Imperativo da Transformação: Um Olhar Crítico-Positivo sobre as Forças Armadas de Cabo Verde no Século XXI
Ponto de Vista

Imperativo da Transformação: Um Olhar Crítico-Positivo sobre as Forças Armadas de Cabo Verde no Século XXI

A persistente subutilização do vasto potencial humano e técnico dos nossos militares é uma realidade que o presente quadro constitucional e o modelo de recrutamento obrigatório acentuam. Além disso, as barreiras de ordem institucional e as dinâmicas de "ego" entre as diferentes forças de segurança representam obstáculos significativos à maximização da segurança pública. Uma Força Armada profissionalizada e bem integrada permitiria que as Forças Armadas se afirmassem como um agente ainda mais dinâmico e relevante na construção de um Cabo Verde mais seguro, próspero e resiliente. Conforme demonstrado pelo estudo de Inocêncio (2016), os benefícios económicos e sociais de uma força profissionalizada – desde a melhoria da eficácia operacional à dinamização económica e redução do desemprego – justificam amplamente o investimento necessário.

1. Introdução

Cabo Verde, um arquipélago no Atlântico, enfrenta desafios de segurança que transcendem as suas fronteiras geográficas e a complexidade da sua sociedade em rápida mutação. Num cenário global cada vez mais interconectado e volátil, onde as seguranças internas e externas se entrelaçam de forma indissociável, torna-se premente uma reflexão aprofundada sobre o papel e a estrutura das suas Forças Armadas (FA). Acredito firmemente que o futuro de Cabo Verde clama por uma revisão corajosa da sua Constituição, em particular no que concerne às questões cruciais da segurança e do modelo de recrutamento militar. O objetivo deste artigo é, precisamente, apresentar um olhar crítico, mas fundamentalmente positivo, sobre a necessidade de reformar as Forças Armadas de Cabo Verde, visando maximizar o seu potencial e assegurar uma resposta mais eficaz aos desafios contemporâneos. Urge, pois, romper com paradigmas que limitam o desempenho dos nossos militares e que já não se alinham com as exigências de uma nação em busca de maior prosperidade e segurança.

2. O Enquadramento Constitucional e o Papel Tradicional das Forças Armadas

A Constituição da República de Cabo Verde (CRCV), na sua formulação atual, estabelece as bases para a organização da defesa nacional e a manutenção da ordem interna. Contudo, na minha perspetiva, a interpretação e aplicação dos seus artigos, nomeadamente o Artigo 27º, que consagra o direito à segurança e a incumbência do Estado de garantir a ordem e tranquilidade públicas, e o Artigo 279º, que define as missões essenciais das Forças Armadas, têm sido historicamente restritivas no que toca à participação militar em cenários de segurança interna.

Tradicionalmente, a atuação das Forças Armadas tem-se confinado, em grande parte, aos quartéis, com uma ênfase primordial na defesa contra agressões externas. Embora o Artigo 279º, na sua alínea sobre a "colaboração em tarefas de interesse público", abra uma porta à participação dos militares em outras áreas, a sua aplicação na segurança interna tem sido, na prática, limitada por interpretações constitucionais e legais que precisam de ser revistas.

O potencial humano e técnico das Forças Armadas de Cabo Verde é demasiado valioso para ser subutilizado. Como cidadão, ex. soldado (Fuzileiro Naval) das FA, observo que a disciplina, organização e formação dos militares podem e devem complementar as forças de segurança pública, reforçando a capacidade do Estado de garantir a tranquilidade e a proteção dos cidadãos. A Lei Constitucional nº 1/VII/2010, de 3 de maio, que revisou a CRCV, já demonstrou a maleabilidade e capacidade de adaptação do nosso texto fundamental a novas realidades, como o combate ao terrorismo e à criminalidade organizada transnacional. Este precedente reforça a minha convicção de que uma nova adaptação é não só possível, mas necessária, para que as Forças Armadas possam ter um papel mais dinâmico e integrado na resposta aos desafios de segurança que hoje se apresentam.

3. A Profissionalização das Forças Armadas: Uma Análise Económica e Social

Para que a integração das Forças Armadas no sistema de segurança seja eficaz e sustentável, é imperativo ir além de uma simples revisão constitucional, avançando para uma profunda reforma nos métodos de ensino e de recrutamento. Defendo, em primeiro lugar, o fim do recrutamento obrigatório. No século XXI, um modelo de recrutamento profissionalizado é crucial para assegurar a qualidade e a motivação do nosso efetivo militar. A profissionalização da classe dos soldados, em conjunto com a exigência de uma escolaridade mínima adequada e a implementação de um sistema de concurso público transparente e meritocrático, atrairá os jovens talentos de que Cabo Verde precisa para construir um corpo militar mais qualificado e, acima de tudo, comprometido com as missões atuais.

Um estudo de 2016 da Academia Militar, intitulado "Forças Armadas de Cabo Verde". O impacto Económico e Financeiro da profissionalização das Forças Armadas", da autoria do Aspirante Júlio César da Graça Inocêncio (2016), corrobora esta visão. A investigação aponta que a profissionalização levará a um aumento da eficiência e eficácia das Forças Armadas, resultante de uma maior especialização e profissionalismo dos seus membros. Embora a adoção de um modelo profissionalizado implique um aumento inicial dos gastos com o pessoal militar e um maior investimento em tecnologias, formação e treino, o estudo salienta que os benefícios a longo prazo superam esses custos.

A profissionalização não é apenas uma questão de eficiência militar, mas também de desenvolvimento socioeconómico. O referido estudo de Inocêncio (2016) destaca que um modelo profissionalizado pode contribuir para a redução da taxa de desemprego na sociedade, uma vez que oferece carreiras estáveis e qualificadas. Além disso, o aumento do poder de compra dos militares tende a dinamizar a economia local. Finalmente, a existência de uma Força Armada mais capaz e bem equipada fortalece o clima de segurança, um fator essencial para atrair e reter investimentos, tanto nacionais quanto estrangeiros. O exemplo de Portugal, que transitou para um modelo profissional, embora com um contexto diferente, ilustra as vantagens operacionais e sociais que essa transformação pode trazer.

4. Os Desafios da Colaboração Interinstitucional: O Princípio da Subsidiariedade e a Luta de Egos

Apesar do inegável potencial das Forças Armadas para complementar e reforçar a segurança interna, a sua participação efetiva neste domínio é, por vezes, travada por barreiras que vão além do enquadramento legal. Uma das principais reside na interpretação e aplicação do princípio da subsidiariedade. Embora este princípio seja fundamental para delimitar competências e evitar a militarização de funções policiais, a sua rigidez, ou uma interpretação excessivamente conservadora, pode levar à subutilização de recursos valiosos.

Existe, na prática, uma dinâmica de "ego institucional" que pode dificultar a colaboração. As Forças de Segurança Pública, encarregadas primariamente do combate à criminalidade, podem hesitar em solicitar o apoio das Forças Armadas, mesmo em situações de necessidade premente. Esta relutância pode advir de uma preocupação legítima com a manutenção da sua esfera de competências e visibilidade. No entanto, em cenários onde a criminalidade atinge níveis alarmantes, ou onde a complexidade das operações exige capacidades que transcendem as suas próprias, o apoio militar poderia ser decisivo.

A realidade é que, se as Forças Armadas fossem mobilizadas para patrulhamento ou apoio em operações específicas, é plausível que se registrasse uma diminuição das taxas de criminalidade. Tal sucesso, embora benéfico para a sociedade, poderia, ironicamente, ser percecionado pelas instituições de segurança pública como uma fragilização da sua própria imagem e eficácia. Esta "luta de egos", ou a relutância em "ficar mal na fita", acaba por prejudicar o bem maior: a segurança dos cidadãos e a eficácia do sistema de segurança como um todo. Superar esta barreira exige uma mudança cultural profunda, assente na confiança mútua e na compreensão de que a segurança é uma responsabilidade partilhada, onde a complementaridade e não a competição deve ser o pilar da ação conjunta.

5. Propostas para uma Reforma Holística e Positiva

A reforma das Forças Armadas de Cabo Verde deve ser holística e multidimensional. Em primeiro lugar, é fundamental que a revisão constitucional permita uma atuação mais alargada e integrada das Forças Armadas no apoio às forças de segurança pública. Isto não implica uma militarização da segurança interna, mas sim uma colaboração estratégica e coordenada, onde as capacidades militares são mobilizadas em situações que exigem maior robustez ou recursos especializados, como no combate à criminalidade organizada, tráfico ou em grandes catástrofes naturais. A disciplina e a capacidade de organização dos militares podem ser um trunfo valioso, sempre em estrita articulação e respeito pelas competências das forças policiais.

Em segundo lugar, a reforma do recrutamento e da formação deve ser prioritária. A profissionalização exige currículos de formação militar que incorporem conhecimentos e técnicas relevantes para a atuação em cenários de segurança interna, promovendo uma formação complementar que permita uma colaboração eficaz e evite sobreposição de funções. É imperativo que os militares sejam preparados não só para a defesa territorial, mas também para um conjunto mais vasto de missões de apoio civil, como a assistência humanitária, a busca e salvamento marítimo, ou o suporte logístico em emergências.

Creio que a "ousadia de repensar o papel dos nossos militares" passa por vê-los como agentes multifacetados do Estado, prontos a contribuir ativamente para a segurança e o desenvolvimento. A integração plena das Forças Armadas nos esforços para garantir a paz e a segurança implica não só a sua capacidade de resposta a ameaças, mas também a sua participação em projetos de interesse público que promovam a coesão social e o bem-estar dos cabo-verdianos. Um exemplo prático seria a sua utilização em programas de formação profissional para jovens, ou no apoio a infraestruturas em zonas remotas, capitalizando a sua capacidade logística e de organização.

6. Conclusão

Após 50 anos da independência, Cabo Verde encontra-se num momento crucial para redefinir o futuro das suas Forças Armadas. A análise precedente sublinha que a reforma constitucional e a transição para um modelo de recrutamento profissionalizado não são meras opções, mas sim um imperativo estratégico para o país.

A persistente subutilização do vasto potencial humano e técnico dos nossos militares é uma realidade que o presente quadro constitucional e o modelo de recrutamento obrigatório acentuam. Além disso, as barreiras de ordem institucional e as dinâmicas de "ego" entre as diferentes forças de segurança representam obstáculos significativos à maximização da segurança pública. Uma Força Armada profissionalizada e bem integrada permitiria que as Forças Armadas se afirmassem como um agente ainda mais dinâmico e relevante na construção de um Cabo Verde mais seguro, próspero e resiliente. Conforme demonstrado pelo estudo de Inocêncio (2016), os benefícios económicos e sociais de uma força profissionalizada – desde a melhoria da eficácia operacional à dinamização económica e redução do desemprego – justificam amplamente o investimento necessário.

*Criminologia e Segurança Pública, ISCJS

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