Acerca da coragem dos fracos face aos poderosos. Um texto de Baltasar Garzón
Ponto de Vista

Acerca da coragem dos fracos face aos poderosos. Um texto de Baltasar Garzón

...os Estados Unidos nunca pensaram que a África pudesse rebelar-se contra as suas instruções. Mas os EUA desconhecem o orgulho africano, a sua história de subjugação e a natureza contestatária de uma região que já disse basta ao neocolonialismo. Uma região que se autodeterminou e conta com instituições para a proteção dos direitos humanos como o Tribunal da CEDEAO, ou a União Africana, na qual Alex Saab é Embaixador Alterno, que não se deixam intimidar pelos poderosos. No entanto, embora Cabo Verde tenha finalmente concordado, após muitas evasivas, com a prisão domiciliária de Saab, fê-lo da forma que os Estados Unidos lhe devem ter indicado. Guardado pela polícia e guardas de segurança privada, continua a ter acesso restrito aos seus advogados. Como resultado, o seu direito à defesa e a um processo com todas as garantias continua a ser cerceado. E o mais alarmante é que Cabo Verde continua com o seu processo de extradição, ignorando o facto de que a matéria desta extradição está sujeita a uma decisão substantiva do Tribunal da CEDEAO.

Como magistrado, tenho a experiência de ter tramitado milhares de extradições ao longo de 20 anos na Audiência Nacional de Espanha. Em nenhuma delas foi posta em causa a inviolabilidade de um agente diplomático; nunca aceitei qualquer tipo de pressão por parte do país requerente; nunca houve qualquer questão de incumprimento da decisão de um tribunal internacional; nunca houve a mínima possibilidade de maus tratos à pessoa em causa; a regularidade da detenção foi examinada e, se tivesse havido qualquer irregularidade, teria sido rejeitada. Além disso, o tribunal rejeitou os pedidos de extradição onde houvesse o menor vestígio de perseguição política.

Bem, no caso de Alex Saab, todas estas circunstâncias se reuniram: é um agente diplomático de um país soberano como é a Venezuela; a sua detenção foi ilegal; a extradição transpira por todos os poros uma natureza política; a decisão de um tribunal internacional como o da CEDEAO, do qual Cabo Verde é parte, foi desafiada; foi aceite pressão ao ponto de permitir certas ações por parte de conselheiros especiais de responsáveis políticos; existiu e existe uma campanha brutal de constante difamação e denigração contra a pessoa, o seu trabalho e a sua família; e, ainda que hoje exista uma espécie de detenção minimamente atenuada, a única coisa que mudou foi o local de confinamento, uma vez que não lhe é permitido ter contacto nem com médicos da sua escolha nem com os seus advogados internacionais (apenas duas horas ao telefone para tudo) e nem sem restrições com outras pessoas que não o seu advogado local (apenas duas horas ao telefone).

A questão que se coloca é o porquê este extremo interesse nesta pessoa por parte de um país como os Estados Unidos da América, que se especializou na perseguição de pessoas que o incomodam politicamente e que, segundo as suas autoridades, cometeram crimes, sem permitir o acesso às alegadas provas, a partir do exterior do país? A resposta é fácil e pode ser explicada sem dificuldade. O objetivo é acabar com o governo da Venezuela e com o seu presidente em particular, e para isso vale tudo, incluindo a detenção, prisão e extradição de uma pessoa diplomaticamente protegida que é vilmente acusada de ser o seu testa de ferro, quando a única coisa que fez foi desenvolver um mecanismo alternativo para obter alimentos e meios de subsistência para o povo venezuelano face ao estrangulamento económico externo e às consequências da pandemia.

Até onde chega o interesse dos EUA neste cidadão para enviarem agentes, procuradores, navios, etc., a um oásis num arquipélago do Atlântico o qual, provavelmente, desconheciam a sua existência até então, para que as autoridades políticas e judiciais mudem a sua vontade e cedam na entrega ilegal de um agente diplomático por uns factos manipulados? É claro que este interesse não deve ser menor pois até o Secretário-Geral da OEA, Luis Almagro, cujo ódio político contra os governantes venezuelanos é patente, se comprometeu neste caso a favor do país requerente, descrevendo a entrega como essencial para pôr fim ao governo de Maduro.

As máscaras, nesta fase da representação, já caíram e o cenário é claro. Não existe qualquer interesse jurídico criminal em obter legalmente a extradição de um delinquente internacional. Aqui existe um claro interesse político e económico por parte de uma potência imperialista e do seu governo em subjugar um país soberano, como é a Venezuela, através de todos os mecanismos de bloqueio económico ilegal e lawfare (guerra jurídica) que possam utilizar. E nesta ação, Alex Saab, Enviado Especial da República Bolivariana da Venezuela, de acordo com eles, é uma peça fundamental. Entretanto, continua a estar sujeito a constantes violações dos seus direitos humanos em Cabo Verde.

É verdade que, graças a esta rede de abastecimento desenvolvida por Alex Saab, os planos dos Estados Unidos, que consistem numa queda do governo venezuelano devido ao colapso económico, estão a falhar, em grande medida graças à sua ação e essa é a questão subjacente em todo este caso, e que os EUA não perdoam.

Pouco a pouco, as organizações internacionais, como a ONU, estão a dar-se conta de que ações como o reconhecimento de um presidente interino e de um fantoche da administração norte-americana, o apoio desastrado da União Europeia até à eleição de Biden e a política de estrangulamento económico do país das Caraíbas, acima referido, têm sido erros crassos, pois esquecem a capacidade de resistência dos países que o Leviatão norte-americano tenta subjugar. As provas e os casos em diferentes épocas e latitudes são esmagadores.

Nesta estratégia, exacerbada durante a administração de Donald Trump, Alex Saab era um alvo fundamental, mas não contavam com a capacidade de reação dos aparentemente fracos que são assistidos pela razão e pela lei. Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, as autoridades cabo-verdianas perceberão que estão a ser manipuladas e utilizadas pelo gigante norte-americano em troca de nada e que serão descartados como um lenço de papel quando tiverem deixado de servir os seus fins imperialistas. O grave é que isto pode acontecer (esperemos que a reação seja anterior) demasiado tarde para alguém que confiou na escala dos valores e na defesa dos direitos humanos que todos devemos respeitar.

Vale a pena recordar que o caso da extradição não tem qualquer base fatual. Os EUA, com base num branqueamento de capitais indeterminado, sem qualquer jurisdição territorial, e com conceitos tão vagos como a conspiração, justificaram a articulação de um mandado de captura internacional contra Saab.

Precisamente, quando Alex Saab foi preso, estava a viajar como Enviado Especial, um agente diplomático, para o Irão, como parte da sua rede de abastecimento. Embora não estivesse programado aterrar em Cabo Verde, várias contingências, especificamente países que não permitiram a escala, obrigaram-no a aterrar na ilha. Evidentemente, não existem coincidências, pelo menos não quando os Estados Unidos estão envolvidos.

Foi detido em Cabo Verde a pedido dos Estados Unidos, violando as normas mais elementares do direito internacional, em clara e radical violação da imunidade e inviolabilidade de que gozava como agente diplomático. Além disso, os Estados Unidos apresentaram um pedido de extradição contra o diplomata, na ausência de qualquer quadro normativo habilitador (sem um tratado bilateral e sem reciprocidade entre os países).

Desde então, Saab tem sofrido uma provação inimaginável: na prisão, praticamente incomunicável, com uma situação de saúde muito sensível, está a realizar tratamentos contra o cancro e, além disso, sofreu a entrada na sua cela de funcionários norte- americanos que, como ele próprio denunciou, o espancaram e lhe pediram que aceitasse a sua extradição.

É evidente, além disso, que Alex Saab é um elemento essencial para um tipo de justiça à la carte e oportunista (pelo princípio da oportunidade) praticada pelos EUA, porque ao retirá-lo do tabuleiro de jogo não só destroem a rede de abastecimento da Venezuela, mas também, tendo-o sob a sua jurisdição, poderão chegar a possíveis acordos em troca de benefícios que façam cair as acusações artificialmente criadas contra ele e contra a sua família, sendo que, até os seus filhos menores sofrem perseguição.

Mas Alex Saab e por extensão a sua defesa, na qual me incluo, consciente de que África é um continente que nasceu com um coração anticolonial, porque conhece muito bem as consequências do imperialismo na sua própria carne, decidimos recorrer ao Tribunal da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), um órgão judicial supranacional do qual Cabo Verde faz parte.

Mostrando uma coragem louvável, o Tribunal da CEDEAO decidiu que um país africano não seria o quintal da diplomacia norte americana em que são violados os direitos humanos de Alex Saab. Decidiu que Cabo Verde deveria aceitar a prisão domiciliária, para garantir a saúde de Saab e o seu direito de preparar eficazmente a sua defesa juntamente com os seus advogados e com o acesso aos médicos em quem confia. Também indicou que iria considerar o mérito do pedido de extradição feito pelos Estados Unidos e que o Saab não deveria ser entregue enquanto o caso estivesse pendente na CEDEAO.

Evidentemente, os Estados Unidos nunca pensaram que a África pudesse rebelar-se contra as suas instruções. Mas os EUA desconhecem o orgulho africano, a sua história de subjugação e a natureza contestatária de uma região que já disse basta ao neocolonialismo. Uma região que se autodeterminou e conta com instituições para a proteção dos direitos humanos como o Tribunal da CEDEAO, ou a União Africana, na qual Alex Saab é Embaixador Alterno, que não se deixam intimidar pelos poderosos. No entanto, embora Cabo Verde tenha finalmente concordado, após muitas evasivas, com a prisão domiciliária de Saab, fê-lo da forma que os Estados Unidos lhe devem ter indicado. Guardado pela polícia e guardas de segurança privada, continua a ter acesso restrito aos seus advogados. Como resultado, o seu direito à defesa e a um processo com todas as garantias continua a ser cerceado. E o mais alarmante é que Cabo Verde continua com o seu processo de extradição, ignorando o facto de que a matéria desta extradição está sujeita a uma decisão substantiva do Tribunal da CEDEAO.

Tristemente, estamos a ver Cabo Verde dissociar-se da força, coragem e valor do Tribunal da CEDEAO, que desferiu um murro na mesa política internacional e olhou os Estados Unidos nos olhos. Se Cabo Verde não for capaz de se alinhar com esta África independente e autónoma, que reclama a sua soberania sem interferência, cometerá um dos erros mais graves em detrimento da segurança jurídica e dos direitos humanos dos seus próprios cidadãos, para além do seu descrédito internacional. Portanto, este caso não afeta apenas Saab, afeta Cabo Verde como nação, que tem de escolher entre alinhar-se com uma África que desperta com coragem e energia para se estabelecer como uma região livre, ou alinhar-se com o império norte-americano para se curvar às suas exigências.

*Advogado

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