A Instrumentalização da Ilusão como Moeda de Poder
Ponto de Vista

A Instrumentalização da Ilusão como Moeda de Poder

A instrumentalização da ilusão na política cabo-verdiana não é apenas uma manipulação retórica, mas uma traição ao legado de Amílcar Cabral. O seu pensamento exige que a política seja um espaço de verdade, onde as contradições são expostas e enfrentadas, não ocultadas. Para desmontar as ilusões partidárias, é preciso resgatar o seu método: a análise concreta da realidade, o diálogo com as bases e a recusa a mitos que alienam o povo do seu poder. Para evitar que a política se torne um jogo cínico de espelhos, é urgente resgatar o espaço público como arena de contradições. Isso exige educação cívica que desnaturalize discursos hegemônicos, meios de comunicação que questione em vez de amplificar ilusões, e políticos que substituem o culto à imagem pela prestação de contas. Afinal, uma democracia madura não teme a verdade, teme a ilusão que a sufoca. Como Cabral ensinou, a libertação é um ato permanente. Num país que celebra cinco décadas de independência, isso significa substituir a ilusão pela lucidez, transformando a política de jogo de espelhos em instrumento de emancipação coletiva.

Vivemos um tempo em que a política partidária não se resume mais em disputas por projetos ou ideologias. Transformou-se num palco onde a ilusão é meticulosamente negociada, tornando-se moeda corrente para conquistar e manter o poder. Seja através de promessas de prosperidade, mitos de união nacional ou cultos à imagem de autores políticos. Tanto os  partidos enquanto célula do sistema, bem como os seus membros individualmente instrumentalizam narrativas que, mais do que persuadir, fabricam realidades paralelas. Essa dinâmica revela-se não apenas como estratégia, mas como sintoma de uma democracia que oscila entre a esperança e a alienação. 

A hegemonia cultural, teorizada por Antonio Gramsci, ajuda a decifrar como os partidos convertem interesses específicos em “verdades” coletivas. O PAICV e o MPD, por exemplo, consolidaram-se como pilares do sistema político pós-independência ao difundirem a ideia de Cabo Verde como uma exceção africana: uma democracia estável e sem conflitos étnicos. Essa narrativa, porém, esconde fissuras. A ilusão de harmonia universaliza um projeto político que beneficia elites e silencia vozes críticas, especialmente das zonas rurais e ilhas menos desenvolvidas. 

Aqui, a ilusão opera como cola social. Tal como Durkheim via nos ritos religiosos um mecanismo de coesão, os partidos usam símbolos (bandeiras, discursos patrióticos) para criar um consenso performativo. O cidadão é levado a crer que criticar o sistema é estar em contramão com o “desígnio nacional”, um artifício que paralisa o debate necessário ao amadurecimento democrático. 

Nietzsche, ao explorar a “vontade de poder”, argumenta que a verdade é uma construção movida por interesses. Essa máxima materializa-se na forma como líderes políticos reescrevem a realidade para justificar o seu domínio. Promessas eleitorais como erradicação da pobreza, emprego, conectividades e a mobilidade entre as ilhas ou transformação de Cabo Verde em  “Singapura africana” não são apenas exageros retóricos, mas expressões de uma ontologia do desejo, onde o futuro é projetado como inevitável, desde que o poder permaneça com quem o narra. 

Essa ilusão, contudo, tem prazo de validade. Quando projetos fracassam, a narrativa se adapta: culpa-se a “crise global”,  efeitos climáticos (secas), a pandemia de Covid-19, inclusive a quem cita a herança colonial ou as vulnerabilidades naturais e estruturais do país. Cidadãos, imerso no mito, é convidado a renovar a esperança no próximo ciclo eleitoral, num movimento que lembra o eterno retorno nietzschiano à mesma história, repetida sob novas roupagens. 

Guy Debord, ao descrever a sociedade do espetáculo, alerta para a substituição da experiência real por sua representação. Assisti-se à política partidária espetaculariza-se: comícios transformam-se em verdadeiros “shows” de ilusão, debates reduzem-se a “slogans”, e líderes (candidatos) vendem-se como marcas. A imagem de Carlos Veiga como “pai da democracia” ou de José Maria Neves como “estadista global”, e o Pedro Pires como “Comandante”  exemplifica como a substância política é eclipsada pela aura mediática. 

Nesse teatro, o cidadão torna-se espectador. A sua participação resume-se a elevar ou atacar, nunca a dialogar. A ilusão aqui é dupla: o povo acredita estar no centro do espetáculo, quando, na verdade, é coadjuvante de um roteiro escrito por outros. 

Pierre Bourdieu discute a violência simbólica, a imposição de visões de mundo que naturalizam desigualdades. Convivemos com os  partidos que praticam essa violência ao associar desenvolvimento a megaprojetos, ignorando que tais iniciativas frequentemente aprofundam assimetrias. A ilusão do “progresso” justifica despejos, endividamento público e concentração de renda, enquanto o debate sobre políticas redistributivas (inclusiva) é rotulado de “populismo”. 

Ora, a aceitação passiva dessa narrativa não é ingenuidade, mas resultado de um “habitus” político moldado por décadas de dominação partidária. Como na alegoria da caverna de Platão, a população vê sombras e as toma por realidade, pois nunca lhe foi permitido olhar para a luz. 

Por último, não menos importante, o arquiteto da libertação de Cabo Verde e Guiné-Bissau, legou ao mundo uma reflexão profunda sobre a relação entre política, cultura e emancipação. O seu pensamento, marcado pela crítica ao colonialismo e ao neocolonialismo, oferece lentes potentes para analisar e identificar a instrumentalização da ilusão no cenário político-partidário contemporâneo. Para Cabral, a luta anticolonial não era apenas uma questão militar, mas um processo de desalienação e a libertação das mentes das falsas consciências impostas pelo opressor. Hoje, em Cabo Verde independente, porém enredado em contradições pós-coloniais, a sua ideia ajudou a desvendar como a ilusão é mobilizada como ferramenta de dominação e resistência.

Cabral defendia que a libertação exigia não apenas independência formal, mas a construção de um “homem novo”, consciente da sua história e capaz de protagonizar o seu destino. No entanto, a política partidária frequentemente reduz esse ideal a ‘slogans’ vazios. As duas principais forças políticas apropriam-se, ainda que um menos que outro, simbolicamente da figura de Cabral, associando as suas imagens a discursos da unidade nacional que, na prática, silenciam conflitos sociais.

Essa instrumentalização da ilusão do consenso ecoa o que Cabral chamava “suicídio da classe dirigente”: quando as elites, em vez de servir ao povo, perpetuam práticas neocoloniais. Promessas de desenvolvimento, por exemplo, são desenhadas para beneficiar grupos específicos, enquanto a grande maioria dos cidadãos permanece à margem. A ilusão, neste caso, também é dupla: vende-se a ideia de que todos avançam juntos, enquanto se naturalizam hierarquias que Cabral combateu.

Cabral acreditava na utopia concreta: um futuro construído através da educação popular, da reforma agrária e da justiça social. A sua crítica ao “capitalismo selvagem” e a sua defesa de um socialismo adaptado às realidades africanas revelavam um projeto político pautado, na verdade material das condições de vida. Hoje, entretanto, a utopia foi substituída por ilusões de consumo. Partidos prometem “transformar Cabo Verde em Singapura africano”, reduzindo o desenvolvimento a indicadores económicos abstratos, enquanto o acesso à saúde, educação e habitação digna permanece precário para muitos. Essa distorção do sonho cabralista ilustra o que ele alertava: sem uma base ética e cultural sólida, a independência torna-se farsa. A ilusão do crescimento económico, desconectado da distribuição de riqueza, repete a lógica colonial de extração agora sob nova roupagem.

A instrumentalização da ilusão na política cabo-verdiana não é apenas uma manipulação retórica, mas uma traição ao legado de Amílcar Cabral. O seu pensamento exige que a política seja um espaço de verdade, onde as contradições são expostas e enfrentadas, não ocultadas. Para desmontar as ilusões partidárias, é preciso resgatar o seu método: a análise concreta da realidade, o diálogo com as bases e a recusa a mitos que alienam o povo do seu poder.

Para evitar que a política se torne um jogo cínico de espelhos, é urgente resgatar o espaço público como arena de contradições. Isso exige educação cívica que desnaturalize discursos hegemônicos, meios de comunicação que questione em vez de amplificar ilusões, e políticos que substituem o culto à imagem pela prestação de contas. Afinal, uma democracia madura não teme a verdade, teme a ilusão que a sufoca.  Como Cabral ensinou, a libertação é um ato permanente. Num país que celebra cinco décadas de independência, isso significa substituir a ilusão pela lucidez, transformando a política de jogo de espelhos em instrumento de emancipação coletiva.

 

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