênção rara. Ela recebeu delas moedas com carinho para comprar rebuçados e, sobretudo, recebeu bênção de quem sobreviveu para contar a história. Uma herança invisível mas valiosa. Hoje, ela cresce livre, com direitos e escola, sem ter de carregar lata à cabeça para buscar água ao poço.
É por isso que, hoje, ao celebrar os 50 anos da nossa independência, não penso só em datas. Penso em pessoas. Penso na resistência das mulheres como as minhas avós, que fizeram tanto com tão pouco. Penso nos homens como o meu pai, que acreditaram num futuro possível, mesmo quando tudo dizia o contrário. Penso em todos os que foram esquecidos pelo sistema colonial, mas que nunca se esqueceram do valor da dignidade. Esse é o verdadeiro espírito da independência, não é apenas ter um hino e uma bandeira, é ter memória, é honrar quem veio antes de nós, é educar os nossos filhos com consciência.
Hoje, 50 anos depois, eu digo com o coração cheio, somos verdadeiramente livres. Mas não esqueçamos o caminho feito, nem as vozes que ecoam nas nossas raízes. Que a liberdade continue a ser pão repartido, terra cuidada, cultura celebrada, e sobretudo, promessa cumprida.
Por mim. Pela minha filha. Pelos meus avós. Por Cabo Verde.
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