Uma abordagem crítica do romance A ÚLTIMA LUA DE HOMEM GRANDE, de Mário Lúcio Sousa - Parte III
Cultura

Uma abordagem crítica do romance A ÚLTIMA LUA DE HOMEM GRANDE, de Mário Lúcio Sousa - Parte III

Lendo o romance A Última Lua de Homem Grande a par do livro Amílcar Cabral (1924-1973)- Vida e Morte de um Revolucionário Africano e do livro O Fazedor de Utopias-Uma Biografia de Amílcar Cabral, nas suas partes respeitantes à infância e à adolescência de Amílcar Cabral, fica-se com a impressão que estamos face a um menino super-dotado, a um menino-prodígio, tão agarrado aos estudos que diverge completamente da imagem que normalmente se tem dos retardados escolares, isto é, daqueles que ingressam na escola perfazendo idades muito superiores às dos demais condiscípulos e colegas que ingressaram na escola com a idade considerada normal e requerida pelas leis vigentes. Todos nós conhecemos casos desses. Tais alunos evidenciam-se pela sua relativa madureza (maturidade) em relação a determinadas questões e adveniente da sua idade mais avançada, tentando amiúde impor-se face aos condiscípulos mais novos e mais fracos por via da sua força física ou da sua maior “experiência do mundo”.

TERCEIRA PARTE

 

V

DOIS EPISÓDIOS E MOMENTOS MAIS POLÉMICOS DO ROMANCE:

 ERNESTO CHE GUEVARA E JUVENAL LOPES CABRAL

 

Não obstante todos os seus muitos e incontestáveis méritos, o romance A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, não deixa de ter alguns momentos e episódios mais polémicos.

Cumpre agora assinalá-los em nome da sinceridade e da honestidade intelectuais que faço por serem apanágio da minha conduta pessoal, moral e cívica.

Trata-se designadamente das abordagens que se faz no supra-referenciado romance i. do papel e das repercussões (adiamento, desistência e/ou abortamento) do fracasso e da morte de Ernesto Che Guevara na Bolívia no projectado desembarque de guerrilheiros do PAIGC em Cabo Verde e ii. do papel que é atribuído a Juvenal Cabral na educação, em especial na educação escolar e na educação política do seu filho Amílcar Cabral.

1. No que se refere ao papel e às repercussões (adiamento sine die ou, até, desistência e abortamento) do fracasso de Che Guevara no Congo e do seu assassinato após ferimento em combate e captura na Bolívia no projecto de desembarque em uma ou mais ilhas de Cabo Verde de guerrilheiros caboverdianos do PAIGC, desembarque esse sugestivamente baptizado com o nome de código operação Esperança, significando esse mesmo desembarque de guerrilheiros caboverdianos do PAIGC em Cabo Verde a abertura de uma nova frente de guerra desse poderoso movimento de libertação bi-nacional e que poderia ter marcado o início da luta armada de libertação nacional de Cabo Verde em solo estritamente caboverdiano, pensamos que o evento trágico acima referido envolvendo o lendário guerrilheiro heroico cubano-argentino terá pesado, e muito, na ponderação dos seus prós e contras para a continuidade da muito expectada nova fase do desenvolvimento da luta em Cabo Verde (aliás, reiterada pelo próprio Amílcar Cabral no seu célebre Testamento Político).

Todavia, estamos em crer que não terá sido a razão determinante do adiamento da operação Esperança, por muitos, aliás, tida como uma operação suicida condenada de antemão ao fracasso, em razão da dispersão, da exiguidade e da forte aridez das nossas ilhas, incluindo das tradicionalmente consideradas agrícolas, por isso alegadamente mais propícias à sobrevivência de guerrilheiros que no caso de efectivação do desembarque guerrilheiro teriam que contar com os seus próprios recursos (com as suas próprias forças) e com o eventual apoio no fornecimento de víveres por parte da população que pretendiam mobilizar para a insurreição anti-colonial. A razão do protelamento da operação guerrilheira acima referida parece-me ter sido outra, muito mais verosímil, designadamente a deserção das fileiras do PAIGC de Albino Ferreira Fortes, mais conhecido e popularizado pelo seu nominho Bibino, um dos integrantes do chamado Grupo de Cuba, que recebeu treinamento político-militar na Argélia, em Cuba (durante mais tempo) e na União Soviética. Além de desertar do PAIGC, facto que, aliás, ocorreu com pelo menos mais um dos membros do Grupo de Cuba, designadamente com o mais velho e muito respeitado Sílvio Ferreira Querido, por, segundo corre, se ter recusado a integrar as frentes militares da Guiné do PAIGC, alegando que tinha sido preparado política e militarmente para exclusiva e/ou primacialmente participar na consecução prática da operação Esperança, de desembarque guerrilheiro em Cabo Verde.  A contrario do Bibino, não se conhecem de Sílvio Ferreira Querido quaisquer condutas anteriores ou comportamentos posteriores à sua saída do PAIGC que denotassem um qualquer envolvimento com as autoridades colonial-fascistas portuguesas, não obstante ter sido arbitrariamente expulso da sua ilha natal por ordem expressa do Governo de Transição nas imediatas vésperas da proclamação da independência de Cabo Verde, para onde tinha regressado para viver in loco esse acontecimento de transcendente relevância histórica e para o qual deu a sua preciosa contribuição, radicando-se na sua ilha natal de Santiago, na casa paterna/materna do Cutelo na Assomada de Santa Catarina.

Com efeito, não satisfeito em desertar do PAIGC, situação, aliás, assaz frequente nos fins dos anos sessenta e inícios dos anos setenta do século XX enquanto abandono da militância política activa, sobretudo no chão logístico e político-militar das duas Guinés, por alegado cansaço, inadaptação (ou, in extremis, desvinculação) do próprio sujeito do abandono ou dos seus acompanhantes familiares próximos (como nos casos de António Mascarenhas Monteiro, Mário Fonseca ou Onésimo Silveira) ao ambiente de intrigas pessoais e políticas prevalecente em Conacri e à alegada podridão político-ideológica dele emergente, sobretudo no referente à sempre controversa questão da unidade Guiné-Cabo Verde (leia-se a propósito as páginas relativas às conversas entre Amílcar Cabral e o conspirador Momo Touré -português-guineense ou guinéu, na então legítima terminologia do seu presumível mentor e mandante General António de Spínola - e entre Amílcar Cabral e o dirigente caboverdiano Abílio Duarte, todas constantes do romance A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, ou dos livros ensaísticos ou de história anteriormente mencionados), que depois conduziriam ao assassinato de Amílcar Cabral), o Albino Ferreira Fortes (Bibino) apressou-se a apresentar-se às autoridades portuguesas da embaixada portuguesa em Dacar, depois de ter encenado estar doente para obter a competente baixa para consulta e tratamento médicos na capital senegalesa, tendo sido posteriormente enviado para Cabo Verde para apresentar declarações à delegação local da PIDE/DGS. Neste contexto de notórias delação e traição dos ideais da luta político-armada do PAIGC e de reconciliação com a obsoleta mãe-pátria portuguesa colonial, pluricontinental e multirracial ou, dito de outro modo, do salazarento Portugal de Minho a Timor, já por demais ultrapassado e prestes a ser definitivamente engolido pela convulsiva e imparável voragem da História, ele denuncia sem pejo e sem nenhum remorso a preparação da operação Esperança à famigerada e impiedosa polícia política portuguesa colonial- fascista com uma grande profusão de detalhes e pormenores (incluindo os lugares previstos para o desembarque, as identidades dos participantes na mesma operação (sendo muitos deles naturais da sua ilha natal, Santo Antão), como atestam inequivocamente os documentos publicados por Aristides Pereira no seu livro Um Partido, Uma Luta, Dois Países (versão documentada), designadamente os autos de declarações de Albino Ferreira Fortes, dito Bibino, à PIDE/DGS.

Em face da deserção de Bibino e presumivelmente dos dados por ele fornecidos à criminosa policia política portuguesa, seria de todo em todo, verdadeira e plenamente suicidário realizar e contar com os necessários apoios logísticos, designadamente de Cuba, da União Soviética e dos demais países socialistas leste-europeus e asiáticos, para a prática concretização da operação nos temos anteriormente delineados e pensados por Amílcar Cabral e pelos seus companheiros e camaradas de luta, desde a realização, em Julho de 1963, em Dacar, da famosa reunião de quadros e responsáveis do PAIGC sobre a situação da luta em Cabo Verde, cuja acta foi finalmente publicada em 2015 pela Fundação Amílcar Cabral no livro póstumo de Amílcar Cabral, organizado por Luís Fonseca e Olívio Pires e intitulado Cabo Verde- Reflexões e Mensagens. Anote-se ademais que é presumivelmente na sequência dessa abjecta denúncia que foram presos Lineu Miranda, Luís Fonseca, Jaime Schofield e Carlos Tavares e outros militantes clandestinos do PAIGC colocados em Santo Antão para preparar o desembarque guerrilheiro nessa muito montanhosa e agrícola ilha nortenha caboverdiana. Quanto aos presos políticos Fernando Tavares (Toco), José Aguiar Galina Monteiro (Zezé Manco), José Ferreira Querido (Zéqui), Kid Querido Varela e Emanuel Braga Tavares e outros militantes clandestinos do PAIGC encarregados de preparar o desembarque guerrilheiro na ilha de São Tiago, os mesmos terão sido denunciados por mor da ocorrência de um facto perfeitamente fortuito e imprevisível e que se passa a narrar em termos muito sintéticos: vindo da Suíça a caminho de Conacri  e desembarcado em trânsito no aeroporto de Paris para se encontrar com o alto dirigente do PAIGC comandante Pedro Pires, Amílcar Cabral é barrado pela polícia das alfândegas, alegadamente por estar administrativamente interditado de entrar e/ou permanecer em França, e obrigado a expor a sua bagagem, da qual constavam importantes documentos ultra-confidenciais relativos à estratégia, aos meios materiais e logísticos e aos meios humanos para o desenvolvimento da luta em Cabo Verde e, em especial, em relação ao programado desembarque guerrilheiro na ilha de Santiago, sendo que integravam esse mesmo dossier os nomes dos acima referidos militantes clandestinos. Apreendidos os supra-referidos documentos ultra-confidenciais, os mesmos foram reencaminhados pela polícia secreta francesa à PIDE/DGS que encetou as diligências necessárias para a prisão na Cadeia Civil da Praia e na Colónia Penal/Presídio Político do Tarrafal e o julgamento no tribunal de São Vicente dos militantes políticos acima referenciados que, todavia e sob grande ovação popular, lograram ser absolvidos das acusações feitas muito por causa da competência da sua defesa conduzida pelos advogados Felisberto Vieira Lopes, Arlindo Vicente Silva e João Monteiro, resultado que todavia não seria conseguido pelo grupo de Santo Antão, cujos integrantes seriam condenados a pesadas penas de prisão e medidas de segurança cumpridos na colónia penal/no presídio político/no campo de concentração de Chão Bom do Tarrafal em posterior julgamento realizado na cidade da Praia. Em face das repercussões desses dois julgamentos políticos (bem assim de um anterior, de 1961, do grupo mobilizado pelo depois foragido político José Leitão da Graça) na opinião pública caboverdiana, que assim, deste modo inusitado, ficou a conhecer mais de perto alguns meandros e protagonistas da luta pela independência de Cabo Verde, não mais foram sujeitos a julgamento os posteriores presos políticos caboverdianos, designadamente Pedro Martins e o grupo de enganados mas corajosos e destemidos  assaltantes do navio Pérola do Oceano, todos presos na Cadeia Civil da Praia e posteriormente encarcerados, até ao dia 1 de Maio de 1974, na colónia penal/no presídio político/no campo de concentração de Chão Bom do Tarrafal, e os grupos de militantes clandestinos do PAIGC presos nas cidades da Praia e do Mindelo e posteriormente enviados para a Foz do Cunene, em Angola, onde permaneceram até à sua libertação na sequência do 25 de Abril de 1974.

Neste ponto, seja-me permitida a seguinte reflexão: sendo o escritor totalmente livre em dar largas à sua imaginação, como, aliás, o presente livro é uma belíssima ilustração e um mais que convincente exemplo, as boas regras ditam todavia que um romance histórico deve fundamentar o essencial da sua intriga nos factos históricos comprovados e devidamente disponibilizado em documentação fiável e credível, como parecem ser aqueles tempestivamente disponibilizados por Aristides Pereira a partir dos autos de declarações recolhidas pela PIDE/DGS e constantes dos famosos e famigerados Arquivos guardados na sua esmagadora parte no célebre Arquivo Nacional/Torre do Tombo português.

2. Já no que se refere ao papel desempenhado por Juvenal Cabral na educação escolar do filho, Amílcar Cabral, e as influências por ele exercidas sobre o mesmo, a questão parece ser mais delicada, sensível e controversa. 

Para melhor se interpretar essa candente questão deve-se, na minha opinião, inseri-la na problemática geral das elites letradas caboverdianas das ilhas e diásporas e da história  dessas mesmas elites na pugna pela emancipação e afirmação cultural, social, económica, administrativa e cívico-política das gentes e da terra caboverdianas e na luta da independência de Cabo Verde e da libertação nacional do povo caboverdiano das ilhas e diásporas, assaz relevantes por se tratar de Juvenal Cabral, uma personalidade tida consensualmente por importante (“incontornável”, segundo Julião Soares Sousa) na história das letras e do nativismo caboverdianos e das relações entre essas elites letradas nativistas e as guerras de subjugação dos povos da Guiné dita portuguesa, oficialmente denominadas guerras de pacificação, e se tratar outrossim e ademais de Juvenal Cabral, o reconhecido pai de Amílcar Cabral, figura histórica cuja incomensurabilidade de pergaminhos para a libertação bi-nacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde não parece carecer de maiores demonstrações, porque profusamente carreadas no presente romance histórico, mas também em várias obras relevantes , algumas devidamente escrutinadas pela Academia, como é o caso da obra do sempre referenciado Julião Soares Sousa sobre o excepcionalmente grande revolucionário africano.

Mas convém antes esclarecer que, apesar de algumas nuances, o romancista histórico Mário Lúcio Sousa parece adoptar, assumir e sufragar em grande medida (se não quase por inteiro) a tese adoptada pelo historiador Julião Soares Sousa no seu excelente livro sobre Amílcar Cabral, designadamente a tese segundo a qual terá sido mínimo o papel de Juvenal Cabral na educação do secundogénito de Nha Iva e seu primogénito com ela, tese que parece ter sido levada ao extremo por António Tomás, no seu O Fazedor de Utopias-Uma Biografia de Amílcar Cabral, como teremos oportunidade de ver mais adiante.  

Com efeito, é a Iva Pinhel Évora (a Nha Iva, do tratamento respeitoso em crioulo traduzível por Dona Iva em português ou no actualmente muito em voga crioulo acrolectal e que é mesmo que dizer descrioulizado, ou, ainda, a mãe Iva, da conhecida terminologia de Amílcar Cabral) que é creditada a totalidade da responsabilidade pela educação escolar de Amílcar Cabral, o que, à primeira vista, parece evidente e justíssimo, sobretudo depois de nos embrenharmos nos meandros biográficos devidamente documentados da obra de Julião Soares Sousa sobre o nosso comum Herói Maior Bi-Nacional.

Com efeito, é ela, a Dona Iva, que, depois de resgatar os filhos comuns do poder e das mãos paternais do antigo companheiro Juvenal Cabral em Achada Falcão do concelho de Santa Catarina e assumir a sua inteira custódia no conhecido bairro (ou quarteirão) da Ponta Belém da cidade da Praia, o faz ingressar na escola primária da mesma cidade capital, onde o mesmo se distingue pela sua exemplar aplicação nos estudos (e nos jogos da bola). É também ela, a Dona Iva, que, em 1937, se muda com a família restrita, constituída pelo filho primogénito Ivo, Amílcar, as gémeas Armanda e Arminda e o codé Tói, para a ilha de S. Vicente para permitir que, tendo concluído com distinção o segundo grau do ensino primário na cidade da Praia e estando mesmo no limite da idade (treze anos feitos em Setembro de 1937) para a respectiva inscrição e admissão oficial no ensino liceal, o super-dotado e muito aplicado filho Amílcar Cabral pudesse frequentar o primeiro ciclo do curso liceal ministrado no então único Liceu de todo o Cabo Verde, criado em 1917 depois da extinção ainda em 1862 do Liceo Nacional de Cabo Verde, fundado em 1860 e sediado na então vila da Praia, e do Seminário-Liceu de São Nicolau, criado em 1866 e oficialmente extinto em 1917, passando a  funcionar como mero Colégio.

É, pois, ela, a Dona Iva, que arca com todos os sacrifícios- como diz a própria em entrevista ao jornal bissau-guineense Nô Pintcha, em 1976: “cansei-me demais na tina, no ferro e na máquina”, a significar o seu trabalho como costureira e lavadeira, para além de operária sazonal e muito mal paga da fábrica de conservas de peixe de Manuel (Leça) Ribeiro de Almeida,  curiosamente encarregado de educação na primeira fase dos seus estudos liceais mindelenses/sanvicentinos.

É ainda ela, a amada Mãe Iva, que Amílcar Cabral considera “a estrela” da sua “infância agreste”, sendo que ele, Amílcar, “só existe porque ela existe”, mãe que é, e que, como se sabe, é uma condição quase irrenunciável e particularmente imprescindível nas sociedades negro-africanas e/ou afro-descendentes como é a sociedade caboverdiana. 

É também por causa dela, a Dona Iva, que, a caminho de Bissau e falecido que era o pai Juvenal Cabral, Amílcar Cabral desembarca no porto da cidade da Praia para lhe ver em toda a plenitude e resplandecência os orgulhos filial e materno estampados nos respectivos rostos e corações quando ele, o recém-formado engenheiro Amílcar Cabral, lhe mostrasse, a ela, a mãe Iva, o canudo, o tão almejado diploma de conclusão dos estudos superiores em agronomia.

É a ela, à mãe Iva, que Amílcar manda buscar de Cabo Verde para residir, às suas expensas e por encargo da sua imensurável gratidão, em Bissau, a capital dessa Guiné portuguesa onde ela fora uma entre os milhares de imigrantes caboverdianos arribados em busca de melhores condições de vida, e onde ele, Amílcar Cabral, nasceu em Bafatá da fusão do sangue e da alma dela com o sangue e a alma do professor primário também emigrado Juvenal Lopes Cabral, para depois ele, Amílcar Cabral - e a contrario, por exemplo, de Rafael Barbosa, também ele filho de pais caboverdianos por inteiro, mas para além de nascido, também crescido e amadurecido na sua Guiné portuguesa natal, mesmo se com o inamovível estatuto de civilizado e cidadão português- se tornar migrante na terra dos seus pais onde cresceu e amadureceu como homem, vindo esse singular facto, aparentemente forjado pelo acaso do destino, a marcar toda a ulterior história política da libertação dos povos da Guiné e de Cabo Verde.

É ainda a ela, a mãe Iva, que, mesmo estando longe, ela em Bissau sob o domínio português directo, ele em Conacri e no vasto mundo dos combatentes da liberdade de ambas as pátrias, Amílcar continua a sustentar, não apenas espiritualmente, mas provendo-a com os necessários meios materiais e financeiros (parece que também à madrasta e mãe de Luís Cabral) por intermédio dos bons ofícios do advogado nacionalista e dirigente clandestino da organização caboverdiana do PAIGC Arlindo Vicente Silva, mais conhecido por Baco.

 Finalmente, é a ela, a mais que adorada mãe Iva, que, no seu último suspiro, Amílcar Cabral dirige o seu pensamento, não por via da oração, mas recitando no seu mais recôndito e sagrado íntimo, o poema que lhe tinha dedicado no seu Livro do Curso de Agronomia.   

Acontece todavia que, como bom e sério historiador que é, antes de introduzir, sustentar e colocar em curso de debate a sua própria tese sobre a muito pertinente questão ora em pauta e discussão, Julião Soares Sousa faz questão de não só elencar mas também de expor pormenorizadamente aquelas que considera as duas teses dominantes sobre a problemática das influências exercidas pelos progenitores sobre a educação escolar, as vocações universitárias, as opções profissionais e o destino político de Amílcar Cabral, designadamente a primeira que defende a influência repartida entre ambos os progenitores Juvenal e Iva, e a segunda que opta pela influência exclusiva de Juvenal Cabral.

Assim somos elucidados, com amplo recurso à respectiva bibliografia, que a primeira tese era defendida sobretudo por Mário de Andrade, Patrick Chabal, Carlos Pinto Santos, Cedric J. Robinson e Oswaldo Osório, sustentando-se esta primeira tese na cultura escolar e na erudição literária, a par da condição de professor primário por vocação de Juvenal Cabral, conjugando-se essas qualidades de Juvenal Cabral com os excepcionais sacrifícios consentidos por Nha Iva para que o filho pudesse preparar-se de forma atempada e conveniente do ponto de vista escolar para singrar na vida, enquanto que a segunda tese, propugnadora da influência exclusiva de Juvenal Cabral e defendida principalmente por Oscar Oramas, Oleg Ignatiev, Gérard Chaliand e Aristides Pereira, baseia-se fundamentalmente nos pergaminhos escolares, profissionais, literários e cívico-políticos do pai de Amílcar Cabral, pergaminhos esses, aliás, amplamente ilustrados e comprovados na sua carreira como professor primário por vinte anos activo na Guiné portuguesa e pelos escritos do mesmo letrado nativista dados à estampa na imprensa caboverdiana e nas mais diferentes ocasiões que lhe parecessem propícias à manifestação da sua matriz patriótica lusitana, da sua dimensão cívica nativista caboverdiana e da sua veia afectiva luso-crioulista em relação à terra e às gentes caboverdianas, como ilustrados nos casos da sua novela O Crime do Largo do Hospital, do seu poema satírico em crioulo Bêjo Caro (a propósito das brigas e atribulações amorosas de um chamado Zé Badio), dos seus artigos sobre as fomes, as questões agrárias e o ensino e os sistemas de ensino e de educação escolar caboverdianos, muitos deles integrados depois na sua maior obra que é Memórias e Reflexões, integrantes de episódios ocorridos tanto na Guiné como em Cabo Verde, bem assim dos seus artigos de louvação a Salazar, ao Estado Novo e a “Portugal, enquanto nação colonizadora”, e de exaltação dos feitos de Teixeira Pinto nas guerras de pacificação da Guiné portuguesa (na verdade, como já referido, de subjugação dos aguerridos povos guineenses revoltados, rebelados e sublevados).

Neste contexto, desempenha um papel importante a questão da localização do início da educação escolar do menino Amílcar Cabral.

Salvo os casos de Oscar Oramas (bem assim de Rafael Barbosa num testemunho- entrevista concedida a Julião Soares Sousa, segundo a qual Amílcar fez toda a instrução primária em Bissau, na Guiné portuguesa) que defendem que Amílcar Cabral teria iniciado a escola primária ainda em Bissau, onde teria permanecido com a mãe até 1934, depois do regresso definitivo de Juvenal Cabral à ilha natal no ano de 1932, e de Gerald Moser (no seu ensaio sobre a poesia de Amílcar Cabral) e Ana Lisboa (no seu documentário sobre Amílcar Cabral) que defendem que Amílcar Cabral iniciou os estudos primários em Santa Catarina, tendo ingressado imediatamente depois no Liceu de S. Vicente, sem todavia fazer qualquer menção à eventual prossecução dos estudos primários na cidade da Praia, a esmagadora maioria dos subscritores das duas teses acima referidas defendem que Amílcar Cabral teria iniciado os estudos primários na cidade da Praia, tendo feito os estudos secundários (liceais) na ilha de S. Vicente, sendo que alguns, designadamente José Vicente Lopes, José Pedro Castanheira e Carlos Pinto Santos, preferem ficar pela localização genérica do lugar da frequência dos estudos primários, isto é, a ilha de Santiago, sem todavia precisar uma localidade ou um concelho concretos, optando como não podia deixar de ser, pela ilha de S. Vicente como tendo sido o lugar da frequência dos estudos secundários por Amílcar Cabral.   

Pretendendo defender e fazer vingar a sua própria tese favorável à influência exclusiva da mãe Iva, o historiador Julião Soares Sousa alega e sublinha que foi (quase) nulo o papel de Juvenal Cabral na educação e na socialização escolar de Amílcar Cabral, tendo aquele, até, alegadamente descurado e de forma assaz flagrante os seus papéis de pai e de professor primário, que, enquanto mestre-escola por vocação e ocupação profissional, ministrou aulas a crianças em várias escolas na Guiné portuguesa, designadamente em Geba, Bafatá e Bissau, tendo residido em Santa Catarina, depois do seu regresso definitivo a Cabo Verde, próximo de pelo menos duas escolas primárias, mais precisamente nas imediações da Escola Primária de Cabeça de Carreira, e, um pouco mais distante, da Escola Primária da Assomada (a sede do concelho de Santa Catarina). Tal negligência, imputada sem quaisquer rebuços ou meias-palavras a Juvenal Cabral consubstanciar-se-ia no facto dele não ter matriculado o filho Amílcar Cabral numa das duas supra-referidas escolas enquanto o menino esteve sob a sua inteira custódia (de 1932 a 1933/1934).

Ademais e segundo Julião Soares Sousa, teria sido também nula, ou, pelo menos, mínima a influência de Juvenal Cabral na detecção da vocação agronómica e na formação política de Amílcar Cabral (incluindo no que se refere à candente questão da unidade Guiné-Cabo Verde, sabendo-se que Juvenal Cabral mantinha grandes ligações afectivas a ambas as colónias/províncias ultramarinas portuguesas oeste-africanas, considerando-as complementares, a Guiné por alegadamente precisar dos quadros administrativos caboverdianos, Cabo Verde em relação às imensas potencialidades agrícolas da província ultramarina continental em contraste com as crises climatéricas e alimentícias que a assola(va)m regularmente, numa espécie de tentativa de perpetuação/retoma de facto (que não de jure) do antigo estatuto de “colónia da colónia” que foi a Guiné portuguesa em relação a Cabo Verde, enquanto seu distrito militar, até 1879, quando se criou a entidade colonial autónoma chamada Guiné portuguesa, na sequência do chamado massacre de Bolor de um contingente militar caboverdiano por guerreiros felupes ), tanto mais que, segundo Julião Soares Sousa, e constitui efectivamente consenso geral, Juvenal Cabral teria sido um admirador de Salazar de quem foi, aliás, colega no Seminário de Viseu, e um adepto do salazarismo e da vocação e missão colonizadoras de Portugal, bem assim um acérrimo defensor de Teixeira Pinto, o chefe militar português das guerras de pacificação contra os papéis e os grumetes de Bissau no primeiro quartel do século XX, como, aliás, de facto atestam artigos publicados pelo próprio Juvenal Cabral no jornal republicano caboverdiano A Voz de Cabo Verde (e devidamente citados por Julião Soares Sousa na sua obra de referência sobre Amílcar Cabral. Ademais, argumenta Julião Soares Sousa que, já falido e em perda da herança deixada pela madrinha Simoa dos Reis Borges Correia, a isso acrescendo uma alegada dívida em relação à Caixa Escolar de Bissau (que estaria saldada, mas carecendo do devido comprovativo), Juvenal Cabral não estaria em condições de financiar os relativamente dispendiosos estudos liceais do filho numa ilha distante como era S. Vicente na altura, tanto mais que o mesmo Juvenal Cabral era responsável de uma numerosa prole proveniente de, pelo menos,  três mulheres diferentes.

Admitindo, como, aliás, está profusamente comprovado, que foi a mãe Iva que providenciou o ingresso de Amílcar Cabral na escola primária da Praia e sustentou, com imensos sacrifícios, os seus estudos liceais em S. Vicente, apraz-me todavia tecer as seguintes considerações no referente ao papel de Juvenal Cabral na educação escolar e na influenciação da vocação profissional e do destino político de Amílcar Cabral:

1. Não me parece de todo verosímil que um prestigiado letrado caboverdiano, ademais com bom nome na praça, tanto entre os seus colegas letrados, proprietários fundiários e funcionários públicos, como entre a população em geral, em nome da qual, aliás, redigiu discursos e dirigiu memorandos a altas entidades coloniais, como os Governadores coloniais em funções, os Ministros do Ultramar e Chefes de Estado de passagem e em missão de soberania portuguesa, a favor da disseminação do saber escolar e da “história pátria portuguesa” e da mitigação das consequências induzidas pelas secas endémicas e consequentes crises periódicas, com destaque para o que ele denomina o monstro das fomes, pudesse voluntariamente e por mera e/ou grosseira negligência, descurar a educação escolar dos filhos, sobretudo os que estivessem sob a sua directa custódia.

2. Ao tempo em que viveu longe da mãe Iva e sob directa influência do pai em Achada Falcão, Juvenal Cabral era um grande (ou, pelo, menos, um médio) proprietário rural ou, se não, o administrador de grandes propriedades rurais da sua madrinha Simoa dos Reis Borges Correia, sendo certo que, segundo testemunho da irmã Armanda (aliás, expressamente referido por Julião Soares Sousa), ele quis levar o seu filho Amílcar para Cabo Verde, com o fito expresso de providenciar a educação escolar do mesmo. Desse testemunho pode-se inferir que Juvenal Cabral estaria provavelmente insatisfeito com o facto de o seu primeiro filho varão com Iva Pinhel Évora não ter sido tempestivamente matriculado na instrução primária em Bissau, pois que tinha atingido a idade de sete anos requeridos para o efeito a 12 de Setembro de 1931. Nessa altura, Juvenal estaria presumivelmente em Cabo Verde, pois que entrara em gozo de licença por doença para acompanhar a esposa Adelina Correia Almeida Cabral e o seu comum filho Luís, nascido a 11 de Abril desse mesmo ano em Bissau. Talvez deste modo fique também explicado porque é que Amílcar Cabral não tenha frequentado o primeiro ano da instrução primária em Bissau, como parecem comprovar os arquivos disponíveis, antes de, juntamente com as irmãs Armanda e Arminda, acompanhar o pai Juvenal no seu regresso definitivo a Cabo Verde em Novembro de 1932. Anote-se neste contexto que é o próprio  historiador Julião Soares Sousa a afirmar na sua valiosa e sempre citada obra sobre Amílcar Cabral que devido à não catalogação dos arquivos escolares de Santa Catarina, conservados e disponíveis no Arquivo Nacional de Cabo Verde, não era ainda possível, ao tempo da defesa da sua tese de doutoramento, provar com as requeridas segurança e certeza que Amílcar Cabral frequentou ou não frequentou uma das escolas primárias de Santa Catarina mais próximas da residência do pai, designadamente a de Cabeça de Carreira e a da Assomada. A contrario, nada pode obstar a que se presuma com alguma certeza que Amílcar Cabral tenha frequentado uma dessas escolas primárias, como, aliás, assegurado pelo jovem economista José Luís Neves com recurso a uma conversa/depoimento oral da sua avó paterna, a Dona Nair Pereira Neves (curiosamente mãe do actual Presidente da República José Maria Pereira Neves) que, segundo um post do mesmo José Luís Neves na sua página do facebook, diz ter sido colega de Amílcar Cabral na Escola Primária da Assomada. Do mesmo sentido creio ser um artigo do sr Alfredo Veiga (curiosamente, pai de Carlos Veiga, antigo Primeiro-Ministro de Cabo Verde), o qual testemunha ter sido colega de Amílcar Cabral na Escola Primária da Assomada.

Neste contexto, parece-me que o depoimento do combatente da liberdade da Pátria e arquitecto Pedro Martins, constante do seu  livro Testemunho de um Combatente e segundo o qual “Amílcar Cabral estaria atrasado nos estudos” (segundo citação de Julião Soares Sousa), pode igualmente ser interpretado no sentido de ele ter já iniciado os estudos em Santa Catarina, mesmo que sob a forma de ensino doméstico ou caseiro ministrado pelo próprio pai, o professor primário aposentado e muito amigo das letras Juvenal Cabral. Pode ser que aos olhos da Dona Iva o ensino primário que verdadeiramente contava fosse o ministrado nas escolas primárias públicas e nunca aquele ministrado em casa, ainda por cima pelo próprio progenitor. Nesta óptica, ela teria razões de ficar preocupada, ainda mais existindo uma escola primária nas imediações da vivenda de Juvenal Cabral, agravando-se tudo isso com o facto de o filho Amílcar ter já perdido um ano da escolaridade que, como já referido, deveria ter iniciado em Bissau.

Neste contexto, tornam-se credíveis não só o depoimento de Pedro Martins e a opinião do meio-irmão e companheiro próximo de luta, Luís Cabral, sufragadora da tese segundo a qual Amílcar Cabral frequentou a escola primária oficial pela primeira vez na cidade da Praia, mas também, se bem que com algumas nuances, o depoimento da irmã de Amílcar Cabral, Armanda Lopes Cabral, a qual o acompanhou em todas as suas vivências caboverdianas tanto em Achada Falcão e na cidade da Praia, como também na cidade do Mindelo e de novo, na fase pós-liceal, na cidade da Praia.

Nesse contexto, divisam-se duas possibilidades, ambas por igual pouco credíveis:

a) Na hipótese de Amílcar Cabral ter frequentado a instrução primária em Santa Catarina no ano lectivo 1932/1933 na Escola Primária de Cabeça Carreira ou na Escola Primária da Assomada e a conclusão dos estudos primários se ter verificado em 1934 (conforme certidão/documento autêntico referido pelo próprio Julião Soares Sousa, os estudos primários de Amílcar teriam que ter começado em Bissau no ano lectivo 1931/1932, devendo Amílcar Cabral todavia fazer quatro classes em três anos lectivos (1931/1932, em Bissau, 1932/1933, numa das acima referidas Escolas Primárias de Santa Catarina, e 1933/1934 na Escola Primária António de Oliveira Salazar da cidade da Praia.

b) ou, na alternativa disso não ter ocorrido, Amílcar Cabral teria que ter feito quatro classes em dois anos lectivos (1932/1933, numa das acima referidas Escolas Primárias de Santa Catarina, e 1933/1934 na Escola Primária António de Oliveira Salazar da cidade da Praia.

Em ambos os casos (aliás, assaz inverosímeis pelo que se poderia convir que se trata de um lapso ou erro inserido num documento autêntico,como, aliás, defende Julião Soares Sousa), ter-se-ia que admitir que a Dona Iva teria permanecido mais de dois anos na cidade da Praia a ponderar e a reunir as condições necessárias antes de se decidir a se mudar e/ou de efectivar a sua mudança, com todos os filhos, para a cidade do Mindelo para efeitos da prossecução dos estudos liceais de Amílcar Cabral, hipótese que todavia não pode ser descartada, ainda que por menos tempo (um ano, no máximo), caso se venha a comprovar que Amílcar Cabral iniciou a instrução primária no ano lectivo de 1932/1933 ainda ele residia com o pai em Santa Catarina.

c) Na hipótese de Amílcar Cabral ter começado os estudos primários somente no ano lectivo de 1933/1934 - já que foi resgatado pela mãe Iva em Setembro de 1933, imediatamente depois do regresso da mesma de Bissau-, Amílcar Cabral faria, como de facto parece ter feito, um percurso escolar normal de quatro classes em quatro anos lectivos, mesmo com a alteração legal verificada em 1936 e que baixou de quatorze anos para treze anos a idade máxima para o ingresso no ensino liceal. Esta é a tese defendida e fundamentada por Julião Soares Sousa, a qual contrasta frontalmente com aquela defendida por António Tomás que, quiçá na esteira de um testemunho da irmã de Amílcar Cabral, Armanda Cabral, defende que Amílcar Cabral frequentou e concluiu num único ano todas as quatro classes da instrução primária, tendo-se iniciado nas lides escolares com doze anos de idade.  Anote-se neste contexto que o romancista Mário Lúcio Sousa prefere optar pela frequência e conclusão das quatro classes da instrução primária em três anos lectivos em  razão de Amílcar Cabral ter alegadamente iniciado a escola primária com dez anos de idade, isto é, em 1934. 

3. Elucidativo é o facto de o encarregado de educação de Amílcar Cabral na primeira fase dos seus estudos liceais em São Vicente ter sido Manuel (Leça) Ribeiro de Almeida, empresário e dono da fábrica de conservas de peixe bem como proprietário e director do jornal mindelense Notícias de Cabo Verde, de que Juvenal Cabral era o correspondente na cidade da Praia e na ilha de Santiago. Tal circunstância pode atestar o visível interesse de Juvenal Cabral pela educação escolar do filho, interesse que se deve ter expressado na influenciação do amigo e colega letrado Manuel (Leça) Ribeiro de Almeida no sentido de providenciar um emprego à ex-companheira e sua mãe-de-filho Iva Pinhel Évora, deste modo peculiar também contribuindo para a radicação e o sustento da família materna de Amílcar Cabral na ilha de S. Vicente e, assim, para a educação escolar de Amílcar Cabral. Esclarecedor parece ser o testemunho da Dona Iva na sua famosa entrevista ao jornal Nô Pintcha quando afirma que Juvenal Cabral se predispôs a ajudar financeiramente na educação liceal do filho Amílcar Cabral, impossibilitando-se depois de cumprir tal promessa pelas muitas dificuldades advindas da situação de falência e  de endividamento na qual se tinha enredado ou na qual foi enredado.  

Complementarmente, relembre-se que, segundo o agora narrado no romance de Mário Lúcio Sousa, Juvenal Cabral não hesitou em juntar as duas mulheres e respectivas famílias com os filhos Ivo, Amílcar, Armanda, Arminda e António, da Dona Iva, e Luís, da Dona Adelina, numa única e mesma casa em Bissau, permanecendo as duas famílias vizinhas e entre-ajudando-se sempre na cidade da Praia quando Juvenal Cabral teve de abandonar a casa e as propriedades da Achada Falcão.

4. É o próprio Julião Soares Sousa que, na sua rica documentação oficial relativa ao percurso da carreira profissional e à correspondência de Juvenal Cabral, testemunha o seu interesse pelos filhos, nesse caso da sua primeira companheira Ernestina Soares de Andrade, no romance denominada “a Paridera” por Dona Iva em razão de uma prole de mais de dez filhos tidos com Juvenal Cabral (vide lista constante num dos anexos do livro de Julião Soares Sousa relativa à árvore genealógica de Amílcar Cabral), quando acompanha dois deles (Hermínio e Artemisa), já adultos e “indigentes”, de regresso à terra natal continental, onde nasceram, a expensas da administração colonial de Cabo Verde.

5. Também me parecem evidentes as ligações afectivas entre pai e filho, se bem que necessariamente marcadas por uma relação de respeito temeroso e um claro distanciamento reverencial entre os dois, “pois que não eram colegas” (como se narra num dos episódios do romance ora em apresentação).

O respeito intelectual de Amílcar Cabral pelo pai Juvenal Cabral parece-me inegável e evidenciou-se, por exemplo, quando e enquanto Vice-Presidente da Direcção da Secção de Cabo Verde, Guiné e São Tomé e Príncipe da Casa dos Estudantes do Império e responsável do seu Boletim Mensagem, Amílcar Cabral mandou publicar nesse mesmo Boletim um excerto do livro Memórias e Reflexões, de Juvenal Cabral intitulado “O Mostro”, de sentida e veemente vituperação das fomes caboverdianas.

Aliás, segundo escreve o próprio historiador Julião Soares Sousa, é por ter pensado que fosse o filho Amílcar Cabral (e não Agostinho Neto, como realmente ocorreu e se veio depois a saber em Cabo Verde) a pessoa presa pela polícia política portuguesa no contexto da angariação de assinaturas contra a adesão de Portugal à NATO que Juvenal Cabral sofreu um ataque cardíaco fulminante que lhe tirou a vida em 1951.

Segundo depoimento da primeira mulher, a então colega e namorada Maria Helena Ataíde Vilhena Rodrigues, Amílcar Cabral teria entrado em profundo estado de choque e de depressão quando soube do falecimento do pai, por isso isolando-se no quarto por vários dias.  

4. Estamos em crer que a marcante influência de Juvenal Cabral na educação do filho Amílcar se terá processado não por via de laços afectivos expressos mas pelo poder de exemplo enquanto letrado e “político” (como diz a Dona Iva, na sua única entrevista dada ao jornal No Pintcha).

Exemplo que foi certamente positivo em tudo o que tivesse que ver com o gosto pelo saber em geral e pelo saber erudito e especializado com relação à agricultura, em especial.

Exemplo que pode ter sido negativo pelos dilemas, ambiguidades e ambivalências em que pode enredar as pessoas a que respeita, cabendo a quem observa tirar as devidas lições positivas e negativas de tal situação dilemática. É o que terá acontecido com Amílcar Cabral ao constatar que, apesar da sua erudição escolar e do seu saber literário, do seu patriotismo luso-crioulista, da sua dedicação à sua profissão, escolhida por vocação e não por uma qualquer imposição exterior, todos os caminhos pareciam fechados a um Juvenal Cabral, ademais falido. Estou certo que esse terá sido um dos factores determinantes para a transição de Amílcar Cabral de uma ideologia vagamente  luso-crioulista induzida pela sua cultura escolar bebida  nos  manuais e estabelecimentos de ensino coloniais e pela suas quotidianas vivências telúricas crioulas para uma fase superior de assumido nacionalismo africano. Tal percurso parece ser característico de vários intelectuais nacionalistas africanos caboverdianos, como parecem atestar inequivocamente os casos de Aristides Pereira em relação ao pai, o padre Porfírio Pereira, do Luís Cabral em relação ao pai, Juvenal Cabral, dos irmãos Manuel, Abílio e Pedro Duarte em relação ao pai, o padre Francisco de Deus Monteiro Duarte (que, curiosamente, foi quem baptizou Amílcar Cabral), de Jorge Pedro Barbosa e, sobretudo, de Eduardo Barbosa em relação ao pai Jorge Barbosa, de Valdemar Lopes da Silva em relação ao pai Baltasar Lopes da Silva, de Baltasar Barros (Nho Balta) em relação ao pai Antero Barros, etc, etc..

Comum aos pais de todos os nacionalistas africanos caboverdianos é a sua opção pela ligação de Cabo Verde a “Portugal como nação colonizadora”, quer por via da adjacência político-cultural, quer por via do regionalismo identitário político-cultural. Alguns deles foram assumidos antifascistas, como parecem ser os casos de Jorge Barbosa e Baltasar Lopes da Silva, como outros pareciam ser declarados admiradores do Estado Novo português, como parecem ser os casos evidente de um tardio e recuperado José Lopes e de Juvenal Cabral.

Acontece que, fazendo jus à dialéctica da dinâmica da História, tudo nele, Juvenal Cabral, transformou-se no seu filho em seu dialéctico contrário. É assim que os Rios da Guiné do  Cabo Verde e as  colónias/províncias ultramarinas da Guiné portuguesa e de Cabo Verde   vistos como complementares no quadro do império colonial/ultramarino português tornaram-se a Guiné e Cabo Verde do PAIGC de Amílcar Cabral, tal a Casa dos Estudantes do Império que se virou subversivamente contra o Império. Tal qual!

Por fim, seja ainda referido o papel assaz positivo que, na sua Análise de Alguns Tipos de Resistência- A Resistência Armada (conferências no Seminário de Quadros de 1969 proferidas por Amílcar Cabral em crioulo e recolhidas e editadas em português por Mário Pinto de Andrade), o grande pedagogo e estratega político-militar caboverdiano-guineense atribui a Honório Barreto (um ilustrado e rico negro guineense de origem caboverdiana e um convicto “patriota português”, segundo a caracterização do próprio Amílcar Cabral) na delimitação das fronteiras actuais da Guiné-Bissau em face das pretensões expansionistas da França, então potência colonial no Senegal e em Casamansa, situando todavia Amílcar Cabral o alegado papel positivo desse assimilado luso-crioulo no seu devido contexto histórico e diferenciando-o de um qualquer outro protagonista pró-colonialista dos tempos contemporâneos da luta de libertação bi-nacional, tido por isso como colaboracionista ou mesmo traidor, porque pugnando por ideários politicamente obsoletos e navegando contra os ventos dominantes da História, servindo para tanto os exemplos de Aguinaldo Veiga e Antero Barros (talvez assaz injusto para este último caso), os quais, elucida Amílcar Cabral no Seminário de Quadros de 1969, tendo representado Portugal, enquanto a potência colonial tergiversante em admitir que possuía territórios coloniais, na Assembleia-Geral das Nações Unidas num momento decisivo em que Amílcar Cabral (acompanhado de Dulce Almada Duarte) apresentava o caso colonial da Guiné dita portuguesa e de Cabo Verde perante a mesma organização internacional universal, teriam traído as promessas feitas a Amílcar Cabral num encontro secreto em Nova York no sentido de aderirem, ainda que clandestinamente, à luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné dita portuguesa. 

Por tudo isso que vem acima explanado, estranhamos pois que numa tão sensível questão tenha o romancista histórico Mário Lúcio Sousa deliberadamente optado por uma das muitas possíveis saídas nessa controvérsia, precisamente a mais odiosa, humilhante e vergonhosa para o pai de Amílcar Cabral e delineada tanto pelo insigne historiador Julião Soares Sousa, mesmo na ausência ou na insuficiência de provas sólidas, cabais e irrefutáveis, como mais acima tentámos argumentar e contra-argumentar, como  também por António Tomás, de forma assaz extremada.

Todavia, Mário Lúcio Sousa parece por vezes vacilar na sua adopção dos pontos de vista sufragados e defendidos por Julião Soares Sousa e António Tomás quanto à socialização escolar de Amílcar Cabral com exclusivo papel da mãe Iva. Se, na verdade, a sua descrição romanesca das vivências de Amílcar Cabral em Achada Falcão nada deixam transpirar de uma sua qualquer eventual educação escolar (mesmo que doméstica e ministrada pelo pai Juvenal Cabral), sendo que, a par das brincadeiras a que ele e as irmãs gémeas se dedicam, os trabalhos caseiros e agrícolas de que eles, Amílcar e as irmãs-gémeas, são encarregados parecem inserir-se num quotidiano normal de meninos do campo vivendo naquela época, cabendo-lhes dar o seu contributo, na medida das suas forças, para as diversas tarefas familiares do dia a dia rural, a que, aliás, bastas vezes os meninos do campo, e não só, se dedicam prazerosamente e de bom grado em razão da sua utilidade para a sua aprendizagem do mundo e para a respectiva integração familiar, todavia sem prejudicar as suas eventuais obrigações escolares, aliás e como já referido, nunca por nunca referidas pelo romancista Mário Lúcio Sousa.

Sintomático e assaz significativo para a dissecação do caso em apreço parece ser o facto de o romancista fazer o jovem bolseiro Amílcar Cabral desembarcar em Lisboa vestido com um fato cedido pelo pai Juvenal Cabral. Tal somente poderia acontecer, na minha modesta opinião, havendo laços de afecto e relações de amizade e confiança assaz estreitas entre pai e filho!

Também sintomáticos é o facto romanesco de antes de dar o seu último e definitivo suspiro,  imediatamente antes de repousar o seu pensamento no regaço da sacrossanta mãe Iva, Amílcar Cabral se lembrar do seu pai Juvenal Cabral e do que ele diria em face da sua, dele Homem Grande, morte iminente: Alea jacta est! 

5. Todos os testemunhos dos contemporâneos, colegas, condiscípulos e professores de Amílcar Cabral coincidem na exaltação dos seus méritos escolares e das suas qualidades humanas no exercício e na liderança de actividades escolares e extra-curriculares, a par da sua fulgurante inteligência, desde os seus tempos da Escola Primária da Praia passando pelos tempos do Liceu de São Vicente.

Lendo o romance A Última Lua de Homem Grande a par do livro Amílcar Cabral (1924-1973)- Vida e Morte de um Revolucionário Africano e do livro O Fazedor de Utopias-Uma Biografia de Amílcar Cabral, nas suas partes respeitantes à infância e à adolescência de Amílcar Cabral, fica-se com a impressão que estamos face a um menino super-dotado, a um menino-prodígio, tão agarrado aos estudos que diverge completamente da imagem que normalmente se tem dos retardados escolares, isto é, daqueles que ingressam na escola perfazendo idades muito superiores às dos demais condiscípulos e colegas que ingressaram na escola com a idade considerada normal e requerida pelas leis vigentes. Todos nós conhecemos casos desses. Tais alunos evidenciam-se pela sua relativa madureza (maturidade) em relação a determinadas questões e adveniente da sua idade mais avançada, tentando amiúde impor-se face aos condiscípulos mais novos e mais fracos por via da sua força física ou da sua maior “experiência do mundo”.

Ora, parece ser exactamente o contrário do ocorrido com o Amílcar Cabral menino,  sendo que as características acima delineadas talvez se aplicassem com maior propriedade ao irmão mais velho, Ivo Carvalho Silva, como gostosamente ilustrado no episódio do Cutumbembem da floresta do Taiti do romance A Última Lua de Homem Grande, e outros episódios do livro que ilustram as razões que fizeram o estimado e adorado irmão mais velho de Amílcar Cabral  optar precocemente pela profissão de marceneiro (diga-se que com o apoio material do irmão mais novo que o ajudou a comprar o material necessário para o exercício da profissão), nunca alvitrando sequer iniciar os estudos liceais, depois de, segundo o romance de Mário Lúcio Sousa, ter chumbado nos exames da quarta classe (segundo grau, como se dizia na altura), exactamente no ano em que Amílcar Cabral concluiu a instrução primária.    

Em Amílcar Cabral menino (e depois, coerentemente, adolescente e jovem liceal,  estudante universitário, engenheiro agrónomo, revolucionário bi-nacionalista,  pan-africanista, humanista e universalista, estratega e líder político-militar, diplomata e teórico, ressaltam como qualidades distintas a inteligência incomum, a aguda curiosidade intelectual, a lealdade, o humanismo, o cultivo do saber, o amor das artes, o culto da terra e da natureza, a indagação do destino e do quotidiano, o amor ao próximo, a tolerância para se obter o melhor de cada um, a intolerância perante os erros persistentes, a crença na recuperação do ser humano para ideais nobres, a persistência na luta em prol dos mais fracos e humilhados e da humanidade toda de inteira... tudo qualidades a que não são alheias as influências bebidas em ambos os progenitores, mas também nos livros e, eventualmente, nos professores, nos amigos, companheiros e camaradas, em personalidades históricas exemplares e junto de pessoas humildes, anónimas, comuns do povo.

Neste contexto, parece-me evidente que somente um ensino doméstico (com ingresso ou não no ensino escolar formal) ministrado pelo pai primeiramente em Bissau, depois na Achada Falcão quando teve a guarda exclusiva do filho, que certamente se prolongaram pelas muitas conversas que certamente mantiveram na cidade da Praia na fase caboverdiana mais adulta e madura de Amílcar Cabral, explicam os feitos e façanhas escolares do Amílcar menino-prodígio e adolescente/jovem muitíssimo aplicado nos afazeres curriculares e extra-curriculares e que teria ingressado tardiamente nas instituições escolares formais, com nove anos no caso do impressionante livro-dissertação, de Julião Soares Sousa, com doze anos, imagine-se!, no caso do texto biográfico, de António Tomás, e com dez anos no caso do romance ora em indagação, de Mário Lúcio Sousa. Acredite-se pois que, como referido num poema de Tomé Varela da Silva, Amílcar Cabral é, para todos os efeitos, o fruto da ligação afectiva entre Nho Juvenal Lopes da Costa Cabral e Nha Iva Pinhel Évora que, emprestando toda a genialidade à obra feita, veio mudar radicalmente os destinos dos povos da Guiné e de Cabo Verde e de todos nós, beneficiários directos da sua vida e do seu exemplo de nosso maior Morto Imortal!

 

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